terça-feira, 30 de abril de 2019

A cultura viva das esquinas.






O Boca de Cena não é apenas mais um grupo de Teatro de Bonecos. Ainda que não seja pouco manter ativo um grupo de Teatro de Bonecos no Nordeste em tempos de baixo investimento na cultura. Na verdade, o Boca é uma companhia com uma pegada altamente profissionalizada e um baita senso de humanidade. Assume uma vanguarda imprescindível ao segurar na mão dos grandes mestres do babau, do mamulengo e ao mesmo tempo disputar espaços para esta importante linguagem artística nos terrenos sempre áridos da modernidade. O Boca de Cena atravessa desertos imensos. Mesmo assim, se joga nos becos. Atocaia a própria sorte na guerrilha da estrada. Mas está sempre ali, nas barrancas e nas beiradas. Abrindo seu espaço de navegação e induzindo a memória no sentimento do povo. Tudo de uma forma lúdica, artística, inventiva.

Uma trupe que resiste às duras penas o controverso estado de desagregação cultural que vivemos. Muito por culpa dos governos. Muito mais ainda pela facilidade com que as multidões foram absorvendo a cultura diluidora das indústrias do utilitarismo. As mesmas indústrias que fabricam o medo, a violência, as pestes, os políticos canalhas e o abandono que distancia um menino e uma menina da própria infância. Essa mesma distância que afasta o público do direito de gargalhar com as bisbilhotices do Coelho Banzé, do jeito de colecionar sorrisos por onde passa. Para quem não conhece, o Coelho Banzé é o personagem criado para apresentar-se como mestre de cerimônia do Boca de Cena. Um personagem que nos mostra o quanto é viva a arte de manipular bonecos.

Assim, a comunicação é sempre imediata. Seja com o público infantil, juvenil, adulto ou dos grandes mestres da vida que muitas vezes não tiveram tempo de ver tudo ou ainda guardam na memória as histórias contadas nas beiras de esquina, nos sítios, nas favelas e nas escolas por onde essa expressão de grande apelo popular circula sempre que é solicitada. A relação com o público é sempre extasiante. Independentemente do lugar. As traduções que esses artistas, especialmente Artur Leonardo, Amanda  Viana e Valério, trio que enfrenta sempre as tempestades da mesma caminhada. Os cuidados com os textos, com as formas de abordagem do público, os gracejos medidos conforme a capacidade de absorção do lugar. O diálogo com o ambiente escolar e cultural das comunidades. Tudo isso faz com que o Boca de Cena esparrame por onde anda, o que eu chamo de “pedagogia do afeto”.

Um outro aspecto que precisamos destacar no Boca de Cena é o mergulho pesquisa. Já vi algumas vezes Artur se referir às influências do Mestre Clóvis do Babau na sua paixão pela arte. Um encontro que a sua infância em Guarabira proporcionou. Hoje o próprio Artur é um grande mestre bonequeiro. Na verdade, Artur, Amanda e Valério foram muito além. Muito além da mera pesquisa que carrega para os escaninhos da academia informações preciosas e nunca mais devolve. A pesquisa realizada pela Companhia vai mais longe. Traz à luz das plateias, nas mais diferentes comunidades, a história do Babau na Paraíba. Incorpora a tradição dos bonecos na caminhada de sucesso de quem merece o reconhecimento de ser um dos mais importantes grupos de teatro de bonecos em todo o país.

Com os pés fincados na tradição, a inquietude principalmente de Amanda e Artur - artistas imensos e imersos na arte de representar - revela a resistência e a capacidade de superação de uma perspectiva adversa para um tempo de criminalização da arte e da cultura por hordas de infantes diversos, capitaneados pelos poderes caudilhescos e oligarcas que, a rigor, nunca saiu do poder mesmo tendo perdido o comando de alguns governos. Espremidos nesta crise permanente, o Boca de Cena vai formando público ao mesmo tempo em que insiste em viver de arte quando isso significa permanecer na corda bamba. Um risco permanente diante de uma plateia ora atenta, ora desapegada da responsabilidade de garantir o que ensina e aprende na medida que traz o riso, mas também carrega com todas as cores a memória viva. Muito especialmente desse imenso país que é o Nordeste.

A capacidade de reinventar-se e recompor os caminhos destruídos pela descontinuidade das estruturas de apoio para as culturas populares. Antes de servir de exemplo enquanto prática de resistência é um alerta contra o extermínio da diversidade cultural. Talvez esse seja o maior legado de um grupo de artistas que já chega aos vinte anos ininterruptos de atividade profissional. O Boca de Cena nos ensina a resistir, a encarar o carcará do momento. Enfrenta com bravura todas as estações para florir sempre em cada primavera. Mesmo quando todas as portas se fecham, o Boca insiste: vai ter espetáculo, sim! Vai ter pesquisa, sim. Vai ter preservação da memória, sim. Essa pequena e maravilhosa trupe me lembra muito Augusto Cesar Sandino: “não me rendo. Não me vendo. Te nho de ser vencido.” A arte é um tipo de guerrilha que esparrama flores. É desta forma que vejo a Cia. De Teatro de Bonecos Boca de Cena.


Lau Siqueira   

segunda-feira, 8 de abril de 2019


Entre o silêncio e o grito



Alguns dizem que a Filosofia e a Poesia são inimigas. Nunca entendi direito essas definições, mas talvez a Filosofia e a Poesia disputem o mesmo palco das descobertas. Ambas buscam a expressão da verdade, na dúvida e não na certeza. Tudo em direta interação com a vida. Quando recebi os originais do livro de Damião Fernandes, juro que esperava apenas poesia. Desencontrado na busca pela poesia, busquei a ficção. Afinal, somente nesta área sou procurado para prefaciar livros. No entanto encontrei muito mais. Da construção épica à Filosofia. Lembrei imediatamente de Edgar Morin, em “Meus Demônios”: “Não escrevo de uma torre que me separa da vida , mas de um redemoinho que me joga em minha vida e na vida.” Esta frase usei como epígrafe de meu quarto livro de poemas, Texto Sentido. Um livro onde busquei através da poesia o desnudamento que o autor busca neste livro a partir da filosofia, Portanto, podem até ser inimigas. Mas como dialogam com clareza a Literatura e a Filosofia. Pois esta frase me pareceu a melhor definição da experiência do autor. Ele parece escrever de um redemoinho. Aliás, é da vida que se extrai tanto a Filosofia quanto a Poesia. A Linguagem é um ser vivo, pulsando nossos extremos.

Sobre gêneros na unidade de uma obra, cito o cubano Pedro Juan Gutierrez, em Trilogia Suja de Havana. Alguns textos beiram à ficção, outros fedem à crônica de uma realidade hostil num país pobre e cercado de olhares de pura mitologia ideológica – tanto à direita quanto à esquerda. A realidade, a exploração da própria existência como fator de entendimento, fica a mercê das definições. No entanto, assim como Pedro Juan Gutierrez, Damião não está interessado na definição do estilo ou do gênero. Damião apenas escreve e revela suas inquietações diante de um mundo que cada vez nos afasta mais a capacidade de reflexão a partir do nosso lugar na história. A escrita, portanto é mais importante. A escrita que traz na dúvida a sua verdade e na certeza, a sua forma de confinamento, de sublimação de uma realidade que, aqui e ali, morde os calcanhares. É como se não existisse o cachorro selvagem da inquietação. Aquela inquietação que nos afasta da zona de conforto diante do realismo e da utopia. A escrita, portanto se sobrepõe enquanto Damião mergulha em si mesmo, numa leitura que movimenta os caracteres de toda uma existência. Percebe-se claramente quando ele diz “(...) existir é passar pela vida como quem passa pela alfandega, onde o mais valioso se transforma em bagagens e produtos.”

O livro “Sobre como viver e não apenas existir” me remete, em alguns momentos, ás reflexões de Suelma Moraes no livro “Conhecimento de si e de Deus”. Segundo Suelma, Profa. Dra. Da UFPB, estudiosa de Sto. Agostinho, “(...) para que se possa conhecer a Deus tal como se é conhecido, é necessário ter conhecimento que se assemelhe a Ele. Mas, a visão do espelho a priori impede esse conhecimento.” No capítulo  “A teologia do eu”, Damião mergulha no espelho, ou joga lá suas reflexões mais profundas acerca do que seria um “Conhecimento de si e de Deus”. Assumindo aí um tom mais épico que filosófico, o autor proclama: “Deus é mistério. E eu o que sou? Deus é resposta. E eu, quem eu sou? Deus é o caminho. E eu, para onde vou? Deus é vida. E eu que vida sou? Deus é Verdade. Que verdade eu sou?” Esse  é o tom do livro. O autor navega permanentemente entre uma profunda convicção imponente e uma dúvida abismal. Questões que se completam em respostas ainda não dadas. Talvez apenas projetadas onde a dúvida determina as cores do pensamento.

Em todos momentos observamos que o Filósofo traz a fala mais densa no discurso carregado de indagações, amparado por algumas metáforas e, repito, por uma impulsão épica na construção do texto. Homérico na elaboração de um contexto que data da origem do mundo e que ainda impacta e perturba. Mais que isso, impulsiona seus reflexos diante do vazio predominante, num tempo de fundamentalismos multiculturais. O mesmo que emerge dos seus mergulhos, elaborando perguntas ao seu próprio sentido de viver. Muito além de existir, o autor revela que não há formula final, mas formulações permanentes que excluem e incluem elementos na edificação de um novo olhar sobre si mesmo. Esse olhar sobre si mesmo é questionador e expandido ao despersonalizar o discurso. O que diz de si, Damião colhe nas vivências acadêmicas, literárias, religiosas e na profana anarquia de quem vai ao mercado, não para saber o quilo do peixe, mas da sensação de morte que existe no cheiro do açougue.

Sempre me impressionei com uma frase de Maria Valéria Rezende, escritora que coleciona prêmios ultimamente. Valéria, freira, recolhe das ações vividas nas comunidades Eclesiais de Base, as experiências trocadas com os mais humildes e a convicção de repartir que habita sua ordem religiosa. “Eu não tenho imaginação. Sempre duvidei disso, mas acredito com veemência e acho que o que me sobrou foi a pergunta: o que é mesmo imaginação? “O que eu tenho é memória”, diz a paulista que a Paraíba adotou e celebra. Ao percorrer os escaninhos da memória, Damião também nos oferece uma certeza. O tempo todo está falando de si. O tempo todo está falando do mistério que é a vida. O tempo todo está falando de Deus. E o tempo todo está escrevendo com imensa capacidade de articular um ritmo definidor para seus textos.

“No caminho encontramos sonhos, bosques, esquinas e jardins, tantas outras coisas essenciais e desnecessárias.  Encontramos casas, muros, paredes, alpendres, varandas, pontes, presenças e até solidão.”Nos revela o escritor para revelar suas mutações, seus desapegos e suas eternidades carregadas como troféus de instantes que jamais foram negligenciados. E daí nos encontramos novamente com Edgar Morin, quando afirma que “o mesmo processo traz em si ameaça e promessa”. Ele sabe tanto quando Damião Fernandes, que no fundo, caminhamos “rumo ao abismo ou à metamorfose e, talvez, rumo a um dentro do outro”. Não há, pois resposta previsível para o que não se coloca como exatidão. As atrofias que persistem, à vezes, já não encontram saída. A inércia que foi posta aos cacos, revela-se plena mutação, num redesenho do que há de efêmero e permanente no significado desse verbo incerto que é “viver”.

Em última análise, a despeito da responsabilidade do autor em escrever prosa ou poesia, o encontro do texto com a perplexidade que é escrever poemas revela um dos melhores momentos do livro: “Para escrever poesia, preciso organizar, preparar a alma, separar as folhas, escolher o lápis com o qual escrever. Escrever poesia é questão de estética e engenharia. Para escrever poesia, preciso contemplar meu rosto no espelho, pisar no chão da minha história e tocar as vestes da minha humana dor diária. Escrever poesia é questão de ciência humana, uma antropologia sobre si mesmo.” Na poesia tudo se resume, mas também tudo se expande e some como se não existisse nada maior que a sensação estética. Assim como tantos autores dispostos a romper com as suas convicções, fugir da zona de conforto, Damião derrama-se em palavras. Escrita bem delineada. Coisa de quem tem intimidade com as palavras. Blindado pelas próprias inquietudes diante dos julgamentos possíveis e impermeáveis, eis um escritor que se derrama sem medo. Abre as comportas antes que as barragens explodam. Damião Fernandes entrega ao público um livro para ser lido e refletido várias vezes, infinitas vezes. Afinal, seu estilo múltiplo e inteligente também faz parte de outras existências ainda muito distantes do pleno exercício de viver.



Lau Siqueira






NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...