terça-feira, 31 de dezembro de 2019

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO




Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de branco. Provavelmente estarei dormindo enquanto as multidões celebram mais um dia entre os 365 do mesmo calendário. Eu sou desconfiado com as multidões. O tal do novo ano não muda muita coisa além do calendário. Os boletos continuarão a chegar. As tristezas, as alegrias... O que tempo que passou não volta e é bobagem achar que o que não foi vivido deixou lacunas. A vida é um jogo de escolhas. Não dá pra viver tudo. A pressa é um erro. Não há tempo para lamentações. Seria bobagem pesar escolhas. Tudo é muito importante e só somos o que somos porque vivemos a nossa parte. Se aprende com a liberdade, mas também se aprende com os momentos reclusos. A verdade é que uma mudança de data, seja ela ano novo ou aniversário, não muda absoluamente nada. O que muda de verdade, muitas vezes, sequer percebemos.

Há muito não celebro datas. Celebro momentos. Celebro o inútil e muito mais as coisas invisiveis. As emoções inconfessáveis, também. As práticas utilitárias do cotidiano me dizem pouco.  O que não cabe nas palavras nem determina absolutamente nada é muito mais revelador. Não posso saber o que será a vida depois que eu postar esse texto e calçar o tênis para caminhar na Praça da Paz. O que será amanhã é fruto e semente de um percurso, de uma história. Quando tinha vinte anos não esperava chegar aos 30 anos. Numa ditadura se perde a noção de futuro. Todavia em março tenho data marcada para  chegar so 63 anos. Nem sempre cumpro meus prazos, mas o que jamais esqueço é agradecer tudo que foi vivido. Sem hierarquias. O todo, o conjunto. Tenho hábitos estranhos. Sou ateu, mas atravesso o país para rezar no túmulo dos meus pais, por reconhecê-los enquanto simbologias de lucidez e coragem para seguir em frente. Sei de onde vim. Reconheço meus pares. Em Jaguarão existe uma luz que me espalha pelo mundo.

Quanto ao que poderá acontecer ainda é cedo pra pensar. Também é tarde pra mudar o que passou. Porque a vida é sempre aqui e agora. Nao faço planos, mas estarei lendo e, se possível, escrevendo poemas até ser coberto pela sombra e pelas sobras. Não vou perder meu tempo na busca de reconhecimentos que não me pertencem. "Viver é melhor que sonhar", já dizia Belchior.  Lembo das cartas trocadas com o poeta Potiguar Luiz Rabelo. Na última ele lamentou, disse que tentava escrever, mas só saía mixórdia. Nunca mais esqueci o termo. Tempos depois, soube que ele havia morrido. Na verdade, não temos a plena dimensão do que representamos para as pessoas e eu não tive tempo de dizer. Guardei meu silêncio. Às vezes, também, sem perceber, somos apenas um incômodo. Por isso mantenho na minha sala uma gaiola com as portas abertas. Pássaros que frequentam a minha casa encontrarão sempre as portas e janelas abertas - para entrar e para sair. O mundo não depende de nós. Mas como é importante perceber o que pode ser mudado em nós para que o mundo seja melhor e mais justo. Uma vez o ator Fernando Teixeira me disse que estava em São Paulo, sem grana, fodido em pleno reveillon. Entao viu um out-door com a seguinte frase: "SE VOCÊ QER QUE O ANO NOVO SEJA DIFERENTE, MUDE". Sua vida, segundo ele próprio, nunca mais foi a mesma.

Amanhã estarei aqui, ou não. Pouco importa. Pouca coisa muda. Nao vivi uma vida de estabilidades. Cresci numa ditadura. Nasci numa "área de segurança nacional". Me fiz homem lutando por liberdade e por direitos. Minha é glória é apenas não me envergonhar dos meus erros. Tudo sempre foi muito incerto, mas aprendi a navegar em mares turbulentos. Também aprendi a beber das calmarias. Curto as essências, mas não desprezo o bagaço das coisas. Peno que não deveríamos julgar nossos atos. Deveríamos apenas viver a intensidade de cada instante. O que não se transfere. O que não se repetirá. O que chamam de volúvel, mas não é. Nem na mais ferrenha rotina as coisas se repetem. As muitas metáforas de um rio explicam tudo. Basta escutar a linguagem das águas. O que nos define é exatamente o que passa. Somos uma soma cheia de subtrações. O que nos diferencia é apenas a intensidade com a qual nos jogamos no que realmente vale a pena. "Viver é afinar o instrumento/ de dentro pra fora/ de fora  pra dentro", como cantava Walter Franco. O que é permanente não depede de nós. Afinal, o sentimento que nos move é a saudade do futuro.

Hasta siempre!


Lau Siqueira - 31/12

domingo, 15 de dezembro de 2019

O TEMPO DA CAMERATA PARAHYBA

A Camerata Parahyba na lente de Lu Botelho.
Por Lau Siqueira



Podemos dizer que a música da Paraíba possui um cenário erudito consolidado. Talvez seja um dos poucos estados do país que ostenta quatro orquestras sinfônicas. Duas do Governo do Estado, uma Prefeitura da capital e outra da Universidade Federal da Paraíba. Talvez seja a Paraíba, também, um dos grandes polos produtores de música erudita contemporânea. As tradições paraibanas são sólidas. É daqui o Maestro José Siqueira, um compositor cuja obra é complexa, extensa e diversa.  Grandes nomes, grandes estudiosos da música com reconhecimento internacional, moram aqui. O saudoso Radegundes Feitosa foi o segundo Doutor em Trombone do mundo. A Paraíba se dá o luxo de guardar no anonimato maestros de reconhecido talento como o Maestro Amâncio, de Piancó. Também em Piancó guarda um dos grandes trompetistas que hoje trabalha como vigilante de uma escola municipal, o Nego Lula. Paremos por aqui. Nominar alguns é sempre ser injusto com muitos.

Pois a Camerata Parahyba nasceu nesse contexto. Na última sexta-feira apresentou-se pela primeira vez para o público paraibano. Chegou de forma absolutamente arrebatadora na capela do Centro Cultural São Francisco, um dos grandes portais da cultura brasileira. Um público generoso lotava suas dependências. A acústica secular da capela foi testemunha de um grande espetáculo. A Camerata trouxe um repertório escolhido a dedo e celebrou uma das realidades musicais mais complexas do mundo que é a música brasileira. Aliás, “Brasileiríssimos” foi o nome dado ao concerto inaugural. Um repertório com peças de José Siqueira, Alberto Nepomuceno, Carlos Gomes, Heitor Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Joselho Rocha e Arthur Barbosa. Um repertório que levou o público formado por estudantes, admiradores de música erudita e turistas, a aplaudir de pé. Poucas vezes vemos  uma plateia de concerto pedindo bis. A Camerata Parahyba, entretanto,  teve que voltar ao palco para celebrar e agradecer, executando mais uma vez o Frevo de Arthur Barbosa.

Nessas alturas o leitor ou a leitora deve estar se perguntando como nasceu este fenômeno. É uma história longa, mas que merece ser resumida. Em 2012, o então governador Ricardo Coutinho teve a ousadia de criar um projeto nos moldes do famoso El Sistema, da Venezuela e Neojibá, da Bahia. Era gestão do então secretário de Cultura Chico Cesar que convidou o renomado Maestro Alex Klein (atualmente na Sinfônica de Chicago) para implantação do projeto. Assim nasceu o PRIMA – Programa de Inclusão Através da Música e das Artes. Desde então as experimentações se  somam na direção da música de câmara. Entretanto, em 2018 houve uma aposta na consolidação da linha camerística enquanto estratégia pedagógica. Nasceram excelentes grupos, como o Quarteto Tabajara e o Quinteto Anumará, entre outros, formados por professores do programa e realizando master class para os alunos e concertos em cidades como Picuí, Pombal, Guarabira e outras. Também grupos de alunos e alunas, como o Quarteto Hawe e o Quinteto Mangaio mostraram sua melhor e crescente produção. Todos preparando futuros concertos.

Nada, no entanto, chegou aleatoriamente. A coordenação pedagógica do PRIMA, sob a batuta do Maestro Rainere Travassos, acompanha tudo. Conforme escreveu o violonista Luiz Montovani,  “à medida que o estudante desenvolve suas habilidades camerísticas, familiarizando-se com questões fundamentais como o ataque sincronizado, as entradas, o gestual camerístico, a habilidade de seguir e liderar, o equilíbrio sonoro aplicado no contexto musical, etc., ele se encontrará mais bem preparado para abordar o repertório camerístico em grupos heterogêneos com instrumentos cujos estudantes tradicionalmente praticam música de câmara desde o início de sua formação instrumental. São experiências testadas e aprovadas, deixando saldos positivos nas práticas diárias de sala de aula. Em Campina Grande, depois da passagem do Quarteto Tabajara para uma master class e um concerto, os próprios alunos tomaram a  iniciativa de criar um quarteto de cordas. Assim o PRIMA passou o ano investindo na criação de referenciais, orientações e estímulos para o seu público. Tudo isso, fruto de um olhar crítico e construtivo sobre esse conceituado programa e sua pedagogia. A Camerata nasceu como apogeu de uma linha crítica sobre o desenvolvimento de um programa social onde a música, pelo menos por enquanto, é a principal porta aberta ao mundo para o alunado.  O PRIMA é atualmente, o maior fornecedor de alunos e alunas para os cursos superiores de música existentes na Paraíba. Junto aos demais grupos, a Camerata Parahyba carimba o passaporte para uma linhagem de excelência ao programa.
Aísley Mirella de Sousa, violinista, ex-aluna e hoje professora do programa resume um pouco o que é a Camerata. Aísley foi aluna da também violinista Denise Amorim que, por sua vez, foi aluna do conceituado professor Yerko Tabilo, professor aposentado da UFPB e ex-integrante do Quinteto da Paraíba. Os três hoje integram a Camerata. Para Aísley, “estudar música era uma coisa um pouco inalcançável. Eu só via orquestras tocando em filmes. Não passava pela minha cabeça tocar numa camerata ou orquestra. O PRIMA me ajudou a sonhar grande. Eu queria me especializar, ser professora no programa e passar para outros alunos tudo que aprendi. Queria viajar pra fora e mostrar tudo que o violino era pra mim. Na camerata estou aprendendo muito sobre as novas técnicas do instrumento e como a energia que a gente coloca na música interfere na forma como o público a recebe. Estou aprendendo mais sobre respeito, sobre trabalho em equipe, sobre ouvir e entender o outro. Assim como eu me espelhava nos meus professores, acredito que os alunos do PRIMA deverão se espelhar também na Camerata Parahyba”. 


Composta atualmente por Denise Amorim, Yerko Tabilo, Luana Barros e Aisley Mirella (violino I); Ismael Oliveira, Matheus Leite, Joeilton Nunes e Rayssa Melo (violino II); Melk Nascimento, Hemerson Praxedes, Helen Lavor, Elayne Marques (viola); Leonardo Pesquita, Elton Kennedy, Jennifer Souza (violoncelo) e André Sousa (contrabaixo), a Camerata Parahyba registrou seu batismo de fogo no dia 13 de dezembro de 2019, já como uma das boas novidades musicais do ano e apresentando uma boa perspectiva para 2020. Cresce a ideia de percorrer o Estado num calendário previamente planejado, espalhando pela Paraíba as possibilidades sonoras da música de camerística, num quase reordenamento da cena regional. Mas também numa perspectiva de reflexão sobre o ensino da música. Seja num programa como o PRIMA, ou mesmo nos cursos superiores que são oferecidos no nosso estado. Portanto, para além da execução musical de excelência a Camerata Parahyba nasce enquanto ação provocativa dentro de um cenário em permanente ebulição. Tudo isso, “sem perder a ternura, jamais”!

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...