quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Aqueles poemas que se amontavam em versos.”



por Lau Siqueira
A poesia estebelece laços e nós na vida de um escritor. As distâncias se tornam mínimas e não raras vezes as proximidades afastam certezas. Todavia este não seria este o início de um necessário mergulho no caos das nossas certezas? Há uma desigualdade profunda que nos torna profundamente iguais quando o assunto é poesia e mais ainda quando o fato é a publicação de um livro de poemas. Estamos, pois, diante de mais um silêncio de pedras nesta leitura do livro do paranaense Júlio Almada.

Não é muito diferente para qualquer poeta brasileiro publicar e lançar um livro neste momento de profundo desprezo do mercado editorial pela produção contemporânea. Também precisamos reconhecer que publicar deixou de ser, há muito tempo, algo extraordinário. Cada livro de poemas lançado é uma imensa guerrilha para o autor. Tanto no que se refere ao investimento gráfico quando ao que é mais árduo ainda: o reconhecimento dos pares e de uma crítica literária que, ao contrário da poesia, não se tornou mais intensa com o advento da internet, das redes sociais, da facilidade de publicar sem que se tenha de passar pelos diversos olhares “canônicos” ou caninos. Publicar, pois, não representa mais qualquer tipo de reconhecimento, mas antes de tudo o pódium das nossas guerrilhas pessoais que sempre paga um preço elevado pela nossa permanência na cena literária brasileira.

É neste ambiente que chega o livro “De olho: embriagado” do poeta Julio Almada. Este é o título, também, de um dos 29 poemas que compõe esta coletânea. Certamente que temos aqui um conjunto de experiências trazidas pelo autor que, assim como todos e todas que fazem da palavra uma sangria inevitável, chega em busca da poesia pois entende que a poesia não é um limiar da linguagem, mas um sumidouro de incongruências e incertezas que pode ou não surpreender, pode ou não esvair-se no esquecimento. Ainda assim, acreditamos que todo livro de poemas vale a eternidade de um instante, pelo que exasperou nos suores do autor para uma experimentação estética e, também, de transbordamento no mundo.

Temos aqui um conjunto de versos que vertem na própria razão de revelar o ato pessoano de fingir a dor que deveras sente. É como se o poeta Julio Almada expelisse suas dores em dores e doses que jamais serão propriedades da sua alma. A dor desdenhada no poema (ele sabe disso) não expressa o buraco negro de um tsunami íntimo, nem se revela se não pelo esparso descoforto inevitável do poema enquanto experimentação de linguagens que dialogam com o cotidiano, com as confissões ao mesmo tempo inevitáveis, irrevogáveis e inaceitáveis para a metalurgia da palavra. Este é, sobretudo, um sentimento que perpassa todos os poemas deste livro que agora toma corpo e segue seu destino para muito além do que possa este minguado olhar que aqui deposito.

A poesia tem seus próprios motivos e a cada verso escrito é como houvesse nascido enquanto discurso comum para todos nós, poetas. Tudo é uma questão de comvivência com silêncios arrebatadores que não suprem a algazarra das palavras. São artimanhas íntimas, passagens de uma lírica que transborda no coração enquanto representação do que temos de mais denso em termos de existência e mesmo de confluência humana: “Os sentimentos não são fardos. Pesados e/ pesarosos tornam-se braços e pernas não/ compostos de maneira edificante pela vertiginosa/ manifestação de sentimentos durante uma vida.” O poeta, assim, nos mostra que não segrega os trigos e muito menos se propõe a uma experiência já um tanto surrada de rigores e de sublimação das adagas ensandecidas da vertigem contemporânea.

O poeta aqui não se propõe ao incomum, ao inventivo. Faz, ao contrário, uma inversão para permanecer na identidade da própria pele, do que veste em termos de conjugação poética temporal e estática desse não-lugar onde de alguma forma estamos todos e todas num afogamento de colheitas, numa corredeira de buscas desmesuradas para a menor distância entre a expressão poética e a expressão dos nossos dias. Somos, assim, o mesmo e estapafúrdio esquecimento. Versos que diluímos na vertigem de um olhar sempre muito pessoal sobre as multidões que nos fazem poetas de um futuro que começou no final do século XIX e que constatou o que é experimentar versos sem os falsos pudores de uma horda mais canina que canônica.

O poeta aqui se revela e se rebela. Ele nos traz “Aqueles poemas que se amontavam em versos” para uma consignação de dívidas que sempre serão nossas porque se uma marca revela a nossa geração é exatamente a estratégia das estrelas que somem na noite escura, transgredidas pelas nuvens e por uma Lua que permanece no céu soturno das nossas transpirações. Que seja bem vindo mais reste rebento do poeta Júlio Almada.





Vale do Timbó - Parahyba, 10 de novembro de 2011.  Prefácio do livro do poeta paranaense, Júlio Almada: "De olho: embriagado".

domingo, 6 de novembro de 2011

A brutalidade da beleza

por Lau Siqueira
A beleza não é a viga dos encantamentos, apenas. A beleza é o domínio dos abismos da mente e do corpo. Seja num artista, seja num espectador - por mais desatento que seja. A beleza é um espetáculo de cores e escuridão, de sons e silêncios, palavras e pausas. Segundo Hopkins, a beleza é difícil e segundo W. J. Solha é brutal. Não importam aqui os conceitos surrados ou novos. A verdade é que nas poucas palavras deste artigo não será possível definirmos o que foi a belíssima obra construída por diversas mãos, corações e mentes numa dedicação consagradora aos 70 anos de um dos mais completos dentre os grandes artistas brasileiros, W. J. Solha.

Não sei que registro foi feito das duas apresentações de “Cantata Bruta”, uma realização da FUNJOPE e da FUNESC em homenagem ao escritor, sonhador, artista plástico, cidadão íntegro, escritor, ator e outras faces da mesma face no multi-artista homenageado. Na verdade foi uma homenagem às artes porque Solha também participou enquanto criador. Creio que a Paraíba viveu nos dias 29 e 30 de outubro, no palco do Cine Bangüê do Espaço cultural José Lins do Rego, um dos grandes momentos da nossa cultura nas últimas décadas. Ousadia estética e exatidão matemágica foi o que transcendeu como um relâmpago na execução da Cantata Bruta pela Orquestra de Câmara cidade de João Pessoa, sob a regência do maestro Eli-Eri Moura.

Uma das afirmações do concerto, foi a produção erudita da Paraíba. Provavelmente um dos grandes pólos de produção de música erudita contemporânea do Brasil. No palco, além da Orquestra de Câmara, o coro Sonantis, a mezzo-soprano Maria Juliana Linhares, o tenor Ed evangelista e os declamadores Walmar Pessoa e Suzy Lopes. Marcílio Onofre e Valério Fiel cuidaram das sutilezas com intervenções eletrônicas realizadas ao vivo.Tudo muito bem guardado numa iluminação cênica e num cenário que foi um espetáculo à parte. Obra de Jorge Bweres que assinou também a direção de palco. O texto era do próprio Solha (do livro História Universal da Angústia), com músicas de Didier Guigue, Eli-Eri Moura, J. Orlando alves, Marcílio Onofre, Valério Fiel e Wilson Guerreiro que em apenas sessenta dias concluíram as composições.

Certamente que nas duas noites de apresentação da Cantata Bruta, ninguém saiu impune do Espaço Cultural. Impossível que alguém não tenha ficado impactado com a ousadia, a experimentação e a erudição caminhando juntas na elaboração das peças que nos proporcionaram a possibilidade de testemunhar o quanto a diversidade pode convergir quando a direção sabe o caminho e onde cada milésimo de segundo caberá entre o som e a palavra, entre o acorde e o silêncio. Uma obra de mestres das artes não poderia ser diferentes.

Não sei se algum artista brasileiro ou mesmo do mundo, já recebeu uma homenagem que dialogasse de forma tão intensa com sua obra. No caso de Solha, uma obra que não se contém nas cores e nas palavras, mas vai em busca do encantamento e da brutalidade enquanto elemento do real e do imaginário que compõe a alma humana. Quem pode assistir esse concerto-espetáculo sabe que, guardadas as proporções, viveu um momento que do ponto de vista estético podemos considerar um marco no pensamento estético paraibano, tal como diversos movimentos de vanguarda das artes que produziram manifestos e influenciaram gerações futuras.

Estava tudo lá no palco do Bangüê. Artes plásticas, literatura, teatro, música, invenção estética, futurismo, tradição, ousadia... A brutalidade da Canga e de obras monumentais como História Universal da Angústia (de onde foram arrancados os textos sangrados), com a roupagem épica de um Trigal com Corvos, escritos magistrais de W. J. Solha que, assim, conduz para o infinito a consagração de sua imensa e diversificada obra. A beleza verticalmente experimental repercutiu na vivência estética da platéia e lembrou-me, quando descia as rampas do Cine Bangüê o Manifesto Surrealista escrito em 1924: “(...) cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa.”

Tudo neste concerto foi afirmação positiva. Um diálogo espantoso com o nosso tempo, com as esquinas conturbadas do Século XXI, seja nas vitrines rompidas pelo vandalismo dos jovens londrinos, seja pelas almas atoladas no mangue de Bayeux ou nos impactos das balas que assassinam centenas de jovens anualmente em áreas de vitimadas pelo apartheid paraibano, como o bairro São José ou Ilha do Bispo. Uma intervenção com visão de futuro foi o que pude perceber pelos corredores, nas movimentações da saída. Uma noite que não poderia ter sido mais intensamente vivida diante de uma beleza brutal.

Não sei se os executores do projeto pretendem retomá-lo em algum momento. Não sei que tipo de registro foi pensado para algo tão grandioso, além das partituras. No entanto, testemunhei com todos os meus poros e com a minha infinidade de sentidos algo que jamais será arrancado da minha memória e certamente estará gritando aos meus tímpanos que uma nova forma de fluir esteticamente foi sendo conduzida coletivamente, arrastando como em um tsuname, uma velha literatura, uma velha erudição, uma velha concepção de espetáculo e concerto, uma velha sistemática de regência e de direção e cenário. Parece que tudo mudou e, logicamente que me refiro aqui apenas a uma vivência pessoal que não coube em uma platéia lotada. Penso que a partir da Cantata Bruta estamos tansbordando para uma nova forma de pensar a arte do nosso tempo.

Tudo de melhor dos nossos dias estava concentrado em uma redoma em chamas que não poderia ter outro título, pela dose de pancadas de uma transgressão estética que há décadas, tenho certeza, não se via com tamanha intensidade, na insanidade de uma lucidez coletiva, de uma sangria de olhares que se encantavam e se espantavam, se espetavam diante do que pode a arte num estado de brutal beleza. Nenhuma homenagem, no entanto, poderia ser menos grandiosa para um arista da dimensão de um W. J. Solha. Tivemos a oportunidade de testemunhar a história guardada num sopro, num ciclone, numa tempestade de delicadezas e na carne sem pele dos nossos sentidos.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...