segunda-feira, 2 de janeiro de 2012


Poesia no manicômio - uma ação de guerrilha.

por Lau Siqueira

Em maio lancei meu livro, Poesia Sem Pele, primeiro em Porto Alegre, na charmosa Casa de Cultura Mário Quintana, depois em Curitiba, no elegante Broooklin Café e o terceiro lançamento foi em João Pessoa, no pátio do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira. Depois teve lançamento em Campina Grande-PB, Natal-RN, Recife-PE, mais duas noites de autógrafos em João Pessoa...  Enfim, cada momento esteve dentro de  um contexto específico. Cada lançamento teve a sua particularidade que não cabe comentar agora. Vamos ficar com os motivos e as convicções que me levaram a lançar o livro num manicômio e as razões de continuar lendo poemas do lado de dentro dos loucos muros.

No início do ano eu discutia com a diretora geral do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, Dra. Flávia Fernando, um grupo de militantes da luta antimanicomial e funcionários do manicômio, a programação cultural daquela que seria a I Semana Estadual de Luta Anti-manicomial e que teria sua abertura exatamente no dia 18 de maio de 2011, com algumas palestras, debates, com a presença de personalidades nacionalmente reconhecidas e fechando a noite com uma apresentação do Círculo de Tambores e lançamento do meu quinto livro, Poesia Sem Pele.

O entusiasmo militante da diretora do manicômio, uma militante das lutas populares, conhecedora das linguagens da arte, psiquiatra de formação entre outros predicados, me contaminou. Estava na oportunidade ocupando a diretoria executiva adjunta da fundação Cultural de João Pessoa. Então, trouxemos Tom Zé para um show no teatro de Arena do Espaço Cultural José Lins do Rego, o mano Babilak Bah para oficinas de percussão. Babilak, além de artista maravilhoso, dos mais inventivos, desenvolve o projeto Trem Tan Tan, num CAPS (Centro de Atendimento Psico- Social), em Belo Horizonte. Foi tudo perfeito. A Dra. Flávia, com sua sensibilidade extrema, na verdade, se mostrou uma grande companheira de caminhada. Uma pessoa com idéias regidas pela Reforma Psiquiátrica e que abriu as portas do manicômio para os que estavam trancados do lado de fora. Do ponto de vista pessoal era o cenário perfeito para um resgate familiar, sentimental, humano, histórico.

Nos anos 70,  acometido de esquizofrenia e outras moléstias, meu pai foi internado no Sanatório Roxo, em Pelotas-RS. Naqueles dias, eu morava com minha família em Jaguarão, na fronteira leste do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Mas, meu pai somente ficou o tempo suficiente para que a família percebesse o que estava acontecendo. Naquela época, submetido aos métodos mais criminosos de tratamento psiquiátrico, meu pai piorou  em pouco tempo. Minha família acabou por resgatá-lo e ele faleceu em 1977, de câncer e com os nossos cuidados. Nunca recuperou a lucidez, mas comecei ali a entender que o internamento no caso de transtorno mental, precisa de outras saídas. Não tenho qualquer dúvida que para essa saída a família ainda é o melhor espaço de convivência  e de tratamento para qualquer pessoa.

Em janeiro de 1978, já residindo em Porto Alegre novamente, comecei a conhecer os caminhos da Reforma Psiquiátrica. Primeiro com o jornal e depois com a revista Rádice, que era uma espécie de porta-voz da luta antimanicomial no Brasil. Conheci a história da Dra. Rose da Silveira e soube do Museu do Inconsciente, criado por ela. Comecei a conhecer nomes como Basaglia e a refletir sobre o fim dos manicômios, como o que tinha servido de “cárcere terapêutico” para o meu velho pai, um homem de origens camponesas, com fortes convicções, íntegro, amoroso, cujo caráter e honestidade eram reconhecidos na cidade e um patrimônio da família. Passei a me interessar por outras leituras na área da psicanálise, também nessa época. Entre as leituras, Reich e uma das suas obras consagradas, o livro “Escuta Zé Ninguém” que até hoje figura entre os livros mais importantes que eu li. Li algumas pérolas da Gestalt, como o clássico “Não apresse o rio, ele corre sozinho”, de Barry Stevens. Certamente que eu jamais pensei em enveredar pela área da saúde mental, profissionalmente falando, ou mesmo politicamente. Mas, como militante de esquerda que era e sou, compreendo que os caminhos para a construção de um mundo mais justo passa diretamente pela compreensão do outro, das diferenças que não nos fazem em hipótese alguma, desiguais.

Passou-se algum tempo e o cotidiano  foi absorvendo nossos passos e continuamos caminhando juntos. Até que a companheira Flávia aceitou mais uma provocação: iríamos resgatar a idéia nascida de uma das  nossas muitas conversas. Daí nasceu o primeiro sarau poético no manicômio, envolvendo poetas, artistas, profissionais de saúde, portadores de transtornos mentais, dependentes químicos em tratamento... Enfim, uma experiência de amor partilhado, de solidariedade, de corações bifurcados e sentimentos livres. Não poderia ter outro resultado. Foi emocionante ler poetas como Lúcio Lins, Drummond, Rodrigo de Sousa Leão, Antônio Mariano, Vasko Poppa e outros e ainda ouvir textos escritos por aquelas pessoas, tão iguais a nós, iguais a nossos filhos e filhas. Enfim,  nossos irmãos. Textos, diga-se de passagem, que mesmo sem tanto valor literário traziam a revelação de alguém que desejava libertar-se de um mundo doente, curar-se de si mesmo, para a invenção de um novo mundo.

Depois veio um segundo sarau que não pude ir e um terceiro que Flávia não pode ir, mas estava lá também o Psicólogo e poeta Rodrigo Vaz e outros artistas, outros poetas, como Vamberto Spinelli Jr, Carlos Araújo e mais a poesia sempre presente de artistas como, Arnaldo Antunes, Ademir Assunção, Viviane Mosé e mais quem pudesse estar ali, como ali estava mais uma vez internado o cordelista Téo que falou poemas de amor e esperança, cuidando assim também de nós que somos, todos e todas, tão frágeis diante da imensa loucura que é esse tempo de velocidades e de canções perdidas nos esteios de um silêncio que não se rende diante de tamanhas gritarias, atravessando séculos sob uma surdez mórbida das muitas civilizações que habitaram nosso mundo.

Essas leituras de poemas no manicômio, provavelmente, foi o que de mais significativo aconteceu nos meus derradeiros dias de 2011. Começaremos o ano de 2012, com a poesia afiada entre os dedos, entre as linguagens que desejam comparecer para confirmar o que Antônio Cândido afirmava: “a literatura deveria ser um dos direitos humanos”. E certamente é um direito e um dever de todos nós que buscamos a partilha como moeda de troca nesta feira de desencantados, onde loucos são os muros, as cercas elétricas, as barricadas contidas em cada olhar no trânsito, nos balcões de negócio da carne e da alma. Em 2012 a poesia, em todas as suas formatações, em todas as suas configurações, em todas as suas energias transgressivas, estará rondando pelos ares, nos fazendo acreditar que é possível sonhar com um mundo mais justo e que as nossas utopias nos ensinarão a seguir nesta caminhada que não tem fim, mas que a cada passo nos faz acreditar que a felicidade é um sentimento solidário, um ato de amor aos nossos defeitos, às nossas falhas aos nossos sonhos de raça e de universalidade, humanos que somos apesar de alguns poucos (e esses sim, loucos) que se acham deuses e, iludidos, calam diante do abismo que é existir, em qualquer circunstância.

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Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...