terça-feira, 21 de abril de 2009

Um olhar iluminado sobre as sombras


Lau Siqueira*

Um escritor não se traduz ao mundo apenas a partir da sua relação com a palavra. Seus caminhos na literatura, fatalmente, são trilhados a partir da sua circunstância. Consta, por exemplo, que James Joyce teve seu estilo influenciado de forma significativa pelo meio conturbado ao qual esteve vinculado. Especialmente pelo seu pai, beberrão e perdulário, perseguido por credores, mas também homem amante das artes. Conheci Ailton Ramalho como artista plástico e militante das boas causas humanas. Um homem suave, sensível, mas ao mesmo tempo firme nas suas convicções. Mais tarde, pude observá-lo enquanto poeta. Um poeta que radicalizava na experimentação. Uma experimentação que iria da palavra ao suporte editorial. (Talvez sejam exatamente estas as conexões ocultas às quais se refere Fritjof Capra.)

Até que assisti sua prosa veloz desembarcar no projeto Novos Escritos, da Fundação Cultural de João Pessoa. O projeto viabilizou a revelação de bons nomes para a nova prosa paraibana. Nomes como Roberto Menezes, por exemplo, hoje integrante do badalado Clube do Conto. Foi no Festival Agosto das Letras que Ailton Ramalho desembarcou com um título instigante: Beco de Morar no Medo. Sua prosa se impôs, então, diante de um silêncio infeliz da crítica, mas arrancou comentários elogiosos em diversos setores de boa leitura.

Agora o escritor nos presenteia com O Herói Que Encolheu. Um livro que é, na verdade, uma metáfora da nossa história mais recente. Um resgate da tempestade fascista que se abateu sobre o País do Futuro. Tudo construído dentro de um olhar iluminado sobre as sombras da nossa memória. Um olhar que se estende sobre as hipocrisias vivenciadas por uma sociedade decadente, mas com ampla hegemonia conservadora. Ramalho não teme a pecha de panfletário. Isto porque seu duelo, o tempo todo, é com a linguagem e com a construção de enredos que prendem o leitor da primeira à última linha. Sua prosa cria ambientações de cumplicidade com o leitor. Uma escrita com altíssimo poder de comunicação. O que, silenciosamente, desafia a empáfia dominante no meio literário, especialmente acadêmico.

A crítica social aguda, no entanto, dentro de uma prosa muito bem elaborada afasta Ailton Ramalho de qualquer indício de apelação engajada. Ao contrário do que se possa supor, trata-se de um texto que parte de um realismo imperativo. Com índice próprio de identidades colhidas, certamente, em boas leituras (dos livros e do mundo). Um realismo aproximado do que Nikolai Vassilievitch Gogol impôs na Rússia do século XIX. Leituras cruas de uma estratificação social que estrangula a condição humana, aniquila as potencialidades emocionais de individualidades diluídas em valores absolutamente vencidos, vocacionados para as orações de silêncio erigidas pelos totalitarismos “mediocráticos”.

Esta leitura da realidade se mostra mais nítida em O Herói que Encolheu. O autor nos mostra que o exercício da memória nos conduz para o exercício da lucidez. Um livro que resgata o passado em forma aguda de protesto, mas sem lamentações. Resgata o passado exatamente para uma perspectiva de futuro. Futuro de gerações que não compreendem, muitas vezes, a extensão e o limite da “liberd’arde” conquistada numa democracia burguesa.

Ailton Ramalho traz ao seu público leitor os relatos vividos de quem sobreviveu aos porões e ainda sobrevive aos cárceres de um apartheid social, tantas vezes banido de uma teia literária predominantemente conservadora, tanto estética quanto politicamente. Ele nos mostra o quanto essas diferenças (com os violentos embates revelados em seus textos) ainda ditam uma nação de sombras e omissões. Sua literatura é de pura resistência

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*Texto de apresentação do livro O Herói que Encolheu, do meu amigo Ailton Ramalho. com um insuportável atraso, pelo qual solicito minhas mais humildes e mais safadas desculpas.

2 comentários:

Tania Anjos disse...

Você apresenta de maneira muito interessante livro.

Ao iniciar citando Fritjof Capra, já fez minha mente viajar sobre as possibilidades contextuais e intertextuais - do micro ao macro - da nossa sociedade a que o livro deve me remeter.

Muito boa resenha. Mais uma ótima opção de leitura!

Taninha

Wanessa disse...

Não conhecia esse seu lado poético,critico e observador.Acabei caindo por aqui, mais adorei o que vi.
Wanessa Costa

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