terça-feira, 31 de dezembro de 2019

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO




Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de branco. Provavelmente estarei dormindo enquanto as multidões celebram mais um dia entre os 365 do mesmo calendário. Eu sou desconfiado com as multidões. O tal do novo ano não muda muita coisa além do calendário. Os boletos continuarão a chegar. As tristezas, as alegrias... O que tempo que passou não volta e é bobagem achar que o que não foi vivido deixou lacunas. A vida é um jogo de escolhas. Não dá pra viver tudo. A pressa é um erro. Não há tempo para lamentações. Seria bobagem pesar escolhas. Tudo é muito importante e só somos o que somos porque vivemos a nossa parte. Se aprende com a liberdade, mas também se aprende com os momentos reclusos. A verdade é que uma mudança de data, seja ela ano novo ou aniversário, não muda absoluamente nada. O que muda de verdade, muitas vezes, sequer percebemos.

Há muito não celebro datas. Celebro momentos. Celebro o inútil e muito mais as coisas invisiveis. As emoções inconfessáveis, também. As práticas utilitárias do cotidiano me dizem pouco.  O que não cabe nas palavras nem determina absolutamente nada é muito mais revelador. Não posso saber o que será a vida depois que eu postar esse texto e calçar o tênis para caminhar na Praça da Paz. O que será amanhã é fruto e semente de um percurso, de uma história. Quando tinha vinte anos não esperava chegar aos 30 anos. Numa ditadura se perde a noção de futuro. Todavia em março tenho data marcada para  chegar so 63 anos. Nem sempre cumpro meus prazos, mas o que jamais esqueço é agradecer tudo que foi vivido. Sem hierarquias. O todo, o conjunto. Tenho hábitos estranhos. Sou ateu, mas atravesso o país para rezar no túmulo dos meus pais, por reconhecê-los enquanto simbologias de lucidez e coragem para seguir em frente. Sei de onde vim. Reconheço meus pares. Em Jaguarão existe uma luz que me espalha pelo mundo.

Quanto ao que poderá acontecer ainda é cedo pra pensar. Também é tarde pra mudar o que passou. Porque a vida é sempre aqui e agora. Nao faço planos, mas estarei lendo e, se possível, escrevendo poemas até ser coberto pela sombra e pelas sobras. Não vou perder meu tempo na busca de reconhecimentos que não me pertencem. "Viver é melhor que sonhar", já dizia Belchior.  Lembo das cartas trocadas com o poeta Potiguar Luiz Rabelo. Na última ele lamentou, disse que tentava escrever, mas só saía mixórdia. Nunca mais esqueci o termo. Tempos depois, soube que ele havia morrido. Na verdade, não temos a plena dimensão do que representamos para as pessoas e eu não tive tempo de dizer. Guardei meu silêncio. Às vezes, também, sem perceber, somos apenas um incômodo. Por isso mantenho na minha sala uma gaiola com as portas abertas. Pássaros que frequentam a minha casa encontrarão sempre as portas e janelas abertas - para entrar e para sair. O mundo não depende de nós. Mas como é importante perceber o que pode ser mudado em nós para que o mundo seja melhor e mais justo. Uma vez o ator Fernando Teixeira me disse que estava em São Paulo, sem grana, fodido em pleno reveillon. Entao viu um out-door com a seguinte frase: "SE VOCÊ QER QUE O ANO NOVO SEJA DIFERENTE, MUDE". Sua vida, segundo ele próprio, nunca mais foi a mesma.

Amanhã estarei aqui, ou não. Pouco importa. Pouca coisa muda. Nao vivi uma vida de estabilidades. Cresci numa ditadura. Nasci numa "área de segurança nacional". Me fiz homem lutando por liberdade e por direitos. Minha é glória é apenas não me envergonhar dos meus erros. Tudo sempre foi muito incerto, mas aprendi a navegar em mares turbulentos. Também aprendi a beber das calmarias. Curto as essências, mas não desprezo o bagaço das coisas. Peno que não deveríamos julgar nossos atos. Deveríamos apenas viver a intensidade de cada instante. O que não se transfere. O que não se repetirá. O que chamam de volúvel, mas não é. Nem na mais ferrenha rotina as coisas se repetem. As muitas metáforas de um rio explicam tudo. Basta escutar a linguagem das águas. O que nos define é exatamente o que passa. Somos uma soma cheia de subtrações. O que nos diferencia é apenas a intensidade com a qual nos jogamos no que realmente vale a pena. "Viver é afinar o instrumento/ de dentro pra fora/ de fora  pra dentro", como cantava Walter Franco. O que é permanente não depede de nós. Afinal, o sentimento que nos move é a saudade do futuro.

Hasta siempre!


Lau Siqueira - 31/12

domingo, 15 de dezembro de 2019

O TEMPO DA CAMERATA PARAHYBA

A Camerata Parahyba na lente de Lu Botelho.
Por Lau Siqueira



Podemos dizer que a música da Paraíba possui um cenário erudito consolidado. Talvez seja um dos poucos estados do país que ostenta quatro orquestras sinfônicas. Duas do Governo do Estado, uma Prefeitura da capital e outra da Universidade Federal da Paraíba. Talvez seja a Paraíba, também, um dos grandes polos produtores de música erudita contemporânea. As tradições paraibanas são sólidas. É daqui o Maestro José Siqueira, um compositor cuja obra é complexa, extensa e diversa.  Grandes nomes, grandes estudiosos da música com reconhecimento internacional, moram aqui. O saudoso Radegundes Feitosa foi o segundo Doutor em Trombone do mundo. A Paraíba se dá o luxo de guardar no anonimato maestros de reconhecido talento como o Maestro Amâncio, de Piancó. Também em Piancó guarda um dos grandes trompetistas que hoje trabalha como vigilante de uma escola municipal, o Nego Lula. Paremos por aqui. Nominar alguns é sempre ser injusto com muitos.

Pois a Camerata Parahyba nasceu nesse contexto. Na última sexta-feira apresentou-se pela primeira vez para o público paraibano. Chegou de forma absolutamente arrebatadora na capela do Centro Cultural São Francisco, um dos grandes portais da cultura brasileira. Um público generoso lotava suas dependências. A acústica secular da capela foi testemunha de um grande espetáculo. A Camerata trouxe um repertório escolhido a dedo e celebrou uma das realidades musicais mais complexas do mundo que é a música brasileira. Aliás, “Brasileiríssimos” foi o nome dado ao concerto inaugural. Um repertório com peças de José Siqueira, Alberto Nepomuceno, Carlos Gomes, Heitor Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Joselho Rocha e Arthur Barbosa. Um repertório que levou o público formado por estudantes, admiradores de música erudita e turistas, a aplaudir de pé. Poucas vezes vemos  uma plateia de concerto pedindo bis. A Camerata Parahyba, entretanto,  teve que voltar ao palco para celebrar e agradecer, executando mais uma vez o Frevo de Arthur Barbosa.

Nessas alturas o leitor ou a leitora deve estar se perguntando como nasceu este fenômeno. É uma história longa, mas que merece ser resumida. Em 2012, o então governador Ricardo Coutinho teve a ousadia de criar um projeto nos moldes do famoso El Sistema, da Venezuela e Neojibá, da Bahia. Era gestão do então secretário de Cultura Chico Cesar que convidou o renomado Maestro Alex Klein (atualmente na Sinfônica de Chicago) para implantação do projeto. Assim nasceu o PRIMA – Programa de Inclusão Através da Música e das Artes. Desde então as experimentações se  somam na direção da música de câmara. Entretanto, em 2018 houve uma aposta na consolidação da linha camerística enquanto estratégia pedagógica. Nasceram excelentes grupos, como o Quarteto Tabajara e o Quinteto Anumará, entre outros, formados por professores do programa e realizando master class para os alunos e concertos em cidades como Picuí, Pombal, Guarabira e outras. Também grupos de alunos e alunas, como o Quarteto Hawe e o Quinteto Mangaio mostraram sua melhor e crescente produção. Todos preparando futuros concertos.

Nada, no entanto, chegou aleatoriamente. A coordenação pedagógica do PRIMA, sob a batuta do Maestro Rainere Travassos, acompanha tudo. Conforme escreveu o violonista Luiz Montovani,  “à medida que o estudante desenvolve suas habilidades camerísticas, familiarizando-se com questões fundamentais como o ataque sincronizado, as entradas, o gestual camerístico, a habilidade de seguir e liderar, o equilíbrio sonoro aplicado no contexto musical, etc., ele se encontrará mais bem preparado para abordar o repertório camerístico em grupos heterogêneos com instrumentos cujos estudantes tradicionalmente praticam música de câmara desde o início de sua formação instrumental. São experiências testadas e aprovadas, deixando saldos positivos nas práticas diárias de sala de aula. Em Campina Grande, depois da passagem do Quarteto Tabajara para uma master class e um concerto, os próprios alunos tomaram a  iniciativa de criar um quarteto de cordas. Assim o PRIMA passou o ano investindo na criação de referenciais, orientações e estímulos para o seu público. Tudo isso, fruto de um olhar crítico e construtivo sobre esse conceituado programa e sua pedagogia. A Camerata nasceu como apogeu de uma linha crítica sobre o desenvolvimento de um programa social onde a música, pelo menos por enquanto, é a principal porta aberta ao mundo para o alunado.  O PRIMA é atualmente, o maior fornecedor de alunos e alunas para os cursos superiores de música existentes na Paraíba. Junto aos demais grupos, a Camerata Parahyba carimba o passaporte para uma linhagem de excelência ao programa.
Aísley Mirella de Sousa, violinista, ex-aluna e hoje professora do programa resume um pouco o que é a Camerata. Aísley foi aluna da também violinista Denise Amorim que, por sua vez, foi aluna do conceituado professor Yerko Tabilo, professor aposentado da UFPB e ex-integrante do Quinteto da Paraíba. Os três hoje integram a Camerata. Para Aísley, “estudar música era uma coisa um pouco inalcançável. Eu só via orquestras tocando em filmes. Não passava pela minha cabeça tocar numa camerata ou orquestra. O PRIMA me ajudou a sonhar grande. Eu queria me especializar, ser professora no programa e passar para outros alunos tudo que aprendi. Queria viajar pra fora e mostrar tudo que o violino era pra mim. Na camerata estou aprendendo muito sobre as novas técnicas do instrumento e como a energia que a gente coloca na música interfere na forma como o público a recebe. Estou aprendendo mais sobre respeito, sobre trabalho em equipe, sobre ouvir e entender o outro. Assim como eu me espelhava nos meus professores, acredito que os alunos do PRIMA deverão se espelhar também na Camerata Parahyba”. 


Composta atualmente por Denise Amorim, Yerko Tabilo, Luana Barros e Aisley Mirella (violino I); Ismael Oliveira, Matheus Leite, Joeilton Nunes e Rayssa Melo (violino II); Melk Nascimento, Hemerson Praxedes, Helen Lavor, Elayne Marques (viola); Leonardo Pesquita, Elton Kennedy, Jennifer Souza (violoncelo) e André Sousa (contrabaixo), a Camerata Parahyba registrou seu batismo de fogo no dia 13 de dezembro de 2019, já como uma das boas novidades musicais do ano e apresentando uma boa perspectiva para 2020. Cresce a ideia de percorrer o Estado num calendário previamente planejado, espalhando pela Paraíba as possibilidades sonoras da música de camerística, num quase reordenamento da cena regional. Mas também numa perspectiva de reflexão sobre o ensino da música. Seja num programa como o PRIMA, ou mesmo nos cursos superiores que são oferecidos no nosso estado. Portanto, para além da execução musical de excelência a Camerata Parahyba nasce enquanto ação provocativa dentro de um cenário em permanente ebulição. Tudo isso, “sem perder a ternura, jamais”!

sábado, 9 de novembro de 2019

AS FEIRAS LITERÁRIAS DA PARAÍBA


por Lau Siqueira

Já teve Salão do Livro na Paraíba. Já teve Bienal do Livro, também. Mas não se sustentaram. Apenas uma edição de cada. Foram produções basicamente governamentais e tiveram problemas. Grandes eventos, grandes problemas. Quem nunca? Mas todas as tentativas sempre são bem-vindas. Fica sempre a experiência e a certeza do caminho correto nas políticas públicas. O livro e a leitura têm impacto estruturante no desenvolvimento de uma cidade, um estado, um país. São ações estruturantes e motivadoras para a Educação. Aliás, investir em Educação significa, sobretudo, integrar as poliíticas educacionais no cotidiano da população. Existem outras, mas as feiras literárias são as grandes portas, as grandes travessias contra os conceitos de confinamento das cidades diante dos muros escolares. Se os ginásios são objeto de desejo, as bibliotecas escolares também podem ser.

A ABES - Associação Boqueirãoense de Escritores dá régua e compasso.
Em 2005 a FUNJOPE – Fundação Cultural de João Pessoa criou um departamento de literatura  e em 2006 surgiu o Agosto das Letras. Um evento que trouxe para João Pessoa toda a cena literária contemporânea. Em 2011 foi transformada em Augusto das Letras e morreu sendo recuperada com outro formato pela FUNESC – Fundação Espaço Cultural. Eventos governamentais sempre possuem tempo determinado, entretanto. Aliás, isso me parece bem natural. É como se cumprissem mandato.
Mas fora do eixo as coisas andam melhor. Em 2009 um grupo de escritores e escritoras do Cariri decidiram quebrar esse paradigma. Em Boqueirão, Cidade das Águas, nasceu a I FLIBO – Feira Literária de Boqueirão. A Associação Boqueirãoense de Escritores dava um grande passo e se constituiria na maior referência paraibana em pouco tempo. Em 2019 tivemos a X FLIBO. Inspirada em Boqueirão, a simpática cidade de Barra de São Miguel  também criou sua feira e a FLIBARRA hoje já é uma das mais importantes do Estado com um impacto importante na Educação e na Economia do município. De 2017 pra cá parece que houve uma explosão. As cidades, mesmo as menores, perceberam que poderiam realizar suas feiras literárias. Muitas vezes o trabalho de uma ou duas professoras em sala de aula eram o grande impulso.

Desta forma, nasceu a FELIPI – Feira Literária de Piancó que este ano já realizará sua terceira edição. Logo em seguida a pequena e bela cidade de Mãe D’água também partiu para realizar sua feira e a FLIMA este ano realizou sua segunda Edição. Monteiro, a “capital do Cariri” não ficou de fora e realizou a sua I FLIMON – Festa Literária de Monteiro ano passado. Também no Cariri a cidade de Gurjão que já realizava há dez anos um Seminário de Leitura (Bota pra Fazer), mudou o formato e criou a FLIG que deverá acontecer por esses dias. Por esses dias, também Campina Grande realizará sua segunda FLIC – Feira Literária de Campina Grande. A cidade já contava com um dos eventos mais importantes da literatura na Paraíba. Um  Seminário de Literatura é realizado em pleno carnaval com a organização do Núcleo Bleckaut  de Literatura. Pedras de Fogo não deixou por menos e este ano realizou a II FLIFOGO.

Mas não para por aí. Ano passado o Vale do Mamanguape realizou sua Feira Literária e este ano Barra de Mamanguape já prepara para 2020 a I FLIBA. O Brejo paraibano não poderia ficar fora desta onda literária e este ano já tivemos a FLIBANANEIRAS em Bananeiras e a FLAREIA, em Areia. Cidades com boa projeção turística acabam incorporando uma rede de feiras literárias que vai colocando a Paraíba num dos melhores roteiros do país. Com a cara e a coragem de professores e poetas a cidade de Pocinhos este ano realizou pela segunda vez a FLIPOCINHOS e Itabaiana através do grupo Sarau das Almas, realizou a FELITA. Logicamente que a terra de Augusto dos Anjos não poderia ficar de fora e teve a felicidade de realizar a FELIS – Feira Literária de Sapé. Cajazeiras, “a cidade que ensinou a Paraíba a ler” fará este ano a I FLICA que já nascerá grande. A cidade de Conde, no litoral sul fez sua feira ano passado e em 2019 realizará a II Feira Internacional de Literatura.

Enfim, com participação ínfima do poder público na maioria dos casos, parece que a febre vai tomando conta cada vez mais dessa verdadeira militância literária espalhada pelo Estado e onde ainda não aconteceu as pessoas começam a perceber que é possível fazer uma festa literária onde se deverá celebrar a literatura e não as estrelas do mundo literário brasileiro. Se não rola cachê, também é verdade que autores como Jairo Cesar e o pernambucano Abraão Filho comemoram a venda de livros que são lidos por crianças e jovens em algumas cidades. Não tenho dúvidas que ainda é muito pouco, mas já é um grande começo. Este ano a Secretaria de Educação Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba atendeu os apelos e trouxe para a rede pública um evento chamado FLIREDE que levará para mais algumas dezenas de escolas e municípios a ideia da celebração literária com as feiras literárias.

São dezenas de projetos literários espalhados pelo Estado. Estas são as semeaduras mais férteis para que mais festivais, feiras e festas literárias aconteçam. Algumas estão borbulhando, prontas para transbordar. É o caso de Matinhas, Santa Luiza, São Bento, Serra da Raiz e Uiraúna. Em Santa Rita parou e deve voltar porque deixou saudade, a FLITI – Feira Literária de Tibiri. Aliás, as ideias de feiras por bairros já não são novidade. Criador da Feira Literária de Marechal Deodoro, uma das mais prestigiadas do país, Carlito Maia agora realiza feiras literárias nos bairros de Maceió e ano passado tivemos a prestigiada FLIBARRA, na Barra. No bairro do Bancários, em João Pessoa, já se discute uma feira literária na Praça da Paz. Enfim, o bolo está crescendo e quem ganha com isso é a Paraíba, a sociedade paraibana. Afinal, as feiras literárias precisam de conteúdo e não de ostentação. Uma vez considerado o conceito e a necessidade de uma feira literária para dar consistência nas ações pedagógicas, meio caminho estará traçado. Devo ter esquecido de algumas, mas o cardápio está pronto. A esperança está no ar. Até mesmo a pequena cidade de Prata começa a se movimentar para mais uma feira no Cariri. Assunção tem tudo para uma feira focada no Cordel. Parece que em 2020 o bicho vai pegar.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

UMA CIDADE VESTIDA DE LIVROS




Segundo a Professora Aurea Canejo, secretária de Educação de Barra de São Miguel, “a FLIBARRA não é um evento, mas um projeto”. A frase define com exatidão o Festival Literário de Barra de São Miguel que realizou sua sexta edição nos dias 16, 17 e 18 de maio. Uma cidade com cerca de seis mil habitantes, localizada no Cariri Oriental da Paraíba, seguramente, executa um dos mais articulados e organizados festivais de literatura do Nordeste. Grande parte da população reside nos distritos. Alguns distantes até 30km da cidade, como é o caso de Floresta. No entanto, a frequência média de público na VI FLIBARRA foi de aproximadamente mil pessoas. As atividades aconteceram pela manhã, tarde e noite. Foi ampla a participação das escolas e da população. Mas é preciso que seja dito: a verdadeira FLIBARRA se desenvolve no cotidiano das escolas. Só no calendário da cidade que a festa ocorre uma vez por ano. As atrações foram todas da região. Todavia pudemos notar que as mais acarinhadas pelo público foram as atrações da cidade. A exemplo da cantora e servidora municipal, Socorro Benjamin que foi ovacionada algumas vezes. A cidade abraçou seu festival literário e o festival, em contrapartida, se enrosca cada vez mais na extensão do seu território e da sua história.


Na sexta edição, o FLIBARRA se firmou como um dos mais importantes eventos literários do Estado. O trabalho com a literatura nas salas de aula é algo permanente e já revela algumas potencialidades entre os jovens para o exercício criativo da escrita. A preocupação com a formação de bons leitores é permanente. A cidade se orgulha do que produz culturalmente. A exemplo da Filarmônica São Miguel que, sob a batuta do Maestro Sergio Moura, pode ser considerada, seguramente, uma das melhores do Estado. Destacamos ainda a presença permanente do prefeito João Batista Truta e dos secretários municipais em todos os dias do festival. A gestão do município teve participação ativa na organização e execução em todos os sentidos. Por exemplo, o mestre de cerimônias era simplesmente o chefe de gabinete do prefeito, Alisson Nascimento. Tamanha integração da organização com a produção cultural do município, não poderia ter outro resultado: a cidade abraçou a FLIBARRA e isso fez toda a diferença. Além de projetar positivamente o município, a FLIBARRA estimula a população na busca dos melhores caminhos pra a Educação municipal. Na verdade, faz da população a principal parceira do projeto. Faz todo sentido, portanto, a fala do prefeito na abertura do evento, projetando a erradicação do analfabetismo na cidade. A Educação é vista como prioridade em Barra de São Miguel e a Cultura uma das suas ferramentas mais efetivas e afetivas.

Mas não é só isso. Barra se orgulha das suas muitas histórias. Aliás, sua história virou livro e foi debatida no festival. O professor e historiador João Paulo França, nascido no Rio e muito bem-criado em Barra de São Miguel, fez mestrado em História na UFCG e a sua amada “Potira” (nome anterior da cidade) virou objeto de pesquisa e estudo. Assim nasceu “Apontamentos para a história de Barra de São Miguel-PB”, um mergulho apaixonado em aspectos importantes para a formação e desenvolvimento do município. A exemplo do impacto da chegada tardio da rede elétrica, em 1970. Na VI FLIBARRA havia espaço para tudo que é produzido na cidade. Da arte à gastronomia. Uma cidade de muita poesia. Mostrou muito apego à identidade cultural nordestina. Tanto que uma das atrações mais animadas foi o grupo “As Crechetes”, formado por professoras e monitoras das creches municipais e que apresentou um pouco da história do Coco de Roda. Tudo de forma muito animada, dançante, bela e envolvente.

Barra de São Miguel mostra aos demais municípios que priorizar a Educação não pode ser apenas um discurso. Priorizar a Educação deve ser uma prática cotidiana. Exige não só investimento, mas envolvimento direto dos gestores. Algumas feiras literárias que são realizadas pela Paraíba afora, infelizmente, contam com a participação tímida ou inexistente das gestões. Este não é o caso de Barra onde o Festival já vai para a segunda gestão e só cresce no reconhecimento dos cidadãos e cidadãs que lá residem. O FLIBARRA estimula a autoestima da cidade. “As práticas de incentivo à leitura sempre foram ferramentas indispensáveis para a formação cidadã”, disse Sanção Lins, da equipe organizadora. Ao declarar guerra ao analfabetismo, o prefeito João demonstra em que direção caminha nesses tempos de obscurantismo e de criminalização da Educação e da Cultura. A pequena Barra de São Miguel se mostra altiva. Aponta caminhos para gestores e para a população. Ler é um direito que não pode ser ignorado. Mais que isso: formar leitores de literatura é uma guerrilha amorosa e permanente contra o analfabetismo funcional que já atinge até mesmo algumas universidades. Em tempo de consagração da ignorância a FLIBARRA caminha para a sua sétima edição como um farol para este Brasil Profundo. Um Brasil que não se rende ao espetáculo permanente da submissão, do preconceito, do obscurantismo, do cabresto político e da condenação do povo à ignorância que é, em última análise, um fator de multiplicação das mais lamentáveis misérias humanas.

Lau Siqueira

terça-feira, 30 de abril de 2019

A cultura viva das esquinas.






O Boca de Cena não é apenas mais um grupo de Teatro de Bonecos. Ainda que não seja pouco manter ativo um grupo de Teatro de Bonecos no Nordeste em tempos de baixo investimento na cultura. Na verdade, o Boca é uma companhia com uma pegada altamente profissionalizada e um baita senso de humanidade. Assume uma vanguarda imprescindível ao segurar na mão dos grandes mestres do babau, do mamulengo e ao mesmo tempo disputar espaços para esta importante linguagem artística nos terrenos sempre áridos da modernidade. O Boca de Cena atravessa desertos imensos. Mesmo assim, se joga nos becos. Atocaia a própria sorte na guerrilha da estrada. Mas está sempre ali, nas barrancas e nas beiradas. Abrindo seu espaço de navegação e induzindo a memória no sentimento do povo. Tudo de uma forma lúdica, artística, inventiva.

Uma trupe que resiste às duras penas o controverso estado de desagregação cultural que vivemos. Muito por culpa dos governos. Muito mais ainda pela facilidade com que as multidões foram absorvendo a cultura diluidora das indústrias do utilitarismo. As mesmas indústrias que fabricam o medo, a violência, as pestes, os políticos canalhas e o abandono que distancia um menino e uma menina da própria infância. Essa mesma distância que afasta o público do direito de gargalhar com as bisbilhotices do Coelho Banzé, do jeito de colecionar sorrisos por onde passa. Para quem não conhece, o Coelho Banzé é o personagem criado para apresentar-se como mestre de cerimônia do Boca de Cena. Um personagem que nos mostra o quanto é viva a arte de manipular bonecos.

Assim, a comunicação é sempre imediata. Seja com o público infantil, juvenil, adulto ou dos grandes mestres da vida que muitas vezes não tiveram tempo de ver tudo ou ainda guardam na memória as histórias contadas nas beiras de esquina, nos sítios, nas favelas e nas escolas por onde essa expressão de grande apelo popular circula sempre que é solicitada. A relação com o público é sempre extasiante. Independentemente do lugar. As traduções que esses artistas, especialmente Artur Leonardo, Amanda  Viana e Valério, trio que enfrenta sempre as tempestades da mesma caminhada. Os cuidados com os textos, com as formas de abordagem do público, os gracejos medidos conforme a capacidade de absorção do lugar. O diálogo com o ambiente escolar e cultural das comunidades. Tudo isso faz com que o Boca de Cena esparrame por onde anda, o que eu chamo de “pedagogia do afeto”.

Um outro aspecto que precisamos destacar no Boca de Cena é o mergulho pesquisa. Já vi algumas vezes Artur se referir às influências do Mestre Clóvis do Babau na sua paixão pela arte. Um encontro que a sua infância em Guarabira proporcionou. Hoje o próprio Artur é um grande mestre bonequeiro. Na verdade, Artur, Amanda e Valério foram muito além. Muito além da mera pesquisa que carrega para os escaninhos da academia informações preciosas e nunca mais devolve. A pesquisa realizada pela Companhia vai mais longe. Traz à luz das plateias, nas mais diferentes comunidades, a história do Babau na Paraíba. Incorpora a tradição dos bonecos na caminhada de sucesso de quem merece o reconhecimento de ser um dos mais importantes grupos de teatro de bonecos em todo o país.

Com os pés fincados na tradição, a inquietude principalmente de Amanda e Artur - artistas imensos e imersos na arte de representar - revela a resistência e a capacidade de superação de uma perspectiva adversa para um tempo de criminalização da arte e da cultura por hordas de infantes diversos, capitaneados pelos poderes caudilhescos e oligarcas que, a rigor, nunca saiu do poder mesmo tendo perdido o comando de alguns governos. Espremidos nesta crise permanente, o Boca de Cena vai formando público ao mesmo tempo em que insiste em viver de arte quando isso significa permanecer na corda bamba. Um risco permanente diante de uma plateia ora atenta, ora desapegada da responsabilidade de garantir o que ensina e aprende na medida que traz o riso, mas também carrega com todas as cores a memória viva. Muito especialmente desse imenso país que é o Nordeste.

A capacidade de reinventar-se e recompor os caminhos destruídos pela descontinuidade das estruturas de apoio para as culturas populares. Antes de servir de exemplo enquanto prática de resistência é um alerta contra o extermínio da diversidade cultural. Talvez esse seja o maior legado de um grupo de artistas que já chega aos vinte anos ininterruptos de atividade profissional. O Boca de Cena nos ensina a resistir, a encarar o carcará do momento. Enfrenta com bravura todas as estações para florir sempre em cada primavera. Mesmo quando todas as portas se fecham, o Boca insiste: vai ter espetáculo, sim! Vai ter pesquisa, sim. Vai ter preservação da memória, sim. Essa pequena e maravilhosa trupe me lembra muito Augusto Cesar Sandino: “não me rendo. Não me vendo. Te nho de ser vencido.” A arte é um tipo de guerrilha que esparrama flores. É desta forma que vejo a Cia. De Teatro de Bonecos Boca de Cena.


Lau Siqueira   

segunda-feira, 8 de abril de 2019


Entre o silêncio e o grito



Alguns dizem que a Filosofia e a Poesia são inimigas. Nunca entendi direito essas definições, mas talvez a Filosofia e a Poesia disputem o mesmo palco das descobertas. Ambas buscam a expressão da verdade, na dúvida e não na certeza. Tudo em direta interação com a vida. Quando recebi os originais do livro de Damião Fernandes, juro que esperava apenas poesia. Desencontrado na busca pela poesia, busquei a ficção. Afinal, somente nesta área sou procurado para prefaciar livros. No entanto encontrei muito mais. Da construção épica à Filosofia. Lembrei imediatamente de Edgar Morin, em “Meus Demônios”: “Não escrevo de uma torre que me separa da vida , mas de um redemoinho que me joga em minha vida e na vida.” Esta frase usei como epígrafe de meu quarto livro de poemas, Texto Sentido. Um livro onde busquei através da poesia o desnudamento que o autor busca neste livro a partir da filosofia, Portanto, podem até ser inimigas. Mas como dialogam com clareza a Literatura e a Filosofia. Pois esta frase me pareceu a melhor definição da experiência do autor. Ele parece escrever de um redemoinho. Aliás, é da vida que se extrai tanto a Filosofia quanto a Poesia. A Linguagem é um ser vivo, pulsando nossos extremos.

Sobre gêneros na unidade de uma obra, cito o cubano Pedro Juan Gutierrez, em Trilogia Suja de Havana. Alguns textos beiram à ficção, outros fedem à crônica de uma realidade hostil num país pobre e cercado de olhares de pura mitologia ideológica – tanto à direita quanto à esquerda. A realidade, a exploração da própria existência como fator de entendimento, fica a mercê das definições. No entanto, assim como Pedro Juan Gutierrez, Damião não está interessado na definição do estilo ou do gênero. Damião apenas escreve e revela suas inquietações diante de um mundo que cada vez nos afasta mais a capacidade de reflexão a partir do nosso lugar na história. A escrita, portanto é mais importante. A escrita que traz na dúvida a sua verdade e na certeza, a sua forma de confinamento, de sublimação de uma realidade que, aqui e ali, morde os calcanhares. É como se não existisse o cachorro selvagem da inquietação. Aquela inquietação que nos afasta da zona de conforto diante do realismo e da utopia. A escrita, portanto se sobrepõe enquanto Damião mergulha em si mesmo, numa leitura que movimenta os caracteres de toda uma existência. Percebe-se claramente quando ele diz “(...) existir é passar pela vida como quem passa pela alfandega, onde o mais valioso se transforma em bagagens e produtos.”

O livro “Sobre como viver e não apenas existir” me remete, em alguns momentos, ás reflexões de Suelma Moraes no livro “Conhecimento de si e de Deus”. Segundo Suelma, Profa. Dra. Da UFPB, estudiosa de Sto. Agostinho, “(...) para que se possa conhecer a Deus tal como se é conhecido, é necessário ter conhecimento que se assemelhe a Ele. Mas, a visão do espelho a priori impede esse conhecimento.” No capítulo  “A teologia do eu”, Damião mergulha no espelho, ou joga lá suas reflexões mais profundas acerca do que seria um “Conhecimento de si e de Deus”. Assumindo aí um tom mais épico que filosófico, o autor proclama: “Deus é mistério. E eu o que sou? Deus é resposta. E eu, quem eu sou? Deus é o caminho. E eu, para onde vou? Deus é vida. E eu que vida sou? Deus é Verdade. Que verdade eu sou?” Esse  é o tom do livro. O autor navega permanentemente entre uma profunda convicção imponente e uma dúvida abismal. Questões que se completam em respostas ainda não dadas. Talvez apenas projetadas onde a dúvida determina as cores do pensamento.

Em todos momentos observamos que o Filósofo traz a fala mais densa no discurso carregado de indagações, amparado por algumas metáforas e, repito, por uma impulsão épica na construção do texto. Homérico na elaboração de um contexto que data da origem do mundo e que ainda impacta e perturba. Mais que isso, impulsiona seus reflexos diante do vazio predominante, num tempo de fundamentalismos multiculturais. O mesmo que emerge dos seus mergulhos, elaborando perguntas ao seu próprio sentido de viver. Muito além de existir, o autor revela que não há formula final, mas formulações permanentes que excluem e incluem elementos na edificação de um novo olhar sobre si mesmo. Esse olhar sobre si mesmo é questionador e expandido ao despersonalizar o discurso. O que diz de si, Damião colhe nas vivências acadêmicas, literárias, religiosas e na profana anarquia de quem vai ao mercado, não para saber o quilo do peixe, mas da sensação de morte que existe no cheiro do açougue.

Sempre me impressionei com uma frase de Maria Valéria Rezende, escritora que coleciona prêmios ultimamente. Valéria, freira, recolhe das ações vividas nas comunidades Eclesiais de Base, as experiências trocadas com os mais humildes e a convicção de repartir que habita sua ordem religiosa. “Eu não tenho imaginação. Sempre duvidei disso, mas acredito com veemência e acho que o que me sobrou foi a pergunta: o que é mesmo imaginação? “O que eu tenho é memória”, diz a paulista que a Paraíba adotou e celebra. Ao percorrer os escaninhos da memória, Damião também nos oferece uma certeza. O tempo todo está falando de si. O tempo todo está falando do mistério que é a vida. O tempo todo está falando de Deus. E o tempo todo está escrevendo com imensa capacidade de articular um ritmo definidor para seus textos.

“No caminho encontramos sonhos, bosques, esquinas e jardins, tantas outras coisas essenciais e desnecessárias.  Encontramos casas, muros, paredes, alpendres, varandas, pontes, presenças e até solidão.”Nos revela o escritor para revelar suas mutações, seus desapegos e suas eternidades carregadas como troféus de instantes que jamais foram negligenciados. E daí nos encontramos novamente com Edgar Morin, quando afirma que “o mesmo processo traz em si ameaça e promessa”. Ele sabe tanto quando Damião Fernandes, que no fundo, caminhamos “rumo ao abismo ou à metamorfose e, talvez, rumo a um dentro do outro”. Não há, pois resposta previsível para o que não se coloca como exatidão. As atrofias que persistem, à vezes, já não encontram saída. A inércia que foi posta aos cacos, revela-se plena mutação, num redesenho do que há de efêmero e permanente no significado desse verbo incerto que é “viver”.

Em última análise, a despeito da responsabilidade do autor em escrever prosa ou poesia, o encontro do texto com a perplexidade que é escrever poemas revela um dos melhores momentos do livro: “Para escrever poesia, preciso organizar, preparar a alma, separar as folhas, escolher o lápis com o qual escrever. Escrever poesia é questão de estética e engenharia. Para escrever poesia, preciso contemplar meu rosto no espelho, pisar no chão da minha história e tocar as vestes da minha humana dor diária. Escrever poesia é questão de ciência humana, uma antropologia sobre si mesmo.” Na poesia tudo se resume, mas também tudo se expande e some como se não existisse nada maior que a sensação estética. Assim como tantos autores dispostos a romper com as suas convicções, fugir da zona de conforto, Damião derrama-se em palavras. Escrita bem delineada. Coisa de quem tem intimidade com as palavras. Blindado pelas próprias inquietudes diante dos julgamentos possíveis e impermeáveis, eis um escritor que se derrama sem medo. Abre as comportas antes que as barragens explodam. Damião Fernandes entrega ao público um livro para ser lido e refletido várias vezes, infinitas vezes. Afinal, seu estilo múltiplo e inteligente também faz parte de outras existências ainda muito distantes do pleno exercício de viver.



Lau Siqueira






segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Entre a imaginação e a memória






Maria Valéria Rezende sempre diz que não tem imaginação.  “Eu só tenho memória”, afirma. Acredito na sua sinceridade, mas desconfio de mim. Acredito que a autonomia do leitor é inevitável e necessária ao texto. O texto literário é um ser vivo em busca das dores e delícias da linguagem. Penso portanto que, ao sustentar suas memórias, Valéria espeta o imaginário alheio com suas adagas narrativas. Mesmo quando navega nas razões mais particulares. Vale mais o que se lê, diria Borges. Por isso, sempre me sinto libertário nas minhas leituras. Se para Valéria a memória está no texto, para mim a imaginação estará sempre na leitura. Roland Barthes define melhor o que tento dizer de forma desajeitada. “Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto.” Quando leio, me reescrevo no texto lido.

Contadora das próprias histórias, Maria Valéria possui uma mente que experimenta a imaginação de forma continuada. Sobretudo quando descreve a irrealidade cotidiana. Tudo em Valéria é lonjura e densidade. Tudo é perto e distante. Em poucos minutos de conversa, derrama infâncias de todas as idades. Seja nas imagens vivas de uma certa família santista dos seus verdes anos. Seja entre os mais célebres personagens das suas lembranças. A exemplo do tio-avô, Vicente de Carvalho. Poeta que tatuou seu nome na História da Literatura Brasileira. Conhecido e reconhecido também como advogado e político abolicionista, “tio Vicente” sempre foi um habitante do seu “vasto mundo”. Cito este poeta para desenhar sua raiz literária. A autora vem de uma família onde a leitura de grandes clássicos da literatura e a prática cotidiana da escrita faziam parte das expressões de afeto familiar.
“Histórias nada sérias”, sessenta e quatro páginas, publicado pela Editora Escaleras, certamente, carrega boas memórias. Memórias imaginadas e inimagináveis, até. Histórias contadas em textos escritos com exclusividade para o Clube do Conto da Paraíba. O Clube do Conto foi, aliás, a estrutura mais anárquica, longeva e produtiva que conheci no meio literário brasileiro. Pelo menos nas últimas três ou quatro décadas. Durante mais de dez anos, semanalmente, escritores se reuniam no Shopping Sul, em João Pessoa, próximo à casa da Valéria. Cada qual apresentava seus textos ao olhar crítico dos demais. Os temas eram sempre discutidos e aprovados na semana anterior. Intelectuais experimentados, escritores reconhecidos, repartiam espaços e carinhosas farpas com iniciantes e curiosos. Ninguém poupava a mão de ninguém. A palmatória era dolorosa. O Clube do Conto, na verdade, foi uma efetiva oficina de escrita criativa. Semanalmente uma enxurrada de textos bons, médios e péssimos eram lidos e aplaudidos ou desconstruídos até o limite da sensatez. Era, sobretudo, necessário manter a amizade, o respeito, mas sobretudo a coerência. Era necessário fazer da crítica feroz e sincera, mesmo dura, um elo firme com a boa literatura.

O tempo passou. O Clube do Conto da Paraíba foi sucumbindo aos poucos. Seja pelo falecimento de alguns dos seus membros ou por outros motivos. Certamente, também pela fuga desesperada dos que entendiam que melhor seria buscar outra ocupação para as tardes de sábado. Na verdade, o Clube do Conto ensinava muito mais a ler que escrever. Escutar era um exercício feroz. Sempre foi um encontro de amigos e amigas que se amavam e odiavam (menos, menos...) em cada frase mais afeita às verdades da língua e seus arredores. Foi neste ambiente, salvo os exageros propositais aqui derramados, que Valéria escreveu os textos do livro aqui resenhado. Os temas eram escolhidos aleatoriamente e cada um que mergulhasse na escrita de forma a atender as sensações da navalhada crítica de cada sábado. A disciplina de escrever textos ficcionais não garantia os louros. Eis, portanto, um livro individual que nasce de uma aventura compartilhada. Tudo vivido num rico e inesquecível aprendizado repartido entre cafés, torniquetes estéticos e boas risadas.

O Clube do Conto tinha um método muito bem definido por Regina Behar na apresentação do livro: “ler, ouvir, escrever.” Nada mais. Aliás, se fossemos aqui resumir a vida intensa de Maria Valéria Rezende, uma moça que saiu de Santos aos dezoito anos para conhecer outros mundos, a definição de Regina Behar cairia como uma luva: “ler, ouvir, escrever”. Ler, ouvir, escrever e amar as pessoas tem sido a caminhada de Valéria pelo mundo desde sempre. Com Paulo Freire Valéria aprendeu muito cedo a ler as linhas e rinhas da vida. Reconhecendo as desigualdades e os perigos de uma existência permanentemente ameaçada pela ditadura. (Aquela aberração política instalada nos melhores anos da sua juventude.) O que recolheu de lá para cá, nas andanças pelo mundo e pelos rincões da Paraíba, são extratos da memória sim, mas também de uma maturidade intelectual bem consolidada. Valéria é hoje uma personalidade autêntica e autônoma na literatura contemporânea brasileira. Apontada por muitos como uma das mais produtivas e importantes escritoras brasileiras do início do século XXI. Foi tecendo a teia da sua literatura de dentro pra fora. Inicialmente, longe das rodas badaladas de Paraty. Todavia, muito rapidamente, também nas rodas badaladas de qualquer ambiente literário. De grande leitora, tradutora e educadora popular, tornou-se uma talentosa inventora das próprias memórias.
Muito do que foi construído a partir de uma caminhada intensa e que hoje sustenta o vigor das suas palavras, vem dos perigos vividos. Dias e noites engolidos pelos dragões de um tempo sombrio. Especialmente nos anos pós AI-5 (Ato Institucional nº 5). Tempos que calaram o Brasil e fizeram sangrar os porões. Segundo Eni P. Orlandi, no ensaio Maio de 1968: os silêncios da memória: “falando de história e de política, não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos.” Certamente é dessas memórias que muitos dos personagens de Maria Valéria Rezende, hoje brotam aos montes. Neste caso específico, a partir das provocações temáticas do Clube do Conto. Algo que, de certa forma, recebe uma imensa luz nesta coletânea publicada pela Escaleras, uma editora tão paraibana quanto o centenário Jackson do Pandeiro.

É memória? É memória sim. Sempre digo pra mim mesmo quando penso na densidade de Maria Valéria Rezende nos campos neutrais da palavra. A imaginação surge naturalmente enquanto produto da leitura. Isso já está assegurado e por isso reafirmo. Mas e a imaginação da autora? A imaginação em Valéria é feito um trigal amanhecido. Afinal, ela própria é uma grande leitora. Portanto, um ser de imaginação. Uma leitora de metalurgias inventadas – palavras encandeadas no aço das delicadezas. Seu intenso exercício de escrita é um tipo de combustão provocada. Tudo é lenha. Sua aprendizagem permitiu tornar o cordel, por exemplo, elemento fundamental na formação das sabedorias necessárias ao povo excluído. Valéria viveu tudo isso na pele. Mergulhou e emergiu com a mesma força. Não apenas pela memória que sustenta suas asas, mas nos voos cada vez mais ‘longinos’ da sua imaginação. (Calma. Explico já.)

O conto que abre o livro, Zumbi (página 9), nos transporta imediatamente para uma experiência de velocidades. Um mergulho no oco dos sentidos. Tudo num trançado narrativo de imensa fluidez. Como se as palavras estivessem guardadas numa cacimba de verdades estocadas. Texto denso e fulminante que leva o leitor por uma trilha de diversidades. Possibilita que a leitura se transforme em cada parágrafo e se vista de boa prosa. Leitura de um fôlego só, Zumbi é um texto que provoca o leitor em todos os sentidos. Seja pela pegada dramatúrgica que poderia gerar um bom monólogo, seja pelo batuque de prosa poética, capaz de transformar forma em conteúdo. Um tapete estendido entre José Saramago e Décio Pignatari. Respira transgressão sabendo que os seus ritos são outros, pois suas aventuras narrativas são naturalmente planejadas.

Nos demais contos, passeia pelos temas escolhidos. Cumpre com rigor e disciplina seus milharais criativos. Milhares, talvez milhões de páginas lidas com a voracidade de quem dedica sua existência ao conhecimento, à solidariedade, ao amor necessário para que este mundo sobreviva muito além de nós. Algumas vezes ela trabalha a memória como os gregos: reconhecendo-se em relatos antigos, literários ou não. Experimenta miragens. Transgride conceitos. Respira e espalha o ar rarefeito desses dias turbulentos. Em “Conto Concreto” (pg 48) dialoga diretamente com o concretismo de Augusto e Haroldo de Campos. Espalha signos, aliando-se ao branco da página, realizando uma certa fusão das barroquices impulsionadas pela irreverência que, em verdade, é uma das suas características enquanto mulher e enquanto escritora. Talvez por isso consiga atrair a inquietude de tantos jovens leitores pelo país afora.

“Histórias Nada Sérias” é também um livro revelador do caráter de Maria Valéria Rezende. Uma escritora desapegada dos paetês festivos, das necessidades midiáticas de tanto pavão iludido. Falamos de um livro que é um produto vivo do tear cotidiano que estende seu nome e sua literatura pelo mundo. Valéria é a cara desse tal “Brasil profundo” que poucos conhecem. Linda e transbordante. Esse Brasil que recolhe imagens em Jacaraú - pequena cidade paraibana - e as espalha pelo mundo. As histórias que ela conta são colheitas diárias de uma mente atenta, observadora. O prazer da leitura dos seus livros é simples, mas não é fácil.  Valéria se esparrama num estilo singular. Aliás, estilo de quem não está preocupada com estilo.

E assim seguem os contos. “A Capa”, escrito em formato missivista, cuja tradição parece perder-se um pouco dentro da história mais recente das literaturas. “A Chave”, lembra um pouco Maupassant. Para Otto Maria Carpeaux “Maupassant não aceitou a fantasia, mas disse a verdade”. Um pouco como Valéria, transitou entre a memória e a imaginação. A exemplo de Bola de Sebo, um dos seus mais belos textos. Valéria nega a imaginação para afirmar uma literatura enraizada em muitos saberes repartidos. Às vezes ela alerta claramente: “é verdade este bilete”. Nos extratos de sensações vividas. Na sua capacidade de observar e redesenhar fatos, reinventá-los para buscar a cumplicidade absoluta com o leitor no fio da navalha. Talvez este seja o motivo pelo qual sempre insisto que ao ler os livros de Maria Valéria Rezende somos também convidados para o exercício da escrita. Nos tornamos coautores das suas memórias imaginadas. Talvez essa imagem represente a porção pedagógica de uma escritora que trouxe para a literatura sua vocação de educadora popular. Nas suas práticas cotidianas Valéria escrevia até mesmo Cordel, conforme citei anteriormente. Usava a literatura popular como método para ensinar aos trabalhadores rurais, os seus direitos. Certamente que todas essas experiências estão muito bem guardadas nos melhores afetos da escritora. Dessas memórias ela extrai personagens e os transforma em respiradouros do seu texto. São nomes fictícios, histórias inventadas para uma tradução literal dos nossos dias. Costumes, desejos, anseios... metáforas de uma vida que segue no mesmo rumo, na mesma pisada, no mesmo comprometimento militante de alguém que entregou sua vida ao amor em sua mais profunda tradução.

São fundamentalmente histórias o que ela extrai das suas andanças desde a infância. Como em “Uma Lenda Pessoal” (pg 33), onde ela dialoga lindamente com os seus recuerdos mais antigos. Parte de um lugar onde constrói e desconstrói elos familiares. Mas, não apenas isso. Ela aborda temáticas complexas, como o Estupro (página 39) a escritora descreve comportamentos extremados da nossa civilização machista e moralista que, na verdade, não se sustenta nem mesmo no olho da goiabeira. Aborda presenças constantes em nossas vidas, como o Medo (pg 45), um sentimento que tantas vezes aprisiona a condição humana. Arrisca-se, inclusive, num miniconto. Gênero que para o escritor gaúcho José Eduardo Degrazia, teve sua origem nas prosas poéticas de Charles Baudelaire. “Outros Planos” (pg 51) é outro miniconto cheio de imagens, escrito com permanente fluidez poética.

O estilo transgressor construiu-se em Valéria com a naturalidade das folhas que caem no outono e retornam verdes e belas, aliadas às flores da primavera. Ela experimenta o tempo todo. Passeia pelas influências, para surfar na própria onda. Com Valéria tem sido assim, quando publica um livro, já está preparando outros. Ela é como um rio que se faz perene dialogando com as estiagens. Estimula ao estimular-se. Se veste de amplidão, não apenas pela visibilidade dos muitos prêmios que ganhou, mas pelo exercício permanente de leitura que seus escritos ofertam ao público.  Atinge não apenas os leitores mais experimentados. A juventude leitora se apropriou da literatura de Maria Valéria Rezende. Na “obra aberta” da autora, não é mais ela, mas o leitor ou a leitora, quem opera a permanente transmutação das rotas. Tudo é mergulho numa imaginação que não se rende à memória.
Os textos em “História Nada Sérias” são muito vivos. São verdadeiras pulsações. Pululam o tempo todo na contramão da elegância quase tipográfica da edição. São textos que dialogam com um tipo de cotidiano onde passado e futuro se misturam. Com a imensidão e a profundidade de temas que não se entregam de primeira. Memórias das cercanias e das lonjuras de uma geração que não se entregou e não se entrega aos estampidos do ego. A cada leitura, novas perspectivas desenhadas na contramão do que importa para o mercado. Percebe-se um alto teor de todos os tons pregados na impermanência que se estabelece, na invisibilidade que se exibe em vitrines invisíveis. Se o leitor tiver degustado apenas a leitura deste livro, saberá imediatamente que se trata de uma escritora que produz literatura de alta voltagem. Algo que rege a delicadeza e o espanto.

A educadora social de então, soube enfrentar com sabedoria a sua caminhada. Ela conheceu de perto as atrocidades da política. Momentos duros, tensos, sangrentos. Cheio de embates e combates. Momentos que não silenciaram a autora de “Quarenta dias”, “Outros Cantos” e “Modo de Pegar Pássaros à Mão”, entre outras obras igualmente consagradas pela crítica e pelo público. Ela se manteve suave. Manteve seus pés bem pregados no solo nordestino, paraibano. Mas só depois de cruzar o mundo. Sabe agradecer a oportunidade que a vida lhe deu de prosseguir sua missão. Essa certeza de que valeu a pena e que nossos caminhos jamais se esgotam. Enfim, eis uma leitura necessária para que as pessoas se apaixonem cada vez mais pela escrita e pela existência de Maria Valéria Rezende.


Lau Siqueira, poeta.


NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...