domingo, 26 de julho de 2009

Parrá – a elegância do ritmo.




Lau Siqueira

A boemia pessoense ainda preserva seus mais alinhados personagens. Principalmente no anonimato turbulento das ruas da Cidade Antiga. Na Ladeira da Borborema guardamos boas memórias do poeta Manuel Caixa D’água. Nos escambos temporais deste início de século, ainda há quem nos faça sonhar com a velha Parahyba do Norte - “morena brasileira”. A eterna Cidade das Acácias. Um lugar onde os sagüis pululam pelos resquícios da Mata Atlântica e onde as prostitutas retomam o simbolismo histórico da luta pelo reconhecimento da profissão. Assim a cidade vai se organizando politicamente no movimento das águas e dos tempos. Convulsionando uma urbanidade que nasceu nas margens de um rio para desaguar nas memórias do futuro.
Foi numa cidade assim, ali no Roger - mais exatamente na Rua Anísio Salatiel número 60 - que nasceu Severino Ramos de Oliveira. Isso foi no ano de 1938. Ainda na primeira infância o irmão lhe conferiu o apelido de Parrá, sem saber que estava realizando um batizado artístico. Nascia um personagem da cultura de uma cidade absorvida, naquele momento, pela era do rádio. Um tempo em que as ondas médias e as ondas curtas determinavam o todo poderoso veículo da comunicação popular. Um talho de modernidade no provincianismo de uma cidade que presenteou o Brasil e o mundo com personalidades importantes da cultura brasileira. Como o cidadão do mundo, Ariano Suassuna. Um litorâneo de alma sertaneja. Um homem que trafega sua existência nas raízes da expressividade cultural do povo nordestino. Tudo dentro de uma rotina de invenções. Numa plasticidade de cores e ritmos. Elementos para o cenário de uma vida dura que gerou a alma delicada dos seus artistas.
Parrá representa o glamour e o estigma de uma geração que construiu os maiores referenciais da chamada Música Popular Brasileira. Na verdade, uma geração que abriu as comportas para o nascedouro da MPB enquanto conceito, dentro da universalidade natural da música de qualquer região do planeta. Um tempo de grandes ritmistas como Jackson do Pandeiro que esteve para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, na mesma proporção que Parrá esteve para a época de ouro da Rádio Tabajara, aqui na Paraíba. Com absoluta convicção do seu destino, Parrá soube traçar (na base da “marmota”, tantas vezes) os seus próprios caminhos. Sempre com a simplicidade de um homem que fez da música a sua forma de transcendência no tempo. Preservando-se enquanto menino, em cada leitura do mundo que o cerca. Tudo isso compõe o inventário de uma vida que não guardou espaços para a tristeza, mesmo que estas tenham sido tantas e muitas vezes, tão profundas.
Parrá está situado na história da música nordestina, entre os grandes nomes do seu tempo. É certo que não teve o seu trabalho reconhecido lá fora, principalmente no vigor da juventude. Até porque muito pouco saiu da Paraíba. Principalmente porque nunca saiu do Nordeste. Somente este detalhe apartou o cantor de um reconhecimento público muito semelhante aos artistas que foram consagrados nacionalmente pela mídia, abrindo os olhos do país para a efervescência cultural da Paraíba. Mesmo assim, Parrá influenciou e influencia as novas gerações de músicos paraibanos. Com sua elegância, com suas convicções estéticas, com suas marmotas, com sua alegria perene e sua dignidade. Ele faz parte de um grupo seleto que reúne nomes como Livardo Alves e outros que, mesmo sem sair da cidade, conseguiram uma consagração e um reconhecimento raro para os chamados “santos de casa”. Parrá não é e nunca foi santo. Todavia, está na área e “obra milagres” - como se costuma dizer por aqui - com a inventividade da sua arte. Sua natureza é criativa e musical. Um artista que soube eternizar-se na memória da cidade. Seja pela sua simplicidade conjugada com sua irreverência, mas principalmente pelo seu inquestionável talento e pela organicidade da sua atividade intelectual.
Logicamente que se torna um tanto quanto redundante ressaltar as influências jacksonianas. Aliás, essas influências do grande mestre de Alagoa Grande chegaram também para Alceu Valença, Zé Ramalho, Lenine, Zeca Baleiro, Chico Cesar e até mesmo aos roqueiros conterrâneos do Rei do Ritmo da banda Jackson Envenenado, de Alagoa Grande. Mas, com Parrá, foi diferente. Não se trata apenas de uma influência. Trata-se da absorção geral de todos os mimos, trejeitos, manejos e traquejos de uma tradição rítmica bem nordestina e, sobretudo, genuinamente paraibana. Algo que esteve representado na existência artística de Jackson, mas que também está em Parrá, Biliu de Campina e outros artistas importantes desta terra de grandes artistas. Este é o diferencial que coloca o nome de Parrá sempre na vanguarda quando o assunto é Jackson do Pandeiro. E é exatamente isso que diferencia o nosso Severino Ramos de Oliveira. Não seria ele um cover do mestre. Falando assim, num tom bem nordestino, o morador da Rua Anísio Salatiel número 60, no Roger, seria a mais perfeita “parêa” musical e existencial do velho Jackson do Pandeiro.
Na cena musical contemporânea do Estado, o cantor e compositor ainda resiste ao lado de grupos como Burro Morto, Chico Correa, Cabruêra, cantores como Escurinho, Erivan Araújo e Gláucia Lima que, com certeza, souberam e sabem beber na fonte inesgotável que é a musicalidade deste artista cujas levadas e cujo suingue transpiram no cotidiano da cidade, de onde ele sempre arrancou o barro, o fogo e a água, para esculpir canções que marcaram a história musical do Nordeste. A musicalidade de Parrá está muito mais viva que nunca!
Em 2006, na festa de aniversário da cidade, a homenagem foi para Jackson do Pandeiro. As escolhas da Fundação Cultural de João Pessoa não poderiam ser mais exatas. A Orquestra de Câmara Cidade de João Pessoa, criada e regida pelo maestro argentino radicado na cidade, Gustavo de Paco, tocou 11 músicas de Jackson. Todas interpretadas de forma impecável pelo irreverente Parrá. Um show de competência e identidade cultural. Na verdade aquele show representou certo redimensionamento da relação entre a música erudita e a música popular. Naquele momento, Parrá se mostrava digno da consagração na memória do seu povo. O público cantava entusiasmado os sucessos de Jackson, como se o show fosse com o próprio. O Canto da Ema, Sebastiana, Um a Um, Forró em Limoeiro e outras. Naquele momento Parrá selava em sua carreira um reconhecimento que vinha sendo, injustificadamente, sonegado. Em um show realizado anteriormente, no São João, ele fez uma declaração pública que vale como alerta para os gestores de cultura que não se preocupam com a preservação da memória dos seus artistas: “eu estava morto e vocês me ressuscitaram”, disse Parrá. Na verdade, Parrá, a cidade é que andou entorpecida, desmemoriada, fora do eixo... Você representa o espírito e o corpo de uma cultura que não se rende, independentemente da sensibilidade de quem a governa. Uma cultura de resistência que transita soberanamente entre a tradição e a modernidade.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A alma fêmea do poema.


Lau Siqueira


Não é por acaso que a poesia brasileira vem conquistando - cada vez mais - leitores e leitoras. Na mesma proporção, seguramente, vai suscitando espaços respeitáveis no mercado do livro. Este é um fenômeno que se faz sentir de forma acentuada a partir da segunda metade dos anos 90. Entrementes, não é um fenômeno brasileiro. No mundo inteiro a internet passou a exercer um papel determinante na difusão da poesia. Mas, não apenas isso. Sem romper com a necessidade precisa dos clássicos, a poesia contemporânea passou a se alimentar dela mesma. Talvez esta seja a melhor tatuagem de um tempo de contrapontos bravios quanto aos conformismos decadentes. Verdadeiras porradas no baixo-ventre dos eunucos saciados, fiéis devotados aos cleros e reinados da literatura e, principalmente, da ausência de literatura.
Foi nesse contexto que o Brasil descobriu Valéria Tarelho. Uma escritora que traduz e ao mesmo tempo constrói sua artesania, na multiplicidade das suas leituras. Da mais plena percepção dos trovadores medievais, dos simbolistas, dos barroquistas, dos concretistas... aos poetas marginais de poesia sem pele. É como se estivesse reafirmando Jorge Luiz Borges: “todas as teorias poéticas são meras ferramentas para a construção do poema”. Uma poeta que estréia em livro com uma poesia que é pura pulsação. Seja de linguagem ou da existência. Uma poesia que soube construir seus próprios caminhos sentenciando-se dentro de um rigor que se traduz num jogral de iluminuras. Percorrendo de Rimbaud à Rodrigo de Sousa Leão, de Kaváfis à Márcia Maia... Por isso estréia com substância e ousadia. Questões que se interpenetram na abordagem de temas resgatados a partir de um mergulho profundo no raso da condição humana. Um foco indissociável cravado no universo da alma fêmea. Uma poesia radicalmente mulher. É o cotidiano que emerge com sua sensualidade, suas opressões, suas desditas e, sobretudo, com suas linguagens de eternidades construídas na perenidade do acaso. Valores tão fundamentais à metalurgia do poema.
Em uma das suas últimas entrevistas, Haroldo de Campos dizia que não era mais um poeta concreto, mas um poeta da concretude. Não há nada mais pertinente nesta apresentação que esta leitura avessa da profecia de um mestre. Valéria Tarelho é, também, uma voz da concretude. Dona de uma dicção que se reconhece na fala dos silêncios. Da imensidão de silêncios que inundam esse tempo de velocidades e usuras midiáticas. Uma voz que não precisa de outras e ao mesmo tempo se multiplica em tantas. Por isso, não pede licença para que reconheçamos sua nitidez dentro de um palheiro de agulhas esquecidas num soberbo disfarce pessoano. Concisa na sua sensibilidade inteligente. Uma explosão de prazer que sacode o hímen das palavras para a construção de uma poesia de consistência e derme arrancada dos anseios e dos devaneios.Tudo isso ancorado numa lucidez visceral.
Escrevendo poemas há sete anos apenas, sem pedir licença aos babalorixás de crachá que se fecham em círculos cada vez mais contritos, inflados de suas substâncias desgastadas e pastiches purulentos. Este livro conta uma história de poemas que descem da estopa para a laje fria da expressão. Ardendo coisas ditas e não ditas. Como nos contou Leminski em seus Anseios Crípticos, o mestre Mishima já sentenciava: “Não sigam as pegadas dos antigos. Procurem o que eles procuraram.” Assim é Valéria Tarelho, dona de uma poesia que não segue pegadas. Uma poesia cuja certeza é uma busca e a universalidade da dúvida.

(apresentação do livro de Valéria Tarelho, a ser lançado em agosto, pela Editora Landy, SP - Brasil)

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...