sábado, 23 de julho de 2011

Hercília Fernandes e as iluminuras do silêncio

Lau Siqueira
A poesia sempre percorre caminhos incertos. Comunga com as coisas invisíveis, com as gotas minúsculas de orvalho na manhã das folhas. A poesia desnuda e disfarça para mostrar-se no etéreo e na eternidade das canções que nos guiam pelos caminhos do mundo. Como um pássaro do amanhecer, desdenha do ritmo num canto que se harmoniza com as cores do arrebol. Numa fotografia de fatos imperceptíveis, cada autor vai construindo a sua identidade. “O estilo é a fisionomia do espírito”, como nos disse Schopenhauer em A Arte de Escrever. É bastante complexo definir estilo. Mas, a verdade é que veremos neste livro os contornos definidores de um espírito criativo (ou um eu lírico, como queiram) que resiste e se mostra em cor e ritmo, em musicalidade e imagem definida na feitura de cada verso.

A poesia de Hercília Fernandes percorre os passos incertos da linguagem com a certeza dos que saltam por sobre os abismos, sem medo de voar. Aliás, como toda poesia que se espalha para além das palavras, para além dos significados. “Nós em Miúdos é um testamento de lágrimas e risos, de sensações da pele e erupções da alma. O livro reúne poemas que nos conduzem às imensidões e ao microcosmo da existência humana. Tudo a partir da unidade de uma expressão poética que se entrega e ao mesmo tempo se dissolve no ar. Tudo infinitamente multiplicado nos olhares do leitor que, assim,    promove na leitura as reinvenções do texto: “meu peito está em recesso/ aberto à contemplação aos motivos/ que antecedem as mãos sobre o verbo/ nada há de polêmico, comprimido, ascético.../ apenas fumaça, poeira, vastidão...” Em poemas que municiam a esperança dos que sonham e vivem intensamente, a autora conduz com a maestria de uma bailarina de estrelas, uma solução de incêndios que apresenta ao leitor algo aproximado ao que Umberto Eco chama de “apresentar ao leitor , uma a uma, as contravenções às leis de probabilidade.” Não se faz necessário aqui contextualizar a imagem criada pelo pensador italiano com a configuração de poemas que se relacionam entre si e traçam uma corrente de pequenas vertigens entre a autora e seus motivos, com a transcendência que impulsiona e conduz cada sílaba na expressão do verso. E aqui reporto-me, mais uma vez a um poema que transpira simplicidade no que de mais complexo existe na expressão poética: “quando menina adorava bicicleta/ levava bons tombos - era certo! - mas insistia/ em dominar a máquina.../ soltava as mãos do guidon: irra!/ pedalava estrada infinita!.../ até que um dia caminhão me retirou da trilha/ arranhando-me pernas, joelhos, pés.../ sonhos/ deixou-me arisca: cicatriz no ombro,/ ferida na alma”

Cavalgando pelos seus motivos, cercando-se de labirintos e caminhos certeiros, Hercília impõe trovoadas ao silêncio e desdenha do erotismo com uma selvagem sensualidade tecida em versos precisos e de absoluta convicção quanto as possibilidades de cada palavra. Segundo Antônio Cândido “a idéia de ritmo é muito complexa, e frequentemente muito vaga.” Mas, talvez esteja nesta complexidade ritmica o aspecto determinante deste “Nós em Miúdos”, onde o desnudamento  afronta as fronteiras do que poderia parecer confissão. A lírica desenvolvida por Hercília vai ao cerne do encantamento e de lá arranca um tecido ao mesmo tempo cálido e áspero. Algo que vai bebendo as possibilidades de leitura uma a uma e se reescrevendo em hálitos de desejo e clausura. Mergulho aqui na compreensão de uma poesia que canta a si mesma, convergindo para o que Antônio Cândido também afirma: “Os elementos que compõe o verso são indissolúveis, e não podemos imaginar um sem o outro.”

A partir de versos cuidadosamente lapidados, revelando-se leitora atenta dos livros e das palavras escritas na pele, a poeta conjuga o aço do espelho com a transparência de uma nascente de rio. Tudo com a simplicidade e a perplexidade de uma vida sorvida aos poros e aos berros de um silêncio que jamais se rende. Escreve como se estivesse extraindo da fisionomia dos seus estuários líricos uma verdade que se transforma a cada movimento da água, cada avanço do rio corrente das suas entranhas e a volúpia da sua racionalidade. Estamos diante de uma artista com plena consciência do seu tear criativo. Como se manobrasse uma enorme locomotiva longe dos trilhos porque se permite às aventuras da invenção sem amargurar suas metáforas no hermetismo inútil que busca-se em rótulos.

Hercília consegue extrair momentos de rara beleza neste "Nós em Miúdos", nos poemas já citados e em poemas como este: “enquanto você sonha/ me devora em sua sandice calado/ eu ponho meus óculos-de-sombra/ e me afogo na superfície/ do aquário...” Faturas absolutas pela densidade, onde a poeta consolida sua presença na poesia contemporânea nordestina que a cada momento se renova e se distancia dos esteios medidos pelo olhar nem sempre atento dos senhores de engenho de uma crítica nem sempre atenta ao que se estabelece sem pedir licença. A poesia de Hercília Fernandes abre mão de apresentações. Se impõe na construção de enigmas absolutamente emoldurados pelo silêncio e pelo abano dos zincos que nos condicionam dentro de uma ciranda que pode e deve deliberar o tamanho das coisas.

(Prefácio do livro - no prelo - Nós em Miúdos, da poeta potiguar Hercília Fernandes. Hercília é professora na Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Cajazeiras-PB)

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