domingo, 2 de março de 2008

Gestão Cultural e o Trem (Expresso) da História

(Anotações para uma vivência cotidiana)


Lau Siqueira

Pensar e executar políticas públicas jamais foi tarefa exclusiva de qualquer instituição pública. Faz-se necessária a construção de parcerias com capacidade de esticar mais e mais os braços burocráticos e executivos das engrenagens administrativas do setor público. O programa dos Pontos de Cultura, do MinC, é um bom exemplo de institucionalização dessas parcerias. Por outro lado, jamais teremos a plenitude de uma política de turismo parceira da cultura, por exemplo, se não tivermos como âncora a participação efetiva do micro e médio empresariado que, via de regra, trata-se de um segmento que “vive a cidade” e sobrevive do seu vigor econômico. Também, jamais teremos uma política cultural verdadeiramente educativa e cidadã se os gestores públicos não aprenderem a escutar as comunidades, aprendendo sobre seus mitos e incorporando os seus aprendizados. Não quero dizer com isto que devamos mergulhar no tabuleiro das demandas, de um lado e de outro, uma vez que a missão de uma política cultural conseqüente é muito mais de fomento que de promoção, em qualquer área.
Por outro lado, nos parece lógico – e até mesmo ideológico - o entendimento que as políticas culturais devam ser empurradas para dentro das estratégias de desenvolvimento econômico dos governos. Mas, não só para dentro das estratégias econômicas onde, aliás, serão geradas as possibilidades de mercado para os artistas. Também para o disciplinamento da vivência coletiva, num debate que certamente será profícuo tanto com o meio ambiente, quanto com a educação, a saúde, o patrimônio histórico ou mesmo com as especificidades do tecido social, algumas delas já institucionalizadas em diversas instâncias. Como é o caso das coordenadorias de mulheres, negros, índios, ciganos, diversidade sexual e outros segmentos ditos de “minoria” que, na verdade, formam a grande maioria do povo brasileiro.
Não é possível que ainda pensemos as políticas culturais apenas quanto às relações de poder que se criam em torno da execução de eventos, eleitorais, inclusive. Também não é possível que pensemos políticas de pedagogia cultural, sem que seja considerada a complexidade e a diversidade das causas da exclusão. Até porque é nesse momento que entra no debate, o fator econômico, ingenuamente refugado do debate por alguns. Essa bifurcação de contrários é, provavelmente, uma das tentativas mais próximas da exatidão e da elucidação dos nossos sonhos socialistas e libertários. A nossa utopia ainda é a mesma: entender a realidade para depois transformá-la. Este é um debate que infelizmente não cabe, por exemplo, no comportamento pós-eleitoral dos segmentos culturais mais próximos de uma perspectiva governamental. E em todos esses casos quem “paga a conta”, do sucesso ou do desastre, não é o gestor ou o empreendedor, mas o cidadão e a cidadã independentemente de ser ou não de um segmento cuja condição social permite sobras monetárias para bancar deleites estéticos ou simplesmente entretenimentos gerados pela cultura em seus diferentes níveis de industrialização ou resistência.
Eis o motivo pelo qual concluímos que, necessariamente, jamais a gestão cultural de qualquer município, estado ou país poderá ser de execução exclusiva das suas instituições culturais. A menos que o que se queira seja apenas deixar que fluam as vaidades pessoais em torno de questões indiscutíveis, como probidade e competência administrativa para a execução de programas que representam apenas a ponta de um iceberg ilustrativo. O caso mais emblemático é o das leis de incentivo. Afinal, bem ou mal administradas, não podemos supor que as políticas culturais devam resumir-se a elas e aos diversos tipos de editais públicos existentes ou pensados. Aliás, todos de importância indiscutível, mas cuja aplicação precisa ser ainda muito aperfeiçoada para deixar de representar interesses segmentados ou simplesmente de indivíduos, muitas vezes, nada confiáveis.
Tudo isso precisa acontecer dentro de uma conjunção de ações culturais, pensadas, política, estética e filosoficamente, num direcionamento de prioridades muito transparente porque executado a partir de um pensamento cuja expressão é - e é imprescindível que seja – pública e mutante, como propõe para o debate (estético, no caso) o livro “Obra Aberta”, do italiano Umberto Eco.
Não estamos aqui trazendo nenhuma novidade. Somente para ilustrar, já em 1964, o poeta Ferreira Gullar (cujo envolvimento social sempre foi inequívoco) publicou o ensaio “Cultura Posta em Questão”, às vésperas do golpe militar. Ele buscava discutir temas culturais, equacionando a cultura nacional dentro do quadro geral dos problemas brasileiros. Entendemos, portanto, que as políticas de gestão cultural não se resumem na execução burocrática com repercussão midiática direcionada muito mais para a vaidade dos gestores de plantão do que para as necessidades coletivas de informação e formação. A questão é bem mais ampla. Portanto, as reflexões mais sólidas são as que partem das experiências concretas que tanto as gestões populares quanto os movimentos sociais buscaram e buscam implementar.
No caso específico do “ensaio-manifesto” de Ferreira Gullar, os palcos dos debates foram os históricos Centros Populares de Cultura (CPCs), da UNE (União Nacional dos Estudantes) que contribuíram para as novas gerações com uma experiência de aplicação de uma política cultural cujos efeitos ainda exigem de nosotros uma compreensão mais exata. Afinal, são experiências concretas e históricas em busca da democratização da cultura dentro de um processo social mais abrangente, ainda que tenham refletido o autoritarismo stalinista nos rescaldos da Guerra Fria.
Não quero entrar no mérito do torniquete ideológico do partidão que, naquele momento histórico, segundo pensadores como Lúcia Santaella, acabava engessando a produção cultural dentro dos modelos equivocados do chamado “Realismo Socialista” que revelou expressões como Máximo Gorki e estrangulou uma infinidade de outros artistas e pensadores. Concretamente, esta experiência gerada na UNE, acabou não permitindo a expansão das suas raízes do nascedouro do movimento estudantil da época, às fábricas e ao campesinato. Ainda assim, constitui-se numa das principais referências para um processo de inclusão da cultura na pauta das lutas gerais da sociedade, apesar do equivocado patrulhamento estético e político que gerou.
“Romantismo” possível nesse início de Terceiro Milênio, é colocar em curso um projeto de execução permanente de políticas públicas para a cultura, num diâmetro que vai da pedagogia social, aos trâmites do desenvolvimento de uma perspectiva de mercado que, para os artistas, significa mercado de trabalho e para a sociedade, significa a abertura de mais uma porta para a geração de emprego e renda, formal e informal. Esta é uma questão de absoluta visibilidade até mesmo nos menores eventos culturais, onde os bares contratam serviços extras, a rede hoteleira precisa contratar mais para atender melhor e até mesmo a economia informal (que alguns querem tratam como invisível) mostra sua cara de satisfação com a movimentação monetária gerada por determinada ação cultural.
A necessidade de juntar, unir, montar e remontar o diagrama social que nos cerca, nasce no que há de mais evidente e palpável. Ou seja: nas relações profissionais, afetivas e políticas que cercam o nosso cotidiano. Nada disso está muito distante do “bom dia” dado ao porteiro, não por educação, mas por convicção da importância do seu trabalho para o resultado final de qualquer ação administrativa ou cultural, dentro de um determinado contexto.
Em última análise, penso que estamos diante de uma poderosa locomotiva. O trem da história não é mais uma Maria-Fumaça. Agora somos viajantes de um Trem-Bala. Vivemos a era das velocidades. As vantagens e desvantagens conjunturais dependem, primordialmente, da nossa capacidade de buscar compreender a nossa circunstância e o seu estado de ebulição permanente.
Estamos numa época que, viver sem reflexões permanentes significa referendar a degradação moral e ética, dados os graus de banalização dos valores que nos assombram pelo poder de publicidade, caminho pelo qual se vestem de normalidade. Coisa, aliás, que se estende ao debate estético, da tradição à vanguarda. Não se trata, pois, resumir-se à troca de acusações autofágicas que arrastam personalidades patológicas em torno de disputas que, calcadas em nítidos interesses pessoais, retardam o debate cultural e, conseqüentemente, a evolução da nossa sociedade para um patamar com menores índices de barbárie. Longe disso! Na verdade, “é preciso estar atento e forte”, afinal, não temos tempo de temer o futuro.

4 comentários:

Ler o Mundo História disse...

Certo, homem de tantos pousos, quero saber quando é que vc vai dar o ar da graça lá em nossa casa coletiva: poetas-lusofonos.blogspot.com

Ronaldo Monte disse...

Você não dorme, não? Eu fico até com vergonha de dizer que sou escritor. O título do blog está ótimo. O texto, idem. E eu estou sentindo falta de uma boa conversa. Um abraço. Rona.

Luiz Alberto Machado disse...

Maravilha poetaLau, estarei indicando nas minhas páginas.
Abração
www.luizalbertomachado.com.br

diovvani mendonça disse...

Caro Lau, veio bem a calhar para mim, esta sua tempestade. Luminosos raios para minha cabeça. A propósito, hoje, às 14:hs, terei um encontro com o secretário de cultura de minha cidade.

~^ ~Abraço ~^^ ~

P.E. Já enviou para mim a Autorização do PÃO & POESIA.
Fizemos aqui, uma parceria com o STEREOTECA (www.stereoteca.com.br). Os poetas convidados do PÃO & POESIA, farão as aberturas dos shows musicas durante toda a agenda de 2008 na biblioteca pública. O lançamento do PÃO & POESIA será no dia 30/03/08.

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