segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Entre a imaginação e a memória






Maria Valéria Rezende sempre diz que não tem imaginação.  “Eu só tenho memória”, afirma. Acredito na sua sinceridade, mas desconfio de mim. Acredito que a autonomia do leitor é inevitável e necessária ao texto. O texto literário é um ser vivo em busca das dores e delícias da linguagem. Penso portanto que, ao sustentar suas memórias, Valéria espeta o imaginário alheio com suas adagas narrativas. Mesmo quando navega nas razões mais particulares. Vale mais o que se lê, diria Borges. Por isso, sempre me sinto libertário nas minhas leituras. Se para Valéria a memória está no texto, para mim a imaginação estará sempre na leitura. Roland Barthes define melhor o que tento dizer de forma desajeitada. “Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto.” Quando leio, me reescrevo no texto lido.

Contadora das próprias histórias, Maria Valéria possui uma mente que experimenta a imaginação de forma continuada. Sobretudo quando descreve a irrealidade cotidiana. Tudo em Valéria é lonjura e densidade. Tudo é perto e distante. Em poucos minutos de conversa, derrama infâncias de todas as idades. Seja nas imagens vivas de uma certa família santista dos seus verdes anos. Seja entre os mais célebres personagens das suas lembranças. A exemplo do tio-avô, Vicente de Carvalho. Poeta que tatuou seu nome na História da Literatura Brasileira. Conhecido e reconhecido também como advogado e político abolicionista, “tio Vicente” sempre foi um habitante do seu “vasto mundo”. Cito este poeta para desenhar sua raiz literária. A autora vem de uma família onde a leitura de grandes clássicos da literatura e a prática cotidiana da escrita faziam parte das expressões de afeto familiar.
“Histórias nada sérias”, sessenta e quatro páginas, publicado pela Editora Escaleras, certamente, carrega boas memórias. Memórias imaginadas e inimagináveis, até. Histórias contadas em textos escritos com exclusividade para o Clube do Conto da Paraíba. O Clube do Conto foi, aliás, a estrutura mais anárquica, longeva e produtiva que conheci no meio literário brasileiro. Pelo menos nas últimas três ou quatro décadas. Durante mais de dez anos, semanalmente, escritores se reuniam no Shopping Sul, em João Pessoa, próximo à casa da Valéria. Cada qual apresentava seus textos ao olhar crítico dos demais. Os temas eram sempre discutidos e aprovados na semana anterior. Intelectuais experimentados, escritores reconhecidos, repartiam espaços e carinhosas farpas com iniciantes e curiosos. Ninguém poupava a mão de ninguém. A palmatória era dolorosa. O Clube do Conto, na verdade, foi uma efetiva oficina de escrita criativa. Semanalmente uma enxurrada de textos bons, médios e péssimos eram lidos e aplaudidos ou desconstruídos até o limite da sensatez. Era, sobretudo, necessário manter a amizade, o respeito, mas sobretudo a coerência. Era necessário fazer da crítica feroz e sincera, mesmo dura, um elo firme com a boa literatura.

O tempo passou. O Clube do Conto da Paraíba foi sucumbindo aos poucos. Seja pelo falecimento de alguns dos seus membros ou por outros motivos. Certamente, também pela fuga desesperada dos que entendiam que melhor seria buscar outra ocupação para as tardes de sábado. Na verdade, o Clube do Conto ensinava muito mais a ler que escrever. Escutar era um exercício feroz. Sempre foi um encontro de amigos e amigas que se amavam e odiavam (menos, menos...) em cada frase mais afeita às verdades da língua e seus arredores. Foi neste ambiente, salvo os exageros propositais aqui derramados, que Valéria escreveu os textos do livro aqui resenhado. Os temas eram escolhidos aleatoriamente e cada um que mergulhasse na escrita de forma a atender as sensações da navalhada crítica de cada sábado. A disciplina de escrever textos ficcionais não garantia os louros. Eis, portanto, um livro individual que nasce de uma aventura compartilhada. Tudo vivido num rico e inesquecível aprendizado repartido entre cafés, torniquetes estéticos e boas risadas.

O Clube do Conto tinha um método muito bem definido por Regina Behar na apresentação do livro: “ler, ouvir, escrever.” Nada mais. Aliás, se fossemos aqui resumir a vida intensa de Maria Valéria Rezende, uma moça que saiu de Santos aos dezoito anos para conhecer outros mundos, a definição de Regina Behar cairia como uma luva: “ler, ouvir, escrever”. Ler, ouvir, escrever e amar as pessoas tem sido a caminhada de Valéria pelo mundo desde sempre. Com Paulo Freire Valéria aprendeu muito cedo a ler as linhas e rinhas da vida. Reconhecendo as desigualdades e os perigos de uma existência permanentemente ameaçada pela ditadura. (Aquela aberração política instalada nos melhores anos da sua juventude.) O que recolheu de lá para cá, nas andanças pelo mundo e pelos rincões da Paraíba, são extratos da memória sim, mas também de uma maturidade intelectual bem consolidada. Valéria é hoje uma personalidade autêntica e autônoma na literatura contemporânea brasileira. Apontada por muitos como uma das mais produtivas e importantes escritoras brasileiras do início do século XXI. Foi tecendo a teia da sua literatura de dentro pra fora. Inicialmente, longe das rodas badaladas de Paraty. Todavia, muito rapidamente, também nas rodas badaladas de qualquer ambiente literário. De grande leitora, tradutora e educadora popular, tornou-se uma talentosa inventora das próprias memórias.
Muito do que foi construído a partir de uma caminhada intensa e que hoje sustenta o vigor das suas palavras, vem dos perigos vividos. Dias e noites engolidos pelos dragões de um tempo sombrio. Especialmente nos anos pós AI-5 (Ato Institucional nº 5). Tempos que calaram o Brasil e fizeram sangrar os porões. Segundo Eni P. Orlandi, no ensaio Maio de 1968: os silêncios da memória: “falando de história e de política, não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos.” Certamente é dessas memórias que muitos dos personagens de Maria Valéria Rezende, hoje brotam aos montes. Neste caso específico, a partir das provocações temáticas do Clube do Conto. Algo que, de certa forma, recebe uma imensa luz nesta coletânea publicada pela Escaleras, uma editora tão paraibana quanto o centenário Jackson do Pandeiro.

É memória? É memória sim. Sempre digo pra mim mesmo quando penso na densidade de Maria Valéria Rezende nos campos neutrais da palavra. A imaginação surge naturalmente enquanto produto da leitura. Isso já está assegurado e por isso reafirmo. Mas e a imaginação da autora? A imaginação em Valéria é feito um trigal amanhecido. Afinal, ela própria é uma grande leitora. Portanto, um ser de imaginação. Uma leitora de metalurgias inventadas – palavras encandeadas no aço das delicadezas. Seu intenso exercício de escrita é um tipo de combustão provocada. Tudo é lenha. Sua aprendizagem permitiu tornar o cordel, por exemplo, elemento fundamental na formação das sabedorias necessárias ao povo excluído. Valéria viveu tudo isso na pele. Mergulhou e emergiu com a mesma força. Não apenas pela memória que sustenta suas asas, mas nos voos cada vez mais ‘longinos’ da sua imaginação. (Calma. Explico já.)

O conto que abre o livro, Zumbi (página 9), nos transporta imediatamente para uma experiência de velocidades. Um mergulho no oco dos sentidos. Tudo num trançado narrativo de imensa fluidez. Como se as palavras estivessem guardadas numa cacimba de verdades estocadas. Texto denso e fulminante que leva o leitor por uma trilha de diversidades. Possibilita que a leitura se transforme em cada parágrafo e se vista de boa prosa. Leitura de um fôlego só, Zumbi é um texto que provoca o leitor em todos os sentidos. Seja pela pegada dramatúrgica que poderia gerar um bom monólogo, seja pelo batuque de prosa poética, capaz de transformar forma em conteúdo. Um tapete estendido entre José Saramago e Décio Pignatari. Respira transgressão sabendo que os seus ritos são outros, pois suas aventuras narrativas são naturalmente planejadas.

Nos demais contos, passeia pelos temas escolhidos. Cumpre com rigor e disciplina seus milharais criativos. Milhares, talvez milhões de páginas lidas com a voracidade de quem dedica sua existência ao conhecimento, à solidariedade, ao amor necessário para que este mundo sobreviva muito além de nós. Algumas vezes ela trabalha a memória como os gregos: reconhecendo-se em relatos antigos, literários ou não. Experimenta miragens. Transgride conceitos. Respira e espalha o ar rarefeito desses dias turbulentos. Em “Conto Concreto” (pg 48) dialoga diretamente com o concretismo de Augusto e Haroldo de Campos. Espalha signos, aliando-se ao branco da página, realizando uma certa fusão das barroquices impulsionadas pela irreverência que, em verdade, é uma das suas características enquanto mulher e enquanto escritora. Talvez por isso consiga atrair a inquietude de tantos jovens leitores pelo país afora.

“Histórias Nada Sérias” é também um livro revelador do caráter de Maria Valéria Rezende. Uma escritora desapegada dos paetês festivos, das necessidades midiáticas de tanto pavão iludido. Falamos de um livro que é um produto vivo do tear cotidiano que estende seu nome e sua literatura pelo mundo. Valéria é a cara desse tal “Brasil profundo” que poucos conhecem. Linda e transbordante. Esse Brasil que recolhe imagens em Jacaraú - pequena cidade paraibana - e as espalha pelo mundo. As histórias que ela conta são colheitas diárias de uma mente atenta, observadora. O prazer da leitura dos seus livros é simples, mas não é fácil.  Valéria se esparrama num estilo singular. Aliás, estilo de quem não está preocupada com estilo.

E assim seguem os contos. “A Capa”, escrito em formato missivista, cuja tradição parece perder-se um pouco dentro da história mais recente das literaturas. “A Chave”, lembra um pouco Maupassant. Para Otto Maria Carpeaux “Maupassant não aceitou a fantasia, mas disse a verdade”. Um pouco como Valéria, transitou entre a memória e a imaginação. A exemplo de Bola de Sebo, um dos seus mais belos textos. Valéria nega a imaginação para afirmar uma literatura enraizada em muitos saberes repartidos. Às vezes ela alerta claramente: “é verdade este bilete”. Nos extratos de sensações vividas. Na sua capacidade de observar e redesenhar fatos, reinventá-los para buscar a cumplicidade absoluta com o leitor no fio da navalha. Talvez este seja o motivo pelo qual sempre insisto que ao ler os livros de Maria Valéria Rezende somos também convidados para o exercício da escrita. Nos tornamos coautores das suas memórias imaginadas. Talvez essa imagem represente a porção pedagógica de uma escritora que trouxe para a literatura sua vocação de educadora popular. Nas suas práticas cotidianas Valéria escrevia até mesmo Cordel, conforme citei anteriormente. Usava a literatura popular como método para ensinar aos trabalhadores rurais, os seus direitos. Certamente que todas essas experiências estão muito bem guardadas nos melhores afetos da escritora. Dessas memórias ela extrai personagens e os transforma em respiradouros do seu texto. São nomes fictícios, histórias inventadas para uma tradução literal dos nossos dias. Costumes, desejos, anseios... metáforas de uma vida que segue no mesmo rumo, na mesma pisada, no mesmo comprometimento militante de alguém que entregou sua vida ao amor em sua mais profunda tradução.

São fundamentalmente histórias o que ela extrai das suas andanças desde a infância. Como em “Uma Lenda Pessoal” (pg 33), onde ela dialoga lindamente com os seus recuerdos mais antigos. Parte de um lugar onde constrói e desconstrói elos familiares. Mas, não apenas isso. Ela aborda temáticas complexas, como o Estupro (página 39) a escritora descreve comportamentos extremados da nossa civilização machista e moralista que, na verdade, não se sustenta nem mesmo no olho da goiabeira. Aborda presenças constantes em nossas vidas, como o Medo (pg 45), um sentimento que tantas vezes aprisiona a condição humana. Arrisca-se, inclusive, num miniconto. Gênero que para o escritor gaúcho José Eduardo Degrazia, teve sua origem nas prosas poéticas de Charles Baudelaire. “Outros Planos” (pg 51) é outro miniconto cheio de imagens, escrito com permanente fluidez poética.

O estilo transgressor construiu-se em Valéria com a naturalidade das folhas que caem no outono e retornam verdes e belas, aliadas às flores da primavera. Ela experimenta o tempo todo. Passeia pelas influências, para surfar na própria onda. Com Valéria tem sido assim, quando publica um livro, já está preparando outros. Ela é como um rio que se faz perene dialogando com as estiagens. Estimula ao estimular-se. Se veste de amplidão, não apenas pela visibilidade dos muitos prêmios que ganhou, mas pelo exercício permanente de leitura que seus escritos ofertam ao público.  Atinge não apenas os leitores mais experimentados. A juventude leitora se apropriou da literatura de Maria Valéria Rezende. Na “obra aberta” da autora, não é mais ela, mas o leitor ou a leitora, quem opera a permanente transmutação das rotas. Tudo é mergulho numa imaginação que não se rende à memória.
Os textos em “História Nada Sérias” são muito vivos. São verdadeiras pulsações. Pululam o tempo todo na contramão da elegância quase tipográfica da edição. São textos que dialogam com um tipo de cotidiano onde passado e futuro se misturam. Com a imensidão e a profundidade de temas que não se entregam de primeira. Memórias das cercanias e das lonjuras de uma geração que não se entregou e não se entrega aos estampidos do ego. A cada leitura, novas perspectivas desenhadas na contramão do que importa para o mercado. Percebe-se um alto teor de todos os tons pregados na impermanência que se estabelece, na invisibilidade que se exibe em vitrines invisíveis. Se o leitor tiver degustado apenas a leitura deste livro, saberá imediatamente que se trata de uma escritora que produz literatura de alta voltagem. Algo que rege a delicadeza e o espanto.

A educadora social de então, soube enfrentar com sabedoria a sua caminhada. Ela conheceu de perto as atrocidades da política. Momentos duros, tensos, sangrentos. Cheio de embates e combates. Momentos que não silenciaram a autora de “Quarenta dias”, “Outros Cantos” e “Modo de Pegar Pássaros à Mão”, entre outras obras igualmente consagradas pela crítica e pelo público. Ela se manteve suave. Manteve seus pés bem pregados no solo nordestino, paraibano. Mas só depois de cruzar o mundo. Sabe agradecer a oportunidade que a vida lhe deu de prosseguir sua missão. Essa certeza de que valeu a pena e que nossos caminhos jamais se esgotam. Enfim, eis uma leitura necessária para que as pessoas se apaixonem cada vez mais pela escrita e pela existência de Maria Valéria Rezende.


Lau Siqueira, poeta.


domingo, 3 de fevereiro de 2019

SOBRE VIVER NO BRASIL EM 2019


Somos um povo preconceituoso por natureza. Um povo afeito aos protocolos mais inúteis. Isso nada tem a ver com ideologia. Muito menos com a elegância da qual somos naturalmente despidos. Algumas vezes esquerda e direita se equivalem. Principalmente nos extremos. Leio críticas ao deputado que foi tomar posse com chapéu de cowboy e colocou a esposa no colo. Também leio pilhérias quanto ao decote de certa deputada. No entanto, o fato do chapéu e do colo, bem como dos seios da deputada, não representam nada diante dos motivos pelos quais se elegeram.
O mesmo ocorre com Alexandre Frota. Fazer filmes pornô foi o auge da sua carreira de ator e homem medíocre. Não importa. Quem curte assiste. Quem não curte, não assiste. O que me preocupa neles é a política de extermínio que representam e defendem com fúria. O que me preocupa mais ainda é repentina simpatia por Mourão, por ser mais esperto que o pateta eleito. Parece que o Brasil anda atordoado. Um ministro nos chama de ladrões e ninguém bate panela. Estamos resumidos ao silêncio inútil das redes sociais.
No mais, sequer conseguimos debater sobre as políticas de privatizações aceleradas mais uma vez em curso. Mesmo após um crime sequencial conduzido por uma Vale privatizada. As tragédias criminosas de Mariana e Brumadinho são heranças liberais. Mas, logo cairão no esquecimento. A mídia cuida disso. Se a Vale do Rio Doce fosse estatal certamente os defensores da privatização estariam fazendo escarcéu. Parece que perdemos o foco das coisas. O que menos importa é o que mais repercute. Enfim, só pensando aqui com meus botões nesta manhã descamisada.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...