por Lau Siqueira
Já passaram duas
décadas, penso eu, desde o dia em que recebi um inesperado telefonema: “Siqueira está? É Geraldo Vandré.”
Infelizmente eu não estava. O motivo da ligação de Vandré foi uma carta que
enviei sugerindo que relatasse de próprio punho suas memórias artísticas. Algo
que passasse longe das especulações sobre o mito. A sugestão partiu da leitura
atenta dos artigos que o autor de pérolas como “Pequeno Concerto que Virou
Canção” escrevia naquela época para o Jornal O Norte. Vandré se interessou pela
minha sugestão e por isso ligou. Ficou de me procurar novamente, mas nunca nos
encontramos. Uma publicação com suas impressões sobre um período dos mais ricos
da música brasileira, que vai da Bossa Nova aos grandes festivais, me parece,
continuará em falta nas boas livrarias.
Acompanhei atentamente,
como tantos da minha geração, os mistérios do desaparecimento de Vandré da cena
musical brasileira. Nos anos 80, ainda morando em Porto Alegre, comprei um LP
de um grupo mineiro chamado Temucorda, que gravou um “Tributo a Vandré”. Eram
versos tipo: “foi preso e torturado/ por ser brasileiro nato”. O autor afirmava
em tom lamentoso, panfletário, que “acabaram com Vandré”. Não foram poucos os comentários semelhantes que
ouvi a respeito. Notícias das quais me envergonho de ter acreditado.
Principalmente depois que Simone gravou “Pra não dizer que não falei das flores”,
cresceram as especulações.
Sou apenas um
entre tantos apaixonados pela obra deste artista singular. Seu disco “Das Terras
de Benvirá” é uma das obras mais fascinantes da história da música
brasileira. Um disco que apresenta um
Vandré extremamente ousado. Enraizado na
tradição musical nordestina, mas também propondo uma estética futurista e
transgressora. Experimental, na medida
em que se utiliza de sonoridades primitivas, apaixonadas, conectadas ao
contemporâneo, para compor peças de beleza única. Um disco forte,
representativo do que há de mais original na música contemporânea mundial. Aliás,
aos incautos é preciso informar que a obra de Vandré não se resume à Disparada e Pra não dizer que não falei das flores. A verdade é que o conjunto
da sua produção deverá eternizá-lo. Mesmo num país que fabrica aberrações rebolantes
de ampla repercussão. A música de Geraldo Vandré desculpem os clássicos da
bandalheira musical brasileira, viajará pelos séculos. Enquanto que um Michel Teló
da vida haverá de empanturrar-se de exposição midiática de quinta categoria para
ser engolido pelo esquecimento.
Movido por
essas inexplicáveis sinergias da existência, acabei encontrando semana passada,
no youtube, uma entrevista de Vandré, na Globo News. O que demonstra que a
Globo tem capacidade de realizar grandes produções, apesar de preferir a
empulhação. Na entrevista (cujo link pode ser conferido no final deste artigo),
Vandré revela-se um homem extremamente lúcido, digno e doce. A intimidade do
gênio é exposta. E até o que fica nas entrelinhas não deixa dúvidas. Esta
entrevista foi, provavelmente, um poderoso ato de subversão do mito. A Globo
News tentou polemizar, mas foi desmontada pela decência e tranquilidade de
Vandré. Vandré possui alguns poucos e bons amigos aqui na Paraíba, entre eles o jornalista e também meu amigo Ricardo
Anísio.
Ao assistir
a entrevista você poderá conferir que a grande “subversão” de Vandré foi
negar-se ao jogo sujo do sistema em qualquer tempo. Ele representa um NÃO gigantesco à cultura de massas, às
políticas de pão e circo. O tempo todo na entrevista é isto o que fica mais
evidente. Questões que a democracia brasileira não soube resolver, são pautadas
pelo artista e não pelo entrevistador. Por exemplo, no que se refere à máfia dos
direitos autorais, ainda nas mãos de uma instituição privada e sombria como o
ECAD. Vandré não aceitou submeter-se ao processo de violenta massificação da
música brasileira que esgotou gênios como Edu Lobo, Cartola, Tom Jobim, Chico
Buarque e outros poucos que transitam na história da MPB. Em nome da memória da
sua própria obra, Vandré teve a coragem de dizer não aos vampiros. Exilou-se na
própria dignidade, rebelando-se contra a deflagração de um procedimento
contínuo de banalização dos valores culturais do nosso país.
Como o próprio
Vandré afirma, “subversivo é ser erudito num país subdesenvolvido”. Ser
subversivo é negar-se ao jogo fácil do lucro, da submissão aos holofotes e a
uma fração poderosa da mídia que é capaz de aproximar-se de um gênio sem saber
compreendê-lo, querendo que ele dê as respostas mais convenientes aos
interesses comerciais da sua canalha patronal. Vandré conseguiu driblar com a
elegância de um Ademir da Guia, o arco de falácias da Globo News, armado para uma
expectativa falsa de “revelações bombásticas”. Assim
como Rimbaud que parou de escrever na juventude, ou Raduan Nassar que esgotou
sua participação na literatura numa obra genial e mais alguns fragmentos, Vandré
assumiu sua resistência. Pareceu claro nesta entrevista que ele soube separar o
joio do trigo e faz uma análise real da conjuntura política na qual a sociedade
brasileira vai esgotando uma a uma suas etapas para, talvez, sonhar com algo
que se possa mesmo chamar de cidadania. A avalanche consumista (e este é o
maior fundamentalismo, segundo Milton Campos) foi mesmo criando ao invés de uma
civilização determinante para o futuro do planeta, um amontoado do qual
precisamos agora dar conta para o bem dos nossos netos. Ah, Globo News... Com
licença: O país de Geraldo Vandré também é o meu país. Vocês moram no país da Revista
Veja. Ao contrário do que pensam alguns, Vandré não está só. Viva Geraldo
Vandré!