segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O porquê das nossas escolhas.

por Lau Siqueira

Desde que assumimos a gestão cultural da cidade de João Pessoa temos escutado vozes (cada vez mais diluídas no silêncio) reclamando atrações musicais tipo: Calcinha Preta, Aviões do Forró, Ivete Sangalo e coisas do gênero. Algumas dessas vozes, aliás, injustificadamente nas sombras. Com vergonha de mostrar a cara para um debate público. Ou seja: gente posando de cult, mas com o rabinho conceitual preso ao créu. Somente o fato de termos esse debate estabelecido a partir de uma ação de política pública já vale o queijo do reino e o vinho das festas de final de ano.

Chegamos a escutar pérolas tipo: “Vocês deviam trazer Calcinha Preta, porque dá voto!” Entrementes, se tivéssemos implantado uma política meramente eleitoreira estaríamos esquecendo o compromisso que assumimos com a cidade em janeiro de 2005. Afinal, o que realizamos fez parte de um programa de campanha que, no segundo semestre de 2004, foi amplamente discutido com artistas e produtores culturais da cidade. Fazer diferente seria uma traição lamentável. Seria uma política de pão e circo, sem pão e sem circo. Até porque pão tem a simbologia cristã do alimento repartido e circo é uma cultura milenar que merece o nosso mais profundo respeito. Portanto, não é apenas uma “questão de gosto” que está em pauta. O debate de fundo e que deve vir à tona é econômico e político. Toronto, no Canadá, considerada a capital mundial da cultura, movimenta um PIB de nove bilhões de dólares americanos, para uma população 2,5 milhões de habitantes. Lá a cultura e a criatividade determinam o eixo nos planos de desenvolvimento da cidade. Por que a produção cultural de João Pessoa deveria aceitar um papel de coadjuvante na área do entretenimento e das surradas políticas de turismo?

A propósito, por falar em Toronto (e seu exemplo) aqui e ali escuto vozes saudosas da Micaroa. Um evento que bate de frente com a lógica canadense. Além do seu caráter diluidor dos valores culturais este evento se configurava num crime contra a economia da cidade. As bandas eram de fora - portanto a grana dos cachês era investida fora daqui. Os abadás vinham da Bahia. Não empregavam uma única costureira de Mandacaru ou Porto do Capim. E, pasmem: até mesmo as cervejas e outras bebidas vendidas nos blocos, vinham da Bahia. Esse conjunto de afasias provocava uma evasão enorme de recursos, logicamente que com o desfrute pessoal de meia dúzia de dois ou três paraibanos. Falo em afasia tal como conceitua Antônio Houais: “abstenção consciente de qualquer juízo originada pelo reconhecimento da ignorância a respeito de tudo que transcenda as possibilidades cognitivas do ser humano”. Além da gravidade de termos um evento eminentemente privado e socialmente excludente, ocupando as vias públicas e os serviços públicos pagos com recursos do município. Portanto, ao invés de divisas, gerando uma perversa evasão.

Certa vez ouvi um dono de posto de gasolina reclamar que, depois da Micaroa, a economia da cidade sofria um enorme refluxo. (Na verdade, um Ciçunami.) Portanto, precisamos dizer com todas as letras que por detrás de uma discussão sobre “bom gosto musical” existe uma gama de interesses nada inocentes. Existe o interesse político e econômico, de forma determinante. Afinal, as políticas públicas de cultura irão se tornar incômodas exatamente por instalarem-se naturalmente no centro da questão propondo uma mudança de comportamento da sociedade. Inclusive no que diz respeito à inclusão da arte como fator determinante na afirmação política desta sociedade, tendo as ações de cultura como fator de propulsão econômica. Uma mudança que passa, logicamente, pela troca dos hábitos no consumo cultural, colocando em risco a lucratividade exorbitante de meia dúzia de empresários imensamente capitalizados, mas sem escrúpulos.

Claro que esse debate não interessa aos poderosos de plantão. A maioria mandando sem mandato. Não é segredo que a mídia está na mão de grupos políticos e econômicos que continuam renovando seus projetos de dominação com a conivência surda das suas bases legislativas. Uma dominação formulada pelo entorpecimento mental das ditas “massas populares”. Ironicamente, todavia, quem mais consome o lixo cultural oferecido às “massas” é exatamente a classe média mais abonada. Basta verificar a marca e o ano de fabricação dos carros com porta-malas sonoros para ver que não se trata de uma cultura “do povo” e muito menos para o povo. Pelo menos não para o povo pobre que vive nas periferias, com seus comportamentos padronizados pelo único canal de acesso a cultura que possuem: as TVs comerciais. Aos poderes públicos cabe exatamente dar a esse povo o direito de escolha, despertando nele o espírito crítico e lúdico somente encontrado no contato com as melhores produções artísticas.

Este é um ponto que não pode deixar de ser considerado, porque a cultura gera 5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. No entanto, a indústria cultural produz uma terrível concentração de renda, gerando as mais profundas desigualdades no setor com amplos reflexos na sociedade. Desigualdades que passam, logicamente, pelo comportamento das mídias. Por exemplo: dizem que brasileiro não lê, mas somente o mercado livreiro nacional faturou 200 bilhões de reais no ano passado, segundo dados da Câmara Brasileira do Livro. Será que os barões do livro estão preocupados com as políticas de leitura? Da mesma forma que o mercado do livro, o mercado fonográfico está na mão de dois ou três tubarões. Portanto, reafirmo que o debate gerado em torno do assunto não se resume apenas ao debate estético. O que precisa ficar evidente é a atitude política em defesa de uma economia historicamente abalada pelas degenerações de um sistema econômico cada vez mais concentrador e castrador das regiões periféricas.

Na lógica absurda do mercado da música, uma banda de axé da cidade (do Castelo Branco) quis justificar a necessidade da sua contratação por um cachê dez vezes acima do cachê médio que pagamos aos artistas locais sob o argumento que “o axé era outro mercado”. O que eu expliquei, pacientemente, é que não trabalhamos na lógica do mercado, mas na lógica das políticas públicas. E qual é esta lógica? É a lógica do respeito à diversidade, da identidade cultural, da preservação do direito à criação e o respeito à diversidade humana. A Por exemplo: a Prefeitura tem uma política pública em defesa dos direitos das mulheres. Então, seria uma contradição a FUNJOPE contratar bandas que vilipendiam a imagem da mulher. Outro exemplo: temos uma política de defesa da diversidade humana que nos arrasta para o confronto com os menores sinais de homofobia. Isso é o básico! Na prática, o que temos vivido é um aprendizado coletivo no imenso desafio de compatibilizar tradição e contemporaneidade nas políticas de cultura da cidade. No entanto, nesse jogo nos cabe deixar claro a separação do joio e o destino do trigo.

O que ocorre é que a indústria do entretenimento ditada pelas mídias faz exatamente o contrário. São pregações oligopolistas guiadas unicamente pela lógica do lucro concentrado, com um forte marketing para arrastar seguidores de baixo teor reflexivo, mas com capacidade de formar opinião em qualquer escala de mídia, incluindo as redes sociais da internet. Podemos afirmar ainda que consideramos inescrupulosos os produtores desses gêneros musicais infiltrados na esfera pública e que fazem “a ponte” para esse mercado de horrores. O que expliquei ainda aos representantes do axé-paraíba é que ao pagar um cachê dez vezes maior que a média local seria, sobretudo, um estupro administrativo sem justificativa no Tribunal de Contas do Estado que nos solicita clareza na justificativa de preço dos cachês. Portanto, são tantas coisinhas miúdas envolvidas em nossas escolhas. São tantas responsabilidades que o que precisamos fazer é exatamente preservar os nossos princípios. Precisamos estabelecer a ruptura dos monopólios midiáticos que estabelecem praticamente a totalidade do consumo na produção cultural. A gestão dos recursos públicos de cultura precisa ter claro que além do verão de Tambaú, existe o inverno de Engenho Velho pra ser administrado. A cidade é uma só.

Mas, em se tratando de cultura tudo é incipiente. Não temos uma grande tradição em política cultural no Brasil. O primeiro gestor de cultura do país foi o poeta Mário de Andrade que assumiu o recém criado Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1937. Ele ficou apenas um ano no cargo e foi demitido, mas as políticas identitárias que defendeu ainda estão em pauta. A secretaria de cultura mais antiga do país tem apenas 40 anos (do Ceará). A própria FUNJOPE tem uns 15 aninhos, somente. Embora algumas pessoas da cidade pensem que foi criação do governo Ricardo Coutinho. (A cidade não sabia que existia, por exemplo, um Fundo Municipal de Cultura.) Hoje temos projetos aprovados no Valentina, na Torre, em Gramame e outros setores da cidade carentes de arte e cultura e que agora passam a assumir um papel no diálogo sem fronteiras que deve nortear as políticas culturais, como protagonistas e não como figurantes ocasionais.

Mais do que fazer circular os bens culturais produzidos na cidade, é importante ampliarmos permanentemente esse debate sobre a estética do mercado. Por que fazemos as coisas de uma maneira e não de outra? Por que não nos preocupamos em elaborar programações que “agradem todo mundo”? Devemos fazer o que o povo quer ou o que o povo precisa? Este ano, numa mesa do projeto “Valentina com arte III”, escutei da parte de um músico, coisas do tipo: “eu faço forró de plástico, mas eu faço forró de plástico autoral”. É como se houvesse na sua frase e no brilho dos seus olhos, além de uma justificativa, um pedido de perdão. Estás perdoado, amigo, mas aprofunde mais suas pesquisas musicais que você vai encontrar bem perto de você, pérolas necessárias à lapidação das nossas almas. Senti naquele momento, o valor de uma simples reflexão sobre o fazer cultural da cidade.

Nesses quatro anos estabelecemos um debate sincero com os bairros, através não apenas das palavras, mas de ações concretas que se conjugaram com ações de políticas públicas intersetoriais focadas no interesse público. Esta é uma condição que trazemos à tona para a formulação de um discurso que busca, incessantemente, a democratização dos espaços para as expressões culturais e artísticas da cidade e a devida acessibilidade a esta produção pela própria cidade.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...