sábado, 30 de maio de 2009

O carnaval de João Pessoa: acertos e equívocos entre a tradição e a “mudernagem”

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Lau Siqueira*

Algumas questões me ocorreram após participar de uma mesa de debates no Tributo ao maestro Vilô, esta semana, no SESC. Na mesma mesa, a pesquisadora Ignez Ayala e Pedro Júnior, representando a Federação Carnavalesca. Em pauta a identidade cultural do carnaval da capital da Paraíba e a sua relação com o poder público. Questões de importância fundamental foram colocadas. Espero, possam servir para subsidiar um debate mais qualificado e aprofundado acerca da consolidação das políticas públicas para a cultura na cidade. Muito especialmente para as tradições e as modernidades que cercam o espírito carnavalesco.

O debate gerado em torno das três palestras proferidas pode-se dizer, justificou plenamente a nossa participação em um evento que tratava exatamente da preservação da memória de um personagem que é determinante para o estabelecimento de uma identidade para o nosso carnaval. Falamos do maestro Vilô! Não foram poucos os depoimentos que, no debate, fizeram questão de testemunhar essa relação direta do maestro com a raiz do carnaval da cidade. Algo que o imortaliza, indubitavelmente.

Algumas questões levantadas me parecem bem pertinentes. Por exemplo, a relação existente entre a “ordem” e a organização do carnaval. Leia-se como “ordem”, o poder de intervenção do poder público aliado aos interesses das organizações carnavalescas que, formal ou informalmente constituídas, levam as suas representações de cultura comunitária, com viés popular, para a avenida Duarte da Silveira todo ano. Uma ação, aliás, que transforma o carnaval não em uma festa popular, mas em um espetáculo popular confinado por esse ordenamento na avenida Duarte da Silveira.

O debate teve um poder imenso de nos conceder a possibilidade de, através do diálogo cordial, não deixar de ser contundente. Questões centrais do carnaval estiveram no centro do debate. Tais como a identidade cultural e a relação das agremiações carnavalescas e suas proximidades com os interesses partidários. Uma coisa formulada diretamente ou intermediada pelo poder público. Convenhamos, uma relação que vinha sendo historicamente entorpecida pela equação eleitoral estabelecida no jogo de poder, dentro e fora das agremiações. Uma questão que, diga-se de passagem, criou tamanha relevância na discussão do carnaval que até mesmo a captação de recursos, segundo pensam os carnavalescos, deve necessariamente passar pela batuta imantada do poder público. Não se fala em empoderamento das agremiações. Mesmo com editais pipocando em todo canto. Ou seja, as direções precisam abandonar o abandono e determinar o sopro dos ventos que trarão novos fôlegos para o carnaval. Isso lembra um pouco uma frase pronta que ouvi dia desses: “A culpa é minha! Eu coloco ela em quem eu quiser.”

Na verdade a discussão sobre carnaval ou qualquer outro segmento cultural não deveria, absolutamente, passar por ingerências do poder público. Ainda que não existam apropriações indébitas dos louros de um financiamento público. Seja pelo desvio tolerado e não comprovado, em alguns casos, referentes às subvenções. Seja pela intolerável ação do poder político se apropriando indevidamente de bens materiais e imateriais de caráter eminentemente público. As questões em pauta aquecem o debate e retiram de cena aqueles que transitam na injúria e no infortúnio da mentira como formas de perenidade nos mais diversos nichos da cadeia de interesses que envolve o poder político e econômico. Que fique entendido que poder político e poder econômico nem sempre possuem interesses compatíveis.

O que se coloca em questão é a necessidade ou não de confinamento do carnaval. Seja numa avenida e dentro de regras pré-estabelecidas para o que é, na verdade, um concurso de Ursos, Blocos, ;Escolas de Samba, Clubes de Frevo e Tribos Indígenas, entre outras manifestações de menor expressão. A necessidade de fazer com que sobreviva a espontaneidade popular do carnaval, com o desordenamento sendo, logicamente, compreendido por todos os atores envolvidos, sejam eles instituições ou pessoas.

O olhar corporativista, muitas vezes, afasta o carnaval do que seria talvez a sua melhor solução. Falo da convivência com outros fatores determinantes da cultura da cidade e a compreensão da diversidade. Esta foi a sustentação, por exemplo, de Beto do Bandeirantes da Torre que ressaltou como avanço o fato do ex-prefeito de Sousa, Salomão Gadelha ter concedido uma subvenção de R$ 10 mil às agremiações, deixando todas as demais expressões culturais da cidade sem qualquer perspectiva orçamentária no resto do ano. A relação não pode ser esta. Os recursos públicos são raros e finitos. Penso que o carnaval, para suas soluções deve abandonar o ufanismo de se considerar maior do que realmente é. O carnaval deve ter clara a sua identidade para poder medir o seu próprio valor diante das outras expressões que, naturalmente, habitam os tempos.

Nos referimos também ao Folia de Rua e sua identidade diluída. Da necessidade ou não de financiar blocos que guardam em si um anseio micaroanesco, apresentando foliões ensacados em abadas ou camisetas, guardados por cordas limitadoras. O que é, no mínimo, um estranho uso privado do espaço público. Afinal, eles também fazem parte das reivindicações da Associação Folia de Rua. Também veio à tona a necessidade ou não de intervenção do poder público, ordenando comportamentos, seja para impedir que blocos infantis como o Muriçoquinhas volte a tocar absurdos como “Beber Cair Levantar” ou que o último trio do Muriçocas entre na avenida tocando absurdos como “Eu gosto é de putaria”. Qual é o custo disso tudo? Qual o limite da liberdade de escolha? De quem é a responsabilidade de estabelecer o limite? Nos casos acima, devo reconhecer que nos faltou a busca pelo acordo prévio.

Vimos ainda que as distâncias entre o poder público e a relação política com as agremiações sofria de obscuridades que, por exemplo, nunca deixavam claro quanto cada agremiação recebia. Havia uma injustificável falta de transparência e, certamente, alguns favorecimentos absurdamente indevidos. Lembrei por ocasião do debate, de quando em uma negociação difícil em janeiro de 2005, quando as agremiações se negavam a receber apenas R$ 2.000,00 e o representante da Escola de Samba Mirassol levantou-se dizendo que aceitaria porque no ano de 2004, havia recebido apenas R$ 300,00. Como assim?

Em última análise, esperamos ter contribuído com algo positivo para o futuro de um carnaval que precisa, sobretudo, despir-se da própria hipocrisia e dos “protecionismos” predadores dos interesses coletivos e identitários. Louvo o professor Marcos Ayala defendendo a liberalização das expressões culturais do carnaval. Afinal, o carnaval é uma festa popular e deve mesmo ser feita e dirigida pelo povo. Ano passado, no período carnavalesco, antes do desfile na Duarte da Silveira, fui buscar minha filha na Semana da Nova Consciência, em Campina Grande. Na passagem por Cajá, vi que brincantes de um Boi atravessavam a BR, rumo aos campos libertos dos apelo midiáticos. Pensei, então, acerca do que poderia ainda vir a ser o nosso carnaval. No quanto, talvez, ainda houvesse que se revelar nesta importante festa popular.

Reconheço que entre erros e acertos, avançamos bastante em relação ao que era, na verdade, um encruado caldo de batatas, cheio de elementos estranhos ao que verte da melhor verve do nosso povo brasileiro. Reconheço, principalmente, que muito ainda temos que avançar. Afinal, estamos tratando de cultura numa terra onde grande parte da população vive numa total vulnerabilidade social, excluída historicamente dos processos de desenvolvimento econômico, social e político. Uma exclusão que revela seus poros e a pulsação da resistência nas expressões mais autênticas da cultura popular.

Axé, Balula!

* Dedico esse texto ao mestre João Balula, que me ensinou o pouco que sei sobre o Carnaval de João Pessoa.

domingo, 17 de maio de 2009

A poesia das enxadas em Babilak Bah



Lau Siqueira


Negro. Paraibano. Artista. Um cara com uma carga ancestral imensa. Assim é Babilak Bah. O menino cuja inquietude, um dia, chamou a atenção de José Américo de Almeida. Num dos muitos começos dos anos oitenta, ele me disse: “Vou embora! Vou andar pelo mundo. Vou trabalhar com percussão e poesia!” E lá se foi meu amigo, com seu sorriso sempre tão imenso. Anos depois soube do seu reconhecido trabalho de percussão com enxadas. Uma radicalidade experimental erigindo sonoridades inventivas nos ruídos da capina cotidiana. Uma busca concreta para a feitura de signos musicais que, algumas vezes, transpunham-lhe os sentidos.

Babilak passou, então, a compreender o enigma dele próprio. Dos olhos fixos do menino, encantado com uma biblioteca imensa na casa de José Américo, nascia o diálogo do artista com o mundo. Ele sabia que, independentemente das suas vestes, seus sapatos seriam de palavras. Ainda que muitas vezes caminhasse pelo silêncio. Babilak Bah, com sua transgressão, criou para o universo lúdico dos nossos dias, a poética das enxadas. No simbolismo de quem passou pelos sonhos de uma reforma agrária da sua própria condição quilombola.

Hoje, tudo isso transborda pelos palcos do Brasil. A orquestra de enxadas é a mais intensa procura pela “batida perfeita”, como diria Marcelo D2. Babilak parece dialogar com Arthur Rimbaud, que disse: “Tua memória e teus sentidos serão o único alimento do teu impulso criativo.” Compreendo-o assim. Percebo que o seu talho no destino foi o componente fundamental da formação do artista que é. Tudo numa integralidade que passa necessariamente pela música, pela poesia, pela tecnologia, pela patologia humana e, sobretudo, tão intensamente pela sacudida no esparramo que é a ilusão do conceito fechado sobre as coisas. Na arte de Babilak, navegam vertentes audiovisuais que passam pelo cinema novo e pela nova TV que é o PC nosso de cada um. Ele reconhece o poder das novas mídias e das novas possibilidades de realizar o baile do futurismo primitivo. Tudo isso inscrito numa contemporaneidade que aos poucos vai despertando de si mesma.

Certamente que faço aqui um esforço enorme para não embarcar numa análise da sua obra. Seria, certamente, uma análise de forma fragmentada. Simplesmente porque o trabalho deste artista é um complexo jogo de memória. E tudo ocorre numa área determinada, num plano onde as inflexões mínimas e máximas da sua existência, refletem-se num elo de imagens vivas, pulsantes dentro da sua capacidade de reagir aos infortúnios de uma sociedade prevaricadora da dignidade alheia. Coisa que tantas vezes se reflete até mesmo em leituras que não passam de grossuras da vaidade alheia ou inveja dos que não arriscam a pele no erro. Como dizia James Joyce, “um homem de gênio não comete erros. Seus erros são voluntários e são os portais da descoberta.” Babilak é um artista mergulhado nos “portais da descoberta”.

A arte de Babilak Bah é, portanto, reflexo direto de um conjunto de reações íntimas do artista diante da experiência esmagadoramente bela e ácida que é viver. Do Enxadário ao Trem Tan-tan (trabalho terapêutico de musicalização, com pessoas portadoras de distúrbios mentais), onde seu diálogo é direto com a loucura, num mundo de uma racionalidade absolutamente insana. Preciso dizer que Babilak Bah, hoje radicado no Belo Horizonte das Minas Gerais, realiza um dos trabalhos estéticos mais instigantes neste início de milênio. Misturando as cores dum arco-íris de possibilidades, captado por uma mente que sabe o momento da colheita porque tem suas convicções sobre todos os processos do plantio.

Do simbólico ao sonoro, o trabalho que desaguou no Enxadário tem rodado por aí. Com amplas possibilidades no mercado alternativo europeu. E é exatamente onde deverá conjugar-se com o oceano das suas próprias possibilidades. Tudo exatamente a partir da distância que guarda, solenemente, dos apelos ao senso-comum. Coisa corriqueira em páginas consideradas nobres, muitas vezes, pela miopia cultural à qual resistimos no crematório da inteligência brasileira.

A sua poesia, de tão sólida, parece que não desmancha no ar. Ganha novas formas. Vai acoplando-se aos tempos passados e futuros. E prossegue transmutante de si mesma, viajando pelos véus do invisível. Incorporando saberes. Babilak é um artista que encontrou o seu processo nas ribaltas da própria circunstância. Por isso não subtrai nunca a integralidade das suas matilhas criativas. Vai assim produzindo uma arte madura. Uma arte que transita por universos capacitadores da sua própria condição. É poesia, na plasticidade dos motivos. É música, na medida do que impõe aos rumos da arte contemporânea. É arte... é arte!

P S > Assista Zen Preto, de Babilak Bah, no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=bYBIj4qUVTQ&feature=related

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Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...