domingo, 13 de maio de 2012

O grande ato subversivo de Geraldo Vandré

por Lau Siqueira

Já passaram duas décadas, penso eu, desde o dia em que recebi um inesperado telefonema: “Siqueira está? É Geraldo Vandré.” Infelizmente eu não estava. O motivo da ligação de Vandré foi uma carta que enviei sugerindo que relatasse de próprio punho suas memórias artísticas. Algo que passasse longe das especulações sobre o mito. A sugestão partiu da leitura atenta dos artigos que o autor de pérolas como “Pequeno Concerto que Virou Canção” escrevia naquela época para o Jornal O Norte. Vandré se interessou pela minha sugestão e por isso ligou. Ficou de me procurar novamente, mas nunca nos encontramos. Uma publicação com suas impressões sobre um período dos mais ricos da música brasileira, que vai da Bossa Nova aos grandes festivais, me parece, continuará em falta nas boas livrarias.


Acompanhei atentamente, como tantos da minha geração, os mistérios do desaparecimento de Vandré da cena musical brasileira. Nos anos 80, ainda morando em Porto Alegre, comprei um LP de um grupo mineiro chamado Temucorda, que gravou um “Tributo a Vandré”. Eram versos tipo: “foi preso e torturado/ por ser brasileiro nato”. O autor afirmava em tom lamentoso, panfletário, que “acabaram com Vandré”.  Não foram poucos os comentários semelhantes que ouvi a respeito. Notícias das quais me envergonho de ter acreditado. Principalmente depois que Simone gravou “Pra não dizer que não falei das flores”, cresceram as especulações.

Sou apenas um entre tantos apaixonados pela obra deste artista singular. Seu disco “Das Terras de Benvirá” é uma das obras mais fascinantes da história da música brasileira.  Um disco que apresenta um Vandré extremamente ousado.  Enraizado na tradição musical nordestina, mas também propondo uma estética futurista e transgressora.  Experimental, na medida em que se utiliza de sonoridades primitivas, apaixonadas, conectadas ao contemporâneo, para compor peças de beleza única. Um disco forte, representativo do que há de mais original na música contemporânea mundial. Aliás, aos incautos é preciso informar que a obra de Vandré não se resume à Disparada e Pra não dizer que não falei das flores. A verdade é que o conjunto da sua produção deverá eternizá-lo. Mesmo num país que fabrica aberrações rebolantes de ampla repercussão. A música de Geraldo Vandré desculpem os clássicos da bandalheira musical brasileira, viajará pelos séculos. Enquanto que um Michel Teló da vida haverá de empanturrar-se de exposição midiática de quinta categoria para ser engolido pelo esquecimento.

Movido por essas inexplicáveis sinergias da existência, acabei encontrando semana passada, no youtube, uma entrevista de Vandré, na Globo News. O que demonstra que a Globo tem capacidade de realizar grandes produções, apesar de preferir a empulhação. Na entrevista (cujo link pode ser conferido no final deste artigo), Vandré revela-se um homem extremamente lúcido, digno e doce. A intimidade do gênio é exposta. E até o que fica nas entrelinhas não deixa dúvidas. Esta entrevista foi, provavelmente, um poderoso ato de subversão do mito. A Globo News tentou polemizar, mas foi desmontada pela decência e tranquilidade de Vandré. Vandré possui alguns poucos e bons amigos aqui na Paraíba, entre eles  o jornalista e também meu amigo Ricardo Anísio.

Ao assistir a entrevista você poderá conferir que a grande “subversão” de Vandré foi negar-se ao jogo sujo do sistema em qualquer tempo. Ele representa um NÃO gigantesco à cultura de massas, às políticas de pão e circo. O tempo todo na entrevista é isto o que fica mais evidente. Questões que a democracia brasileira não soube resolver, são pautadas pelo artista e não pelo entrevistador. Por exemplo, no que se refere à máfia dos direitos autorais, ainda nas mãos de uma instituição privada e sombria como o ECAD. Vandré não aceitou submeter-se ao processo de violenta massificação da música brasileira que esgotou gênios como Edu Lobo, Cartola, Tom Jobim, Chico Buarque e outros poucos que transitam na história da MPB. Em nome da memória da sua própria obra, Vandré teve a coragem de dizer não aos vampiros. Exilou-se na própria dignidade, rebelando-se contra a deflagração de um procedimento contínuo de banalização dos valores culturais do nosso país.

Como o próprio Vandré afirma, “subversivo é ser erudito num país subdesenvolvido”. Ser subversivo é negar-se ao jogo fácil do lucro, da submissão aos holofotes e a uma fração poderosa da mídia que é capaz de aproximar-se de um gênio sem saber compreendê-lo, querendo que ele dê as respostas mais convenientes aos interesses comerciais da sua canalha patronal. Vandré conseguiu driblar com a elegância de um Ademir da Guia, o arco de falácias da Globo News, armado para uma expectativa falsa de “revelações bombásticas”.   Assim como Rimbaud que parou de escrever na juventude, ou Raduan Nassar que esgotou sua participação na literatura numa obra genial e mais alguns fragmentos, Vandré assumiu sua resistência. Pareceu claro nesta entrevista que ele soube separar o joio do trigo e faz uma análise real da conjuntura política na qual a sociedade brasileira vai esgotando uma a uma suas etapas para, talvez, sonhar com algo que se possa mesmo chamar de cidadania. A avalanche consumista (e este é o maior fundamentalismo, segundo Milton Campos) foi mesmo criando ao invés de uma civilização determinante para o futuro do planeta, um amontoado do qual precisamos agora dar conta para o bem dos nossos netos. Ah, Globo News... Com licença: O país de Geraldo Vandré também é o meu país. Vocês moram no país da Revista Veja. Ao contrário do que pensam alguns, Vandré não está só. Viva Geraldo Vandré!


PS. Confiram a entrevista de Geraldo Vandré aos 75 anos de plena juventude: http://www.youtube.com/watch?v=TYextKTVePY&feature=related

2 comentários:

Pravda disse...

Olá,
Tenho vinte e três anos e fui vítima, durante muito tempo, do golpe asfixiante que a cultura de massas aplica na juventude e não nos permite respirar com qualidade. Acho que a intensificação desse fenômeno me impulsionou a buscar música boa no passado e achei o Geraldo Vandré, artista que considero genial. Não entendo quase nada de estética musical, portanto volto minha atenção para a força que seus versos possuem e fico impressionado com as composições do Geraldo Vandré. Procurei muito, pela internet, qualquer coisa que me fornecesse informações sobre ele e achei algumas coisas. Inclusive, esta entrevista para o Globo News. Aquele repórter agiu de má-fé na edição da reportagem e isso fica claro no final da mesma, onde ele afirma, com tom pejorativo, que o cara vive num país onde somente ele habita. Eu senti um certo desconforto do Vandré ao ver o repórter resumindo a obra dele a duas músicas mais famosas. Isso foi insultante e teve uma resposta à altura. Talvez o grande problema tenha sido, como você mais ou menos diz, um grande gênio da música brasileira ter sido entrevistado por alguém incapaz de alcançar toda a grandeza de sua obra. E mais, o compromisso do repórter com a polêmica também empobreceu o encontro. Li algumas coisas sobre o Vandré aqui na internet sobre ele estar maluco e não quis acreditar. Porém, hoje, achei o seu blog e li algo que me parece mais sensato. Belo texto, meu camarada. Caso tenha algo sobre o Vandré que possa compartilhar, ficarei muito agradecido.

Pravda disse...

Olá,
Tenho vinte e três anos e fui vítima, durante muito tempo, do golpe asfixiante que a cultura de massas aplica na juventude e não nos permite respirar com qualidade. Acho que a intensificação desse fenômeno me impulsionou a buscar música boa no passado e achei o Geraldo Vandré, artista que considero genial. Não entendo quase nada de estética musical, portanto volto minha atenção para a força que seus versos possuem e fico impressionado com as composições do Geraldo Vandré. Procurei muito, pela internet, qualquer coisa que me fornecesse informações sobre ele e achei algumas coisas. Inclusive, esta entrevista para o Globo News. Aquele repórter agiu de má-fé na edição da reportagem e isso fica claro no final da mesma, onde ele afirma, com tom pejorativo, que o cara vive num país onde somente ele habita. Eu senti um certo desconforto do Vandré ao ver o repórter resumindo a obra dele a duas músicas mais famosas. Isso foi insultante e teve uma resposta à altura. Talvez o grande problema tenha sido, como você mais ou menos diz, um grande gênio da música brasileira ter sido entrevistado por alguém incapaz de alcançar toda a grandeza de sua obra. E mais, o compromisso do repórter com a polêmica também empobreceu o encontro. Li algumas coisas sobre o Vandré aqui na internet sobre ele estar maluco e não quis acreditar. Porém, hoje, achei o seu blog e li algo que me parece mais sensato. Belo texto, meu camarada. Caso tenha algo sobre o Vandré que possa compartilhar, ficarei muito agradecido.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...