segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Quando a nudez é a escama



O cenário atual da poesia brasileira é amplo, diverso e cheio de belas surpresas. Claro que não desconheço o turbilhão de versos sem poesia. Também não desconheço o cinismo da política literária dominante.  Entretanto jamais renego o prazer das boas descobertas. Logicamente que a garimpagem haverá de ser precisa e delicada. Não que estejamos chegando ao ápice, comparando com os grandes momentos da poesia brasileira. Nunca mais teremos um Drummond. Outro Décio Pignatari não há. Nunca mais João Cabral. Não cabem os comparativos neste caso. O que ocorre na cena atual é um certo transbordamento das somas e das subtrações. Gerações sobrepostas revelam a cena atual. Reconhecer as boas colheitas é, no mínimo, um bom sinal  de inquietação. As experiências da vida e da linguagem nos fazem lembrar Bachelard: “todo sonhador inflamado é um poeta em potencial.”

Luciana Queiroz sempre me pareceu uma sonhadora inflamada. Pessoa de intensidades e cores colhidas no olhar. Leitora exigente de livros e do mundo. Professora com visão humanista no infinito espaço de uma sala de aula. Uma sonhadora que ama transitar sobre as palavras. Sabe se deslocar entre elas e extrair de cada uma a sonoridade que diz tudo, mas esconde todo o resto. Alma liberta, soube construir um ritmo só seu. Pessoanamente, disfarça com maestria a escama das suas incertezas. Descobrir seus poemas foi um presente. Luciana tem  uma voz poética inconfundivelmente fêmea. Ela não se divide. Não se limita. É a integridade da existência expondo seus significados. Nocauteou minhas dúvidas acerca da existência de uma poética feminina - aliás, fêmea - estabelecida a partir da experiência humana e intelectual de uma mulher. Sabe cozer instantes para uma vida que não passa nas telas. Essa mesma vida que arde no espelho e depois vai para as ruas, para os becos, colher seus tentáculos.

“Sou rainha de esquecidas ilhas
Monto meu cavalo de penas:
Pégasus que Atena nenhuma domestica”

De que valeria o poema, se não para desnudar motivos? Sejam os motivos da linguagem, sejam sentimentos que diante do espelho pedem passagem. De que valeira o poema, se não para vestir a pele das palavras e cantar a versão dos sentidos? No mais, poesia é coragem. Viagem incerta. Principalmente se a condução do Pégaso vem num experimento de habilidades que se mostram inteiras e intensas no eterno aprendizado do verso. A poeta revela a força poética de ser mulher num mundo onde até a linguagem disputa espaço de gênero. Vai planando por sobre os milhos e as favas do estilo, inventando seu próprio caminho num rastro de muitas pegadas.

“Xícara de café
Sabonete
E cama que não divido com ninguém
Espaço que sobra
No vazio da falta”

Luciana faz poema também das suas lacunas. Mas, sabe como transgredir o sentido das coisas. O sabonete, a cama,o café. A presença forte das suas ausências. O espaço ocupado pelo vazio. Percebo aí um roteiro que se revelou com vigor na segunda fase do Modernismo brasileiro, quando a tonalidade existencial e social predomina nas ferramentas da sua metalurgia poética. Conforme explica Afrânio Coutinho, “a Literatura é um fenômeno estético”. Mas ele explica que é um fenômeno estético que dialoga até com o religioso num processo de transformação capaz de introduzir o elemento estético. Luciana sabe disso e faz dos seus aprendizados, das suas lutas e do revoar coletivo que vivencia, o motivo e a matéria prima da poesia. Instrumento de transbordamento e de consciência estética. Ela reconhece os conselhos de Rainer Maria Rilke em “Cartas a um jovem poeta”: “não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela.”

“Volta

Deixa de vaidades bobas.
Já sei tudo de tua vida:
que tens outras
e que não queres ser de ninguém.
Teu trânsito de corpo em corpo
não me atrapalha a alma.
Quero você, seus significados,
sua conotação escancarada em minha língua.”

Luciana sabe transitar poeticamente por seus labirintos. Da mesma forma que a americana Bessie Smith tinha possibilidades para a ópera e cantava blues no início dos século XX, ela tem fôlego intelectual suficiente para velejar por outros mares. Tem lastro conceitual para sobreviver no ar rarefeito da poesia brasileira contemporânea. Mas, decidiu começar pelo desnudamento das escamas. Como quem avisa que a pele é só o começo. A nudez é só o começo. Este livro chega, pois, como um alerta. É como se ela dissesse o tempo todo: eu estou aqui, mas sou de longe e vou mais longe ainda. Um aviso de quem estava guardada em silêncios e se permite transbordar em gritos jamais silenciáveis.

Considero que estamos diante de uma bela descoberta. Uma poeta que começa sua caminhada surpreendendo pelo lirismo, pela consciência da linguagem poética e até pela pequena pancada inventiva do título “Nua sobre escamas”. Tem coragem de arrancar a própria pele para renascer na carne viva do inevitável.

“Flor

Se nunca te disse
ouso dizer
tanto faz
a flor do mandacaru
quanto o nome da rosa.”

É tempo de celebrar a boa descoberta. Cada poema deste livro não se esgota no último verso. Há uma atmosfera sugerida que pede mais. Mais poesia. Mais vida. Mais Luciana Queiroz nesse mundo de ausências consagradas e presenças diluídas.

Lau Siqueira

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