Maria Valéria Rezende sempre diz que não tem
imaginação. “Eu só tenho memória”,
afirma. Acredito na sua sinceridade, mas desconfio de mim. Acredito que a autonomia
do leitor é inevitável e necessária ao texto. O texto literário é um ser vivo
em busca das dores e delícias da linguagem. Penso portanto que, ao sustentar
suas memórias, Valéria espeta o imaginário alheio com suas adagas narrativas. Mesmo
quando navega nas razões mais particulares. Vale mais o que se lê, diria Borges.
Por isso, sempre me sinto libertário nas minhas leituras. Se para Valéria a
memória está no texto, para mim a imaginação estará sempre na leitura. Roland
Barthes define melhor o que tento dizer de forma desajeitada. “Na cena do texto
não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e
diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto.” Quando
leio, me reescrevo no texto lido.
Contadora das próprias histórias, Maria Valéria
possui uma mente que experimenta a imaginação de forma continuada. Sobretudo
quando descreve a irrealidade cotidiana. Tudo em Valéria é lonjura e densidade.
Tudo é perto e distante. Em poucos minutos de conversa, derrama infâncias de
todas as idades. Seja nas imagens vivas de uma certa família santista dos seus
verdes anos. Seja entre os mais célebres personagens das suas lembranças. A
exemplo do tio-avô, Vicente de Carvalho. Poeta que tatuou seu nome na História
da Literatura Brasileira. Conhecido e reconhecido também como advogado e
político abolicionista, “tio Vicente” sempre foi um habitante do seu “vasto
mundo”. Cito este poeta para desenhar sua raiz literária. A autora vem de uma família
onde a leitura de grandes clássicos da literatura e a prática cotidiana da
escrita faziam parte das expressões de afeto familiar.
“Histórias nada sérias”, sessenta e quatro páginas, publicado
pela Editora Escaleras, certamente, carrega boas memórias. Memórias imaginadas
e inimagináveis, até. Histórias contadas em textos escritos com exclusividade para
o Clube do Conto da Paraíba. O Clube do Conto foi, aliás, a estrutura mais
anárquica, longeva e produtiva que conheci no meio literário brasileiro. Pelo
menos nas últimas três ou quatro décadas. Durante mais de dez anos,
semanalmente, escritores se reuniam no Shopping Sul, em João Pessoa, próximo à
casa da Valéria. Cada qual apresentava seus textos ao olhar crítico dos demais.
Os temas eram sempre discutidos e aprovados na semana anterior. Intelectuais
experimentados, escritores reconhecidos, repartiam espaços e carinhosas farpas com
iniciantes e curiosos. Ninguém poupava a mão de ninguém. A palmatória era
dolorosa. O Clube do Conto, na verdade, foi uma efetiva oficina de escrita
criativa. Semanalmente uma enxurrada de textos bons, médios e péssimos eram
lidos e aplaudidos ou desconstruídos até o limite da sensatez. Era, sobretudo,
necessário manter a amizade, o respeito, mas sobretudo a coerência. Era necessário
fazer da crítica feroz e sincera, mesmo dura, um elo firme com a boa
literatura.
O tempo passou. O Clube do Conto da Paraíba foi
sucumbindo aos poucos. Seja pelo falecimento de alguns dos seus membros ou por
outros motivos. Certamente, também pela fuga desesperada dos que entendiam que
melhor seria buscar outra ocupação para as tardes de sábado. Na verdade, o
Clube do Conto ensinava muito mais a ler que escrever. Escutar era um exercício
feroz. Sempre foi um encontro de amigos e amigas que se amavam e odiavam (menos,
menos...) em cada frase mais afeita às verdades da língua e seus arredores. Foi
neste ambiente, salvo os exageros propositais aqui derramados, que Valéria
escreveu os textos do livro aqui resenhado. Os temas eram escolhidos
aleatoriamente e cada um que mergulhasse na escrita de forma a atender as sensações
da navalhada crítica de cada sábado. A disciplina de escrever textos ficcionais
não garantia os louros. Eis, portanto, um livro individual que nasce de uma
aventura compartilhada. Tudo vivido num rico e inesquecível aprendizado
repartido entre cafés, torniquetes estéticos e boas risadas.
O Clube do Conto tinha um método muito bem definido
por Regina Behar na apresentação do livro: “ler, ouvir, escrever.” Nada mais. Aliás,
se fossemos aqui resumir a vida intensa de Maria Valéria Rezende, uma moça que
saiu de Santos aos dezoito anos para conhecer outros mundos, a definição de
Regina Behar cairia como uma luva: “ler, ouvir, escrever”. Ler, ouvir, escrever
e amar as pessoas tem sido a caminhada de Valéria pelo mundo desde sempre. Com
Paulo Freire Valéria aprendeu muito cedo a ler as linhas e rinhas da vida.
Reconhecendo as desigualdades e os perigos de uma existência permanentemente
ameaçada pela ditadura. (Aquela aberração política instalada nos melhores anos
da sua juventude.) O que recolheu de lá para cá, nas andanças pelo mundo e
pelos rincões da Paraíba, são extratos da memória sim, mas também de uma
maturidade intelectual bem consolidada. Valéria é hoje uma personalidade autêntica
e autônoma na literatura contemporânea brasileira. Apontada por muitos como uma
das mais produtivas e importantes escritoras brasileiras do início do século XXI.
Foi tecendo a teia da sua literatura de dentro pra fora. Inicialmente, longe
das rodas badaladas de Paraty. Todavia, muito rapidamente, também nas rodas
badaladas de qualquer ambiente literário. De grande leitora, tradutora e
educadora popular, tornou-se uma talentosa inventora das próprias memórias.
Muito do que foi construído a partir de uma
caminhada intensa e que hoje sustenta o vigor das suas palavras, vem dos
perigos vividos. Dias e noites engolidos pelos dragões de um tempo sombrio. Especialmente
nos anos pós AI-5 (Ato Institucional nº 5). Tempos que calaram o Brasil e fizeram
sangrar os porões. Segundo Eni P. Orlandi, no ensaio Maio de 1968: os silêncios
da memória: “falando de história e de política, não há como não considerar o
fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não
ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos.” Certamente é
dessas memórias que muitos dos personagens de Maria Valéria Rezende, hoje brotam
aos montes. Neste caso específico, a partir das provocações temáticas do Clube
do Conto. Algo que, de certa forma, recebe uma imensa luz nesta coletânea
publicada pela Escaleras, uma editora tão paraibana quanto o centenário Jackson
do Pandeiro.
É memória? É memória sim. Sempre digo pra mim mesmo
quando penso na densidade de Maria Valéria Rezende nos campos neutrais da
palavra. A imaginação surge naturalmente enquanto produto da leitura. Isso já
está assegurado e por isso reafirmo. Mas e a imaginação da autora? A imaginação
em Valéria é feito um trigal amanhecido. Afinal, ela própria é uma grande leitora.
Portanto, um ser de imaginação. Uma leitora de metalurgias inventadas –
palavras encandeadas no aço das delicadezas. Seu intenso exercício de escrita é
um tipo de combustão provocada. Tudo é lenha. Sua aprendizagem permitiu tornar
o cordel, por exemplo, elemento fundamental na formação das sabedorias necessárias
ao povo excluído. Valéria viveu tudo isso na pele. Mergulhou e emergiu com a
mesma força. Não apenas pela memória que sustenta suas asas, mas nos voos cada
vez mais ‘longinos’ da sua imaginação. (Calma. Explico já.)
O conto que abre o livro, Zumbi (página 9), nos
transporta imediatamente para uma experiência de velocidades. Um mergulho no
oco dos sentidos. Tudo num trançado narrativo de imensa fluidez. Como se as
palavras estivessem guardadas numa cacimba de verdades estocadas. Texto denso e
fulminante que leva o leitor por uma trilha de diversidades. Possibilita que a
leitura se transforme em cada parágrafo e se vista de boa prosa. Leitura de um
fôlego só, Zumbi é um texto que provoca o leitor em todos os sentidos. Seja
pela pegada dramatúrgica que poderia gerar um bom monólogo, seja pelo batuque
de prosa poética, capaz de transformar forma em conteúdo. Um tapete estendido
entre José Saramago e Décio Pignatari. Respira transgressão sabendo que os seus
ritos são outros, pois suas aventuras narrativas são naturalmente planejadas.
Nos demais contos, passeia pelos temas escolhidos.
Cumpre com rigor e disciplina seus milharais criativos. Milhares, talvez
milhões de páginas lidas com a voracidade de quem dedica sua existência ao
conhecimento, à solidariedade, ao amor necessário para que este mundo sobreviva
muito além de nós. Algumas vezes ela trabalha a memória como os gregos: reconhecendo-se
em relatos antigos, literários ou não. Experimenta miragens. Transgride
conceitos. Respira e espalha o ar rarefeito desses dias turbulentos. Em “Conto
Concreto” (pg 48) dialoga diretamente com o concretismo de Augusto e Haroldo de
Campos. Espalha signos, aliando-se ao branco da página, realizando uma certa fusão
das barroquices impulsionadas pela irreverência que, em verdade, é uma das suas
características enquanto mulher e enquanto escritora. Talvez por isso consiga
atrair a inquietude de tantos jovens leitores pelo país afora.
“Histórias Nada Sérias” é também um livro revelador
do caráter de Maria Valéria Rezende. Uma escritora desapegada dos paetês
festivos, das necessidades midiáticas de tanto pavão iludido. Falamos de um
livro que é um produto vivo do tear cotidiano que estende seu nome e sua
literatura pelo mundo. Valéria é a cara desse tal “Brasil profundo” que poucos
conhecem. Linda e transbordante. Esse Brasil que recolhe imagens em Jacaraú -
pequena cidade paraibana - e as espalha pelo mundo. As histórias que ela conta são
colheitas diárias de uma mente atenta, observadora. O prazer da leitura dos
seus livros é simples, mas não é fácil. Valéria
se esparrama num estilo singular. Aliás, estilo de quem não está preocupada com
estilo.
E assim seguem os contos. “A Capa”, escrito em
formato missivista, cuja tradição parece perder-se um pouco dentro da história
mais recente das literaturas. “A Chave”, lembra um pouco Maupassant. Para Otto Maria Carpeaux “Maupassant
não aceitou a fantasia, mas disse a verdade”. Um pouco como Valéria,
transitou entre a memória e a imaginação. A exemplo de Bola de Sebo, um dos
seus mais belos textos. Valéria nega a imaginação para afirmar uma literatura
enraizada em muitos saberes repartidos. Às vezes ela alerta claramente: “é
verdade este bilete”. Nos extratos de sensações vividas. Na sua capacidade de observar e
redesenhar fatos, reinventá-los para buscar a cumplicidade absoluta com o
leitor no fio da navalha. Talvez este seja o motivo pelo qual sempre insisto
que ao ler os livros de Maria Valéria Rezende somos também convidados para o
exercício da escrita. Nos tornamos coautores das suas memórias imaginadas.
Talvez essa imagem represente a porção pedagógica de uma escritora que trouxe
para a literatura sua vocação de educadora popular. Nas suas práticas cotidianas
Valéria escrevia até mesmo Cordel, conforme citei anteriormente. Usava a
literatura popular como método para ensinar aos trabalhadores rurais, os seus
direitos. Certamente que todas essas experiências estão muito bem guardadas nos
melhores afetos da escritora. Dessas memórias ela extrai personagens e os
transforma em respiradouros do seu texto. São nomes fictícios, histórias
inventadas para uma tradução literal dos nossos dias. Costumes, desejos,
anseios... metáforas de uma vida que segue no mesmo rumo, na mesma pisada, no
mesmo comprometimento militante de alguém que entregou sua vida ao amor em sua
mais profunda tradução.
São fundamentalmente
histórias o que ela extrai das suas andanças desde a infância. Como em “Uma
Lenda Pessoal” (pg 33), onde ela dialoga lindamente com os seus recuerdos mais
antigos. Parte de um lugar onde constrói e desconstrói elos familiares. Mas,
não apenas isso. Ela aborda temáticas complexas, como o Estupro (página 39) a
escritora descreve comportamentos extremados da nossa civilização machista e
moralista que, na verdade, não se sustenta nem mesmo no olho da goiabeira.
Aborda presenças constantes em nossas vidas, como o Medo (pg 45), um sentimento
que tantas vezes aprisiona a condição humana. Arrisca-se, inclusive, num
miniconto. Gênero que para o escritor gaúcho José Eduardo Degrazia, teve sua
origem nas prosas poéticas de Charles Baudelaire. “Outros Planos” (pg 51) é
outro miniconto cheio de imagens, escrito com permanente fluidez poética.
O estilo transgressor
construiu-se em Valéria com a naturalidade das folhas que caem no outono e
retornam verdes e belas, aliadas às flores da primavera. Ela experimenta o
tempo todo. Passeia pelas influências, para surfar na própria onda. Com Valéria
tem sido assim, quando publica um livro, já está preparando outros. Ela é como
um rio que se faz perene dialogando com as estiagens. Estimula ao estimular-se.
Se veste de amplidão, não apenas pela visibilidade dos muitos prêmios que
ganhou, mas pelo exercício permanente de leitura que seus escritos ofertam ao
público. Atinge não apenas os leitores
mais experimentados. A juventude leitora se apropriou da literatura de Maria Valéria
Rezende. Na “obra aberta” da autora, não é mais ela, mas o leitor ou a leitora,
quem opera a permanente transmutação das rotas. Tudo é mergulho numa imaginação
que não se rende à memória.
Os textos em “História
Nada Sérias” são muito vivos. São verdadeiras pulsações. Pululam o tempo todo
na contramão da elegância quase tipográfica da edição. São textos que dialogam
com um tipo de cotidiano onde passado e futuro se misturam. Com a imensidão e a
profundidade de temas que não se entregam de primeira. Memórias das cercanias e
das lonjuras de uma geração que não se entregou e não se entrega aos estampidos
do ego. A cada leitura, novas perspectivas desenhadas na contramão do que importa
para o mercado. Percebe-se um alto teor de todos os tons pregados na
impermanência que se estabelece, na invisibilidade que se exibe em vitrines
invisíveis. Se o leitor tiver degustado apenas a leitura deste livro, saberá
imediatamente que se trata de uma escritora que produz literatura de alta
voltagem. Algo que rege a delicadeza e o espanto.
A educadora social de
então, soube enfrentar com sabedoria a sua caminhada. Ela conheceu de perto as
atrocidades da política. Momentos duros, tensos, sangrentos. Cheio de embates e
combates. Momentos que não silenciaram a autora de “Quarenta dias”, “Outros
Cantos” e “Modo de Pegar Pássaros à Mão”, entre outras obras igualmente consagradas
pela crítica e pelo público. Ela se manteve suave. Manteve seus pés bem
pregados no solo nordestino, paraibano. Mas só depois de cruzar o mundo. Sabe
agradecer a oportunidade que a vida lhe deu de prosseguir sua missão. Essa
certeza de que valeu a pena e que nossos caminhos jamais se esgotam. Enfim, eis
uma leitura necessária para que as pessoas se apaixonem cada vez mais pela
escrita e pela existência de Maria Valéria Rezende.
Lau Siqueira, poeta.