domingo, 26 de abril de 2009

A esparrela de Fernando Teixeira


por Lau Siqueira


Um vôo sobre a condição humana. O enfrentamento do homem com a fragilidade das suas certezas. A esperança contida na ansiedade do artista em sua relação direta com o público. O povo feito protagonista no cenário das ruas. A realidade mordendo os calcanhares dos nossos sonhos. Uma porção de frases semelhantes partiriam de uma leitura muito pessoal do monólogo Esparrela, escrito, dirigido e encenado por um artista que selou a própria existência, em todos os sentidos, com os signos do teatro.

Para compor esse texto, Fernando Teixeira foi buscar uma linguagem formulada a partir da relação direta do ser humano consigo mesmo. E é como se tivesse estabelecido um pacto com a universalidade da alma sertaneja. Tudo ambientado num cenário de aridez utópica. Um cenário que se compõe a partir dos mitos diluídos pela lucidez e pela desesperança. Um cenário sutilmente estabelecido a partir do imaginário do público. Tudo isso ocorre numa relação direta do ator com o ato supremo de representar. Na verdade, uma aula de teatro.

Fernando dá uma expressividade aos personagens ocultos deste monólogo, que provoca reações imediatas da platéia. A realidade cênica fica, então, transposta pela extensão plástica do texto. Diálogos e narrativas muito bem elaborados, revelando que a ousadia de um artista não está, exatamente, num hermetismo revestido com falsas miçangas. Não está em erudições postiças. Mas, na capacidade de conturbar-se diante do silêncio e das vozes dissonantes de uma cultura de supressões e desejos.

Tudo encanta em Esparrela. Principalmente a certeza do melhor teatro. Tão perto, tão disponível. Um teatro que realmente interessa. O que parte de uma integralidade absoluta e se esparrama pela eternidade difusa do instante. É quando o artista suprime de si qualquer distância entre a técnica e o instinto. Fernando Teixeira nos mostra que é preciso e necessário reinventar-se o tempo todo. Transgredir-se, eu diria, em uma palavra. E faz da sua arte uma especiaria estética de contenções e erupções colhidas no aprendizado do mundo. Em uma leitura kafkiana da irrealidade pulsante que atravessa os tempos e se estabelece enquanto fluência crítica na poética do cotidiano.

O salto sobre si mesmo, por parte de um artista de trajetória brilhante. O enfrentamento com suas próprias coragens e medos. Parece-me que nesta montagem de Esparrela, Fernando Teixeira construiu a concisão necessária, a condensação da sua própria história nos palcos do mundo. E joga tudo em suor e signo. Virtudes que constituem a magia e a emoção do teatro. Ele escreveu, ele dirige, ele atua. Se impondo absoluto nesta nova montagem de um uma espetáculo que espeta a nossa inquietação diante de um mundo de convulsões estabelecidas.

Uma comemoração dos quarenta anos do Grupo de teatro Bigorna onde quem recebe um grande presente é exatamente o público. Primeiro e muito especialmente pelo privilégio de contar com um teatro de altíssima qualidade estabelecido num mesmo sujeito, numa mesma circunstância. Depois, pela ousada e muito bem elaborada descoberta de um novo e absoluto espaço para o teatro paraibano, num lugar que precisa ser descoberto pela cidade e pela própria classe teatral. Tudo isso é Esparrela. Na verdade, uma arapuca necessária aos nossos sentidos.


Visite o blog do espetáculo: www.esparrela-esparrela.blogspot.com

terça-feira, 21 de abril de 2009

Um olhar iluminado sobre as sombras


Lau Siqueira*

Um escritor não se traduz ao mundo apenas a partir da sua relação com a palavra. Seus caminhos na literatura, fatalmente, são trilhados a partir da sua circunstância. Consta, por exemplo, que James Joyce teve seu estilo influenciado de forma significativa pelo meio conturbado ao qual esteve vinculado. Especialmente pelo seu pai, beberrão e perdulário, perseguido por credores, mas também homem amante das artes. Conheci Ailton Ramalho como artista plástico e militante das boas causas humanas. Um homem suave, sensível, mas ao mesmo tempo firme nas suas convicções. Mais tarde, pude observá-lo enquanto poeta. Um poeta que radicalizava na experimentação. Uma experimentação que iria da palavra ao suporte editorial. (Talvez sejam exatamente estas as conexões ocultas às quais se refere Fritjof Capra.)

Até que assisti sua prosa veloz desembarcar no projeto Novos Escritos, da Fundação Cultural de João Pessoa. O projeto viabilizou a revelação de bons nomes para a nova prosa paraibana. Nomes como Roberto Menezes, por exemplo, hoje integrante do badalado Clube do Conto. Foi no Festival Agosto das Letras que Ailton Ramalho desembarcou com um título instigante: Beco de Morar no Medo. Sua prosa se impôs, então, diante de um silêncio infeliz da crítica, mas arrancou comentários elogiosos em diversos setores de boa leitura.

Agora o escritor nos presenteia com O Herói Que Encolheu. Um livro que é, na verdade, uma metáfora da nossa história mais recente. Um resgate da tempestade fascista que se abateu sobre o País do Futuro. Tudo construído dentro de um olhar iluminado sobre as sombras da nossa memória. Um olhar que se estende sobre as hipocrisias vivenciadas por uma sociedade decadente, mas com ampla hegemonia conservadora. Ramalho não teme a pecha de panfletário. Isto porque seu duelo, o tempo todo, é com a linguagem e com a construção de enredos que prendem o leitor da primeira à última linha. Sua prosa cria ambientações de cumplicidade com o leitor. Uma escrita com altíssimo poder de comunicação. O que, silenciosamente, desafia a empáfia dominante no meio literário, especialmente acadêmico.

A crítica social aguda, no entanto, dentro de uma prosa muito bem elaborada afasta Ailton Ramalho de qualquer indício de apelação engajada. Ao contrário do que se possa supor, trata-se de um texto que parte de um realismo imperativo. Com índice próprio de identidades colhidas, certamente, em boas leituras (dos livros e do mundo). Um realismo aproximado do que Nikolai Vassilievitch Gogol impôs na Rússia do século XIX. Leituras cruas de uma estratificação social que estrangula a condição humana, aniquila as potencialidades emocionais de individualidades diluídas em valores absolutamente vencidos, vocacionados para as orações de silêncio erigidas pelos totalitarismos “mediocráticos”.

Esta leitura da realidade se mostra mais nítida em O Herói que Encolheu. O autor nos mostra que o exercício da memória nos conduz para o exercício da lucidez. Um livro que resgata o passado em forma aguda de protesto, mas sem lamentações. Resgata o passado exatamente para uma perspectiva de futuro. Futuro de gerações que não compreendem, muitas vezes, a extensão e o limite da “liberd’arde” conquistada numa democracia burguesa.

Ailton Ramalho traz ao seu público leitor os relatos vividos de quem sobreviveu aos porões e ainda sobrevive aos cárceres de um apartheid social, tantas vezes banido de uma teia literária predominantemente conservadora, tanto estética quanto politicamente. Ele nos mostra o quanto essas diferenças (com os violentos embates revelados em seus textos) ainda ditam uma nação de sombras e omissões. Sua literatura é de pura resistência

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*Texto de apresentação do livro O Herói que Encolheu, do meu amigo Ailton Ramalho. com um insuportável atraso, pelo qual solicito minhas mais humildes e mais safadas desculpas.

domingo, 19 de abril de 2009

Diário de um louco no Palco Giratório

Lau Siqueira

Encenado por André Morais e dirigido por Jorge Bweres, o monólogo Diário de um louco vai percorrer 48 cidades brasileiras, do Rio Grande do Sul ao interior da Amazônia. O grupo paraibano Lavoura foi um dos selecionados pelo projeto Palco Giratório, criado pelo Departamento Nacional SESC, com o objetivo de difundir as artes cênicas no Brasil. O outro espetáculo é Silêncio Total, com o palhaço Chuchu, criação do também paraibano, ator Luiz Carlos Vasconcelos.

Em Diário de um Louco podemos perceber a transtemporalidade de um texto clássico. Nikolai Vassilievitch Gogol, nascido em 1809 teve uma infância abastada, mas tornou-se um modesto funcionário público na fase adulta. Talvez esse tenha sido o fator invisível a transformá-lo no introdutor do realismo na literatura russa. No encontro do teatro com a literatura em Diário de um Louco, percebemos a atualidade de um texto datado de 1830 e encenado para um público que, supostamente, passou por uma radical mudança de costumes. A tradução desse mistério é que faz de uma obra um clássico.

O texto fala dos sonhos e das desesperanças de um funcionário público apaixonado pela filha do chefe. O impacto ferino da desigualdade social sobre os sentimentos desse personagem começam a impulsioná-lo para um enorme abalo emocional. Uma tristeza e um sentimento de impotência capaz de dimensioná-lo dentro de uma abordagem da loucura, sem estereótipos, na sua forma mais crua, mas ao mesmo tempo reveladora de uma imensa expressão de humanidade. A loucura aparece, então, como ponto de partida para o abandono de uma existência marcada pelo sentimento de impotência diante do estabelecido. O personagem cria para si um trono e uma coroa, na tentativa de superação das suas impossibilidades. A configuração da loucura na temática do espetáculo é de tamanha realidade que, segundo Jorge Bweres, em uma das apresentações uma pessoa teve um surto esquizofrênico na platéia.

Reconheço um grande ator quando percebo a sua capacidade de transgredir a própria identidade na criação de um estilo. A capacidade de introduzir-se na construção de um personagem que relata a agonia do homem comum e seus sentimentos, diante dos muros supostamente intransponíveis da desigualdade social. Em Diário de um Louco, André Morais soube realizar esse traçado, com uma interpretação de absoluto equilíbrio entre circunstância original do texto e a sua transcendência para esses tempos inaugurais do século XXI. Depois da declaração de Jorge acerca do surto esquizofrênico em uma das apresentações, compreendi melhor a reação de duas jovens sentadas no chão da primeira fila que riam freneticamente nos momentos de maior densidade do texto. Isso me fez crer que se trata de um espetáculo do qual não saímos impunes. Tamanha é a capacidade de envolvimento com todos os elementos do espetáculo, criada pelos artistas. Tudo amarrado sutilmente com uma trilha sonora muito bem acolhida pela concepção geral do espetáculo.

Os diretores de teatro experimentam a noção mais acabada de poder absoluto. Mas, seria mesmo necessário exercer este poder com autoritarismo e de forma personalista? Jorge Bweres nos mostra que não. Ele deixa sua marca no espetáculo exatamente por exercitar o oposto. Construiu um estilo delicadamente absoluto. Soube conjugar a imensa capacidade interpretativa de André Morais, com o que eu chamei de transtemporalidade do texto. Sua presença, no entanto, paira sobre cada cena. Sobre um cenário que impressiona pela capacidade de introduzir os personagens ocultos do monólogo, ou numa iluminação que contracena o tempo todo com os inúmeros elementos colocados em cena (ou fora dela). São os detalhes que fazem de Jorge Bweres um diretor diferenciado. Parte dele a provocação para um altíssimo grau de interação com a platéia. Reafirmo a impressão de Altimar Pimentel: “o cuidado meticuloso e criativo como o espetáculo havia sido construído por Jorge Bweres e André Morais revelava íntima cumplicidade entre o primeiro e o segundo também ator único”. O espetáculo é de uma unidade impressionante! Tudo no lugar. Tudo meticulosamente cuidado. Daí o sucesso que tem alcançado por onde se apresenta.

Agora o grupo Lavoura irá percorrer o país. Do extremo norte ao extremo sul. Certamente que tamanho percurso vai exigir do grupo uma capacidade de resistência que precisaria ser transformada em cadernos de viagem. E assim será. Jorge e André criaram um blog para que pudéssemos acompanhar à distância o traçado das emoções vivenciadas com os mais diferentes públicos deste país. Assim, você saberá quando o espetáculo estiver por perto e poderá tirar suas próprias impressões acerca do melhor teatro brasileiro contemporâneo. Um teatro que pulsa pelo Nordeste inteiro e que tem na Paraíba um dos seus principais vetores. Acompanhe pelo blog
http://www.teatrolavoura.blogspot.com/ a aventura do grupo Lavoura nos palcos brasileiros.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Poesia é risco em Constança Lucas.

Lau Siqueira


A poesia se revela sempre despida e vestida por todas as linguagens. Quando menos esperamos, lá está ela. E é algo que nos espeta as áreas de abandono do coração e da mente. Poesia é, na verdade, o elemento condensador de todas as linguagens. Uma arte que é o pulsar da existência humana na sua total densidade. É esse o meu olhar sobre a poesia que habita o traço desta artista nascida na lusitana Coimbra que, para sorte dos brasileiros, decidiu colocar seu atelier e sua morada em algum lugar da imensa São Paulo. De lá ela faz arte para o mundo. Circula seu trabalho em diversos países. Tem publicação em catálogo e participou de exposição, por exemplo, na Coréia, no Japão. Isso nos mostra o peso da poesia enquanto linguagem, em qualquer outro suporte, seja estético, seja estilístico, seja humano.

As imagens concebidas por
Constança Lucas têm algo de palavra não silenciada. O não dito é mostrado. Cada expressão calcula o espaço pela delicadeza e pelo peso do braço da resistência às culturas que não dialoguem com a atemporalidade da arte. O detalhe do provocado e do ato suprimido. Tudo isso leva o leitor da obra visual dessa artista a uma leitura da palavra pétala quando o desenho é arbusto. Ou seja, há uma lírica paisagem por trás de um diálogo profundo com a existência, com as causas humanistas e de paz. É desta forma que Constança Lucas dialoga com o mundo. Trafegando de forma libertária entre o abstrato e o figurativo. É a “poesia como objeto do olhar”, conforme o baiano Almandrade classifica a Poesia Visual.

As cores são delicadamente escolhidas. Quando não é o preto que domina sobre um branco imponente, compondo o cenário vivo da criação. Sentimos que a artista persegue algo que talvez possamos chamar de transposição do cotidiano e do épico. Tudo num mesmo tempo/espaço do branco/leque de sensações quentes, úmidas, doloridas, coloridas, ocas, profundamente vividas. Sobretudo, na experiência de colher suavidade numa arte que se impõe pela universalidade e pela capacidade de diálogar com a diferença. Algo que nos permite continuar sonhando com a realidade, dentro e fora dela.

Tem participado de salões de artes plásticas pelo país inteiro e por algumas dezenas de países. Militante ainda da arte-correio, a artista nos provoca permanentemente o dilema do útil e inútil, da arte e da vida, do estudo e da criação. É uma criadora que reflete muito profundamente sobre tudo que produz. Por isso busca sustentação teórica na academia para suas certezas mais primitivas. Uma estudiosa dos caminhos da arte no Brasil e no mundo. Mantém um diálogo vigoroso com a Europa, com países do oriente e das Américas.
Constança Lucas dispensa apresentações. Sua arte criou seus próprios espaços, com talento e sapiência.

Uma arte que seduz o imaginário de quem se permite um olhar sem dolo, num tempo global que não nos permite conceber uma estética predominante. (Se é que em algum tempo alguma foi.)
Constança dialoga muitgo bem obrigado com a tradição e com a modernidade. Sua arte comunica numa perspectiva futurista. Ela reconhece todas as linguagens nos duelos da luz com as sombras. Fator de risco imprescindível para uma arte íntegra e integral. Uma arte que não se poupa diante da beleza e não se rende aos modismos. Uma arte que despe e conduz o espetáculo de um cotidiano rico em plasticidade. Algo pulsante, vibrando as artérias de um público que sente o que pensa.

Ou seja: não se trata de uma relação glacial com quem a observa atentamente. A arte de
Constança Lucas nos provoca calorosos debates íntimos sobre as percepções de infinito que existem nas impermanências conceituais. No entanto, algo longe do que se poderia classificar como diluição. Sobretudo porque é de uma suavidade que estilhaça nosso senso de transgressão. Ela constrói metáforas em traços. Seja com lápis, pincel ou mouse.

Constança Lucas construiu uma trajetória na arte que se sustenta com os próprios pés. Uma trajetória que não desperdiça a acelerada pontuação das horas no dia que passa. É uma artista que sabe reconhecer seus mestres. Sabe respeitar a história dos seus iguais e dos ícones das artes no mundo. Sua aparente calma é um eterno movimento. Uma volúpia de uma arte viva presente nos salões, nas galerias e nos espaços alternativos que ainda abrem suas portas para um conceito de grande arte que passa, diretamente, pela construção de uma identidade, de um estilo absolutamente singular. Assim penso a arte de
Constança Lucas, cujo nome no Google, apresenta uma fartura de belas imagens que vale a pena conferir. É a poesia em estado de risco!

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...