O Boca de Cena não é apenas mais um grupo de Teatro de
Bonecos. Ainda que não seja pouco manter ativo um grupo de Teatro de Bonecos no
Nordeste em tempos de baixo investimento na cultura. Na verdade, o Boca é uma
companhia com uma pegada altamente profissionalizada e um baita senso de
humanidade. Assume uma vanguarda imprescindível ao segurar na mão dos grandes
mestres do babau, do mamulengo e ao mesmo tempo disputar espaços para esta
importante linguagem artística nos terrenos sempre áridos da modernidade. O
Boca de Cena atravessa desertos imensos. Mesmo assim, se joga nos becos. Atocaia
a própria sorte na guerrilha da estrada. Mas está sempre ali, nas barrancas e
nas beiradas. Abrindo seu espaço de navegação e induzindo a memória no
sentimento do povo. Tudo de uma forma lúdica, artística, inventiva.
Uma trupe que resiste às duras penas o controverso
estado de desagregação cultural que vivemos. Muito por culpa dos governos.
Muito mais ainda pela facilidade com que as multidões foram absorvendo a
cultura diluidora das indústrias do utilitarismo. As mesmas indústrias que
fabricam o medo, a violência, as pestes, os políticos canalhas e o abandono que
distancia um menino e uma menina da própria infância. Essa mesma distância que
afasta o público do direito de gargalhar com as bisbilhotices do Coelho Banzé,
do jeito de colecionar sorrisos por onde passa. Para quem não conhece, o Coelho
Banzé é o personagem criado para apresentar-se como mestre de cerimônia do Boca
de Cena. Um personagem que nos mostra o quanto é viva a arte de manipular
bonecos.
Assim, a comunicação é sempre imediata. Seja com o
público infantil, juvenil, adulto ou dos grandes mestres da vida que muitas
vezes não tiveram tempo de ver tudo ou ainda guardam na memória as histórias
contadas nas beiras de esquina, nos sítios, nas favelas e nas escolas por onde
essa expressão de grande apelo popular circula sempre que é solicitada. A
relação com o público é sempre extasiante. Independentemente do lugar. As
traduções que esses artistas, especialmente Artur
Leonardo, Amanda Viana e Valério,
trio que enfrenta sempre as tempestades da mesma caminhada. Os cuidados com os
textos, com as formas de abordagem do público, os gracejos medidos conforme a
capacidade de absorção do lugar. O diálogo com o ambiente escolar e cultural
das comunidades. Tudo isso faz com que o Boca de Cena esparrame por onde anda, o
que eu chamo de “pedagogia do afeto”.
Um outro aspecto que precisamos destacar no Boca de
Cena é o mergulho pesquisa. Já vi algumas vezes Artur se referir às influências
do Mestre Clóvis do Babau na sua paixão pela arte. Um encontro que a sua
infância em Guarabira proporcionou. Hoje o próprio Artur é um grande mestre bonequeiro.
Na verdade, Artur, Amanda e Valério foram muito além. Muito além da mera
pesquisa que carrega para os escaninhos da academia informações preciosas e
nunca mais devolve. A pesquisa realizada pela Companhia vai mais longe. Traz à
luz das plateias, nas mais diferentes comunidades, a história do Babau na
Paraíba. Incorpora a tradição dos bonecos na caminhada de sucesso de quem
merece o reconhecimento de ser um dos mais importantes grupos de teatro de
bonecos em todo o país.
Com os pés fincados na tradição, a inquietude
principalmente de Amanda e Artur - artistas imensos e imersos na arte de
representar - revela a resistência e a capacidade de superação de uma
perspectiva adversa para um tempo de criminalização da arte e da cultura por
hordas de infantes diversos, capitaneados pelos poderes caudilhescos e
oligarcas que, a rigor, nunca saiu do poder mesmo tendo perdido o comando de
alguns governos. Espremidos nesta crise permanente, o Boca de Cena vai formando
público ao mesmo tempo em que insiste em viver de arte quando isso significa
permanecer na corda bamba. Um risco permanente diante de uma plateia ora
atenta, ora desapegada da responsabilidade de garantir o que ensina e aprende
na medida que traz o riso, mas também carrega com todas as cores a memória viva.
Muito especialmente desse imenso país que é o Nordeste.
A capacidade de reinventar-se e recompor os caminhos
destruídos pela descontinuidade das estruturas de apoio para as culturas
populares. Antes de servir de exemplo enquanto prática de resistência é um
alerta contra o extermínio da diversidade cultural. Talvez esse seja o maior legado
de um grupo de artistas que já chega aos vinte anos ininterruptos de atividade
profissional. O Boca de Cena nos ensina a resistir, a encarar o carcará do
momento. Enfrenta com bravura todas as estações para florir sempre em cada
primavera. Mesmo quando todas as portas se fecham, o Boca insiste: vai ter
espetáculo, sim! Vai ter pesquisa, sim. Vai ter preservação da memória, sim. Essa
pequena e maravilhosa trupe me lembra muito Augusto Cesar Sandino: “não me
rendo. Não me vendo. Te nho de ser vencido.” A arte é um tipo de guerrilha que
esparrama flores. É desta forma que vejo a Cia. De Teatro de Bonecos Boca de
Cena.
Lau Siqueira
Lau Siqueira