sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Anayde Beiriz e a memória perdida

Por Lau Siqueira

Um certo dia de 2007, na inauguração da Escola Municipal Anayde Beiriz, em João Pessoa, me deparei com um homem alto e sorridente que falou entusiasmado: “Lau, isso aqui é o Motiva do bairro das Indústrias!” Era o médico Marcus Aranha. Conversamos sobre a exposição dos trabalhos realizados pelos alunos da escola resgatando a memória de Anayde.  Conversamos sobre Anayde e sobre as lacunas da história oficial. Nosso contato maior sempre foi virtual. Nos vimos poucas vezes, mas guardávamos um pelo outro um respeito incomum. Marcus era um médico conceituado e gestor público zeloso, criativo e comprometido. Mas, também era, fundamentalmente, um pensador inquieto. Nunca escondeu seu fascínio pelos acontecimentos históricos de 1930. Principalmente aqueles  ocultados pelos interesses dominantes. Seu desejo de restaurar a imagem pública de Anayde Beiriz nunca foi segredo. Não mediu esforços para isso. Ele sabia que estaria prestando um serviço enorme à memória coletiva e à história da Paraíba. Este foi, imagino, o impulso maior para a publicação deste livro. Ele não se conformava com as bravatas familiares, onde a história das lutas do povo nunca tem o seu lugar garantido.


Marcus Aranha mergulhou numa pesquisa apaixonada. Um verdadeiro e corajoso garimpo. Procurou a família de Anayde, pesquisou textos publicados anteriormente e construiu um olhar crítico para a restauração da verdade sobre a grande mulher que foi Anayde Beiriz. Entretanto sabia que a reconstrução da memória de Anayde somente ela mesma através dos seus escritos, poderia conduzir.  Sabia, por exemplo, que a leitura das cartas trocadas com o noivo Heriberto revelariam o verdadeiro caráter de Anayde. Uma mulher sensível, inteligente, amorosa e digna. Entretanto, também inquieta e conectada às vanguardas do seu tempo. Exatamente o oposto do que semearam seus detratores. Seja pela queima dos seus escritos. Seja pela sórdida campanha difamatória que sofreu.

Podemos considerar que Anayde foi vítima de algum tipo inquisição. Empurraram uma jovem de apenas 25 anos para o abismo de uma disputa de poder. A moça foi induzida ao desespero e consequentemente a um provável suicídio. Um fato, aliás, muito mal explicado e que pode muito bem ter sido, na verdade, um assassinato por envenenamento. Da mesma forma que, dias antes, a morte não muito bem explicada de João Dantas entrou para a história eivada de suspeições.


Os tempos eram duros. Era o início da ditadura caudilhesca de Vargas. É fato que João Pessoa foi assassinado por João Dantas. Mas, também é certo que as atitudes do presidente da Província eram inclinadas à violência. Por exemplo, o fato que impulsionou seu assassinato: a invasão do escritório de um inimigo político e a exposição da sua intimidade. João Pessoa era conhecido por mandar jagunços surrar seus desafetos. Aumentou em 500% os impostos. Nunca foi um herói cujos feitos justificassem a mudança do nome da capital do Estado. Seus correligionários, após a morte de Anayde,  agiam com fúria.  Contaminando inclusive a família daquela que foi a maior vítima dos fatos sangrentos que cercaram a Paraíba naquele período.

Sabendo da importância de Anayde Beiriz para a compreensão exata da história da Paraíba e do Nordeste, Marcus conduziu sua busca colhendo textos sobre “panthera”, sutilmente, desmistificando a maldição conservadora que durante décadas excluiu sua imagem da memória coletiva. Nos mostrou que a jovem Anayde sofreu, na verdade, um linchamento  por parte das forças reacionárias que dominavam a Paraíba naquela época e que continuaram dominando por décadas, Na verdade,  ainda hoje são parte significativa do poder.


Anayde Beiriz não estava só com suas ideias. Não podemos compreender seu pensamento sem uma análise mínima sobre a sua época. Aqui e ali algumas poucas mulheres tinham comportamento semelhante ao seu. Destaco a  figura de Patrícia Galvão, Pagu, também reveladora da existência de uma seleta vanguarda do pensamento feminista no Brasil nos anos 30. Eram tempos de rebeldia contra os valores dominantes. Principalmente para uma mulher que vivia antenada com as provocações dos movimentos modernistas também na literatura e nas artes. Não esqueçamos que as grandes revoluções estéticas que ainda hoje influenciam as artes, aconteceram exatamente entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.


O autor se mostrou preocupado em recuperar das cinzas uma história que ainda não estava escrita. Seu ponto de partida foi a personalidade firme e do caráter de Anayde revelado com tanta clareza nas cartas ao noivo Heriberto. Ela contestava valores de uma sociedade ultra conservadora. Respirava um tempo que ainda não havia chegado, mas que sabia que não tardaria. Marcus Aranha nos mostrou também que a perversão reacionária e fraudulenta que conduziu os movimentos de 1930  ainda está viva e se revela em diversos momentos. Seja de forma aberta ou velada. No livro ele cita, por exemplo, uma entrevista de um neto do Presidente  João Pessoa - João Pessoa de Albuquerque Neto - no Jornal O Globo que a pretexto de afirmar seu ressentimento pela morte do avô chama Anayde de “vagabunda”, “moça pobre, filha de um linotipista”. Ou seja: ser pobre para este infeliz descendente do ódio é sinônimo de vagabundagem. Esqueceu que Anayde se formou professora com destaque aos 17 anos e exercia a profissão dignamente. Era professora em Cabedelo. O pai, linotiposta do Jornal a União era um homem honrado que fez todos os esforços para dar à filha a melhor educação. Isso nos revela o quanto o ódio aos Dantas se misturava com o ódio de classe. Na revista Manchete este neto de João Pessoa evidenciou mais uma vez seu ódio de classe fazendo a seguinte afirmação:

“Ora, meu Deus, tem tanta história de amor no Brasil para ser filmada! Por que pegar logo a de uma coitada,uma infeliz, muito humilde, que teve a  infelicidade de se apaixonar por um criminoso?”

Esta é uma síntese do pensamento que mudou o nome da capital da Paraíba para homenagear um político medíocre, conservador e de moral duvidosa. Alguém capaz de ordenar a invasão do escritório de um adversário político. Um homem sem qualquer  pudor jurídico. Ordenou de forma criminosa a exposição de correspondências íntimas  de duas pessoas no auge de uma paixão. Nada mais espúrio. Nada mais repugnante. Nada mais medíocre. Nada mais ofensivo à memória do povo paraibano que jogar esta verdade debaixo do tapete. A Paraíba ainda precisa se apropriar das suas verdades históricas. Para que não permaneça apenas a visão dos vencedores. A versão dos algozes de Anayde ainda prevalece, mas não sabemos mais por quanto tempo.


O escritor Marcus Aranha mergulhou com muita força e sinceridade na sua busca. Teve a sensibilidade e a coragem política de revelar estas faces tão dispersas ainda de uma mulher que continua referência nas lutas feministas no Brasil inteiro. Seja por sua ousadia, seja por sua sensibilidade. Ao publicar as cartas trocadas entre Anayde e seu noivo, Marcus deixou que a própria Anayde se revelasse por inteiro. Deixou também transparecer predominância do machismo nas cartas do apaixonado Heriberto. Ele nos revela, portanto, algo muito delicado para o desvendamento da personalidade de Anayde. Afinal são textos que não foram produzidos para  publicação. São documentos pessoais que revelam o caráter, a sensibilidade, a dignidade e a inteligência de uma mulher que dialogava com o que existia de mais avançado na sua época em termos de pensamento e de compreensão do mundo. Sua admiração evidente pelo Modernismo (apesar dos seus poetas preferidos não serem Modernos) ou pela defesa de bandeiras revolucionárias para a época, no mundo inteiro,  como o direito de voto das mulheres revelam uma mulher determinada e ousada. Aos que sempre buscaram minimizar a importância de Anayde Beiriz para a história da Paraíba, sugiro apenas isso: apresentem o nome de outra paraibana que, na época, defendia o voto das mulheres. Essa conquista hoje é uma realidade. Ignorar a vinculação com o nome de Anayde nesse contexto significa falsear a verdade e distorcer os fatos.


Para que se tenha noção de como se comportava a conjuntura mundial durante a mocidade brutalmente interrompida de Anayde Beiriz lembramos que em 1917 acontecia a revolução bolchevique na Russia. Em 1922 criava-se o Partido Comunista Brasileiro e acontecia a Semana de Arte Moderna. Ocorria, também, a primeira revolta tenentista, que culminou com a marcha da Coluna Prestes (1924/1927) que percorreu cerca de 30 mil quilômetros pelo interior do Brasil, passando inclusive pela Paraíba. Era um contexto histórico bastante complexo, com ameaças reais ao poder das oligarquias. A perspectiva de avanço das ideias comunistas eram reais.


Excluo de qualquer análise o ato oportunista e discriminatório da cineasta que dirigiu o filme Parahyba Mulher Macho. Excluo também o seu nome desta história e desta apresentação. Uma aberração que oculta ainda mais a verdade sobre uma mulher injustiçada no seu tempo. Esta cineasta cujo nome prefiro esconder promoveu uma verdadeira vulgarização da história da Paraíba - e não de Anayde.


POEMA DE ANAYDE BEIRIZ

Nasci
Nasceu
Cresceu
Namorou
Noivou
Casou

Noite nupcial

As telhas viram tudo

Se as moças fossem telhas

não se casariam.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Quando a nudez é a escama



O cenário atual da poesia brasileira é amplo, diverso e cheio de belas surpresas. Claro que não desconheço o turbilhão de versos sem poesia. Também não desconheço o cinismo da política literária dominante.  Entretanto jamais renego o prazer das boas descobertas. Logicamente que a garimpagem haverá de ser precisa e delicada. Não que estejamos chegando ao ápice, comparando com os grandes momentos da poesia brasileira. Nunca mais teremos um Drummond. Outro Décio Pignatari não há. Nunca mais João Cabral. Não cabem os comparativos neste caso. O que ocorre na cena atual é um certo transbordamento das somas e das subtrações. Gerações sobrepostas revelam a cena atual. Reconhecer as boas colheitas é, no mínimo, um bom sinal  de inquietação. As experiências da vida e da linguagem nos fazem lembrar Bachelard: “todo sonhador inflamado é um poeta em potencial.”

Luciana Queiroz sempre me pareceu uma sonhadora inflamada. Pessoa de intensidades e cores colhidas no olhar. Leitora exigente de livros e do mundo. Professora com visão humanista no infinito espaço de uma sala de aula. Uma sonhadora que ama transitar sobre as palavras. Sabe se deslocar entre elas e extrair de cada uma a sonoridade que diz tudo, mas esconde todo o resto. Alma liberta, soube construir um ritmo só seu. Pessoanamente, disfarça com maestria a escama das suas incertezas. Descobrir seus poemas foi um presente. Luciana tem  uma voz poética inconfundivelmente fêmea. Ela não se divide. Não se limita. É a integridade da existência expondo seus significados. Nocauteou minhas dúvidas acerca da existência de uma poética feminina - aliás, fêmea - estabelecida a partir da experiência humana e intelectual de uma mulher. Sabe cozer instantes para uma vida que não passa nas telas. Essa mesma vida que arde no espelho e depois vai para as ruas, para os becos, colher seus tentáculos.

“Sou rainha de esquecidas ilhas
Monto meu cavalo de penas:
Pégasus que Atena nenhuma domestica”

De que valeria o poema, se não para desnudar motivos? Sejam os motivos da linguagem, sejam sentimentos que diante do espelho pedem passagem. De que valeira o poema, se não para vestir a pele das palavras e cantar a versão dos sentidos? No mais, poesia é coragem. Viagem incerta. Principalmente se a condução do Pégaso vem num experimento de habilidades que se mostram inteiras e intensas no eterno aprendizado do verso. A poeta revela a força poética de ser mulher num mundo onde até a linguagem disputa espaço de gênero. Vai planando por sobre os milhos e as favas do estilo, inventando seu próprio caminho num rastro de muitas pegadas.

“Xícara de café
Sabonete
E cama que não divido com ninguém
Espaço que sobra
No vazio da falta”

Luciana faz poema também das suas lacunas. Mas, sabe como transgredir o sentido das coisas. O sabonete, a cama,o café. A presença forte das suas ausências. O espaço ocupado pelo vazio. Percebo aí um roteiro que se revelou com vigor na segunda fase do Modernismo brasileiro, quando a tonalidade existencial e social predomina nas ferramentas da sua metalurgia poética. Conforme explica Afrânio Coutinho, “a Literatura é um fenômeno estético”. Mas ele explica que é um fenômeno estético que dialoga até com o religioso num processo de transformação capaz de introduzir o elemento estético. Luciana sabe disso e faz dos seus aprendizados, das suas lutas e do revoar coletivo que vivencia, o motivo e a matéria prima da poesia. Instrumento de transbordamento e de consciência estética. Ela reconhece os conselhos de Rainer Maria Rilke em “Cartas a um jovem poeta”: “não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela.”

“Volta

Deixa de vaidades bobas.
Já sei tudo de tua vida:
que tens outras
e que não queres ser de ninguém.
Teu trânsito de corpo em corpo
não me atrapalha a alma.
Quero você, seus significados,
sua conotação escancarada em minha língua.”

Luciana sabe transitar poeticamente por seus labirintos. Da mesma forma que a americana Bessie Smith tinha possibilidades para a ópera e cantava blues no início dos século XX, ela tem fôlego intelectual suficiente para velejar por outros mares. Tem lastro conceitual para sobreviver no ar rarefeito da poesia brasileira contemporânea. Mas, decidiu começar pelo desnudamento das escamas. Como quem avisa que a pele é só o começo. A nudez é só o começo. Este livro chega, pois, como um alerta. É como se ela dissesse o tempo todo: eu estou aqui, mas sou de longe e vou mais longe ainda. Um aviso de quem estava guardada em silêncios e se permite transbordar em gritos jamais silenciáveis.

Considero que estamos diante de uma bela descoberta. Uma poeta que começa sua caminhada surpreendendo pelo lirismo, pela consciência da linguagem poética e até pela pequena pancada inventiva do título “Nua sobre escamas”. Tem coragem de arrancar a própria pele para renascer na carne viva do inevitável.

“Flor

Se nunca te disse
ouso dizer
tanto faz
a flor do mandacaru
quanto o nome da rosa.”

É tempo de celebrar a boa descoberta. Cada poema deste livro não se esgota no último verso. Há uma atmosfera sugerida que pede mais. Mais poesia. Mais vida. Mais Luciana Queiroz nesse mundo de ausências consagradas e presenças diluídas.

Lau Siqueira

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...