segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O porquê das nossas escolhas.

por Lau Siqueira

Desde que assumimos a gestão cultural da cidade de João Pessoa temos escutado vozes (cada vez mais diluídas no silêncio) reclamando atrações musicais tipo: Calcinha Preta, Aviões do Forró, Ivete Sangalo e coisas do gênero. Algumas dessas vozes, aliás, injustificadamente nas sombras. Com vergonha de mostrar a cara para um debate público. Ou seja: gente posando de cult, mas com o rabinho conceitual preso ao créu. Somente o fato de termos esse debate estabelecido a partir de uma ação de política pública já vale o queijo do reino e o vinho das festas de final de ano.

Chegamos a escutar pérolas tipo: “Vocês deviam trazer Calcinha Preta, porque dá voto!” Entrementes, se tivéssemos implantado uma política meramente eleitoreira estaríamos esquecendo o compromisso que assumimos com a cidade em janeiro de 2005. Afinal, o que realizamos fez parte de um programa de campanha que, no segundo semestre de 2004, foi amplamente discutido com artistas e produtores culturais da cidade. Fazer diferente seria uma traição lamentável. Seria uma política de pão e circo, sem pão e sem circo. Até porque pão tem a simbologia cristã do alimento repartido e circo é uma cultura milenar que merece o nosso mais profundo respeito. Portanto, não é apenas uma “questão de gosto” que está em pauta. O debate de fundo e que deve vir à tona é econômico e político. Toronto, no Canadá, considerada a capital mundial da cultura, movimenta um PIB de nove bilhões de dólares americanos, para uma população 2,5 milhões de habitantes. Lá a cultura e a criatividade determinam o eixo nos planos de desenvolvimento da cidade. Por que a produção cultural de João Pessoa deveria aceitar um papel de coadjuvante na área do entretenimento e das surradas políticas de turismo?

A propósito, por falar em Toronto (e seu exemplo) aqui e ali escuto vozes saudosas da Micaroa. Um evento que bate de frente com a lógica canadense. Além do seu caráter diluidor dos valores culturais este evento se configurava num crime contra a economia da cidade. As bandas eram de fora - portanto a grana dos cachês era investida fora daqui. Os abadás vinham da Bahia. Não empregavam uma única costureira de Mandacaru ou Porto do Capim. E, pasmem: até mesmo as cervejas e outras bebidas vendidas nos blocos, vinham da Bahia. Esse conjunto de afasias provocava uma evasão enorme de recursos, logicamente que com o desfrute pessoal de meia dúzia de dois ou três paraibanos. Falo em afasia tal como conceitua Antônio Houais: “abstenção consciente de qualquer juízo originada pelo reconhecimento da ignorância a respeito de tudo que transcenda as possibilidades cognitivas do ser humano”. Além da gravidade de termos um evento eminentemente privado e socialmente excludente, ocupando as vias públicas e os serviços públicos pagos com recursos do município. Portanto, ao invés de divisas, gerando uma perversa evasão.

Certa vez ouvi um dono de posto de gasolina reclamar que, depois da Micaroa, a economia da cidade sofria um enorme refluxo. (Na verdade, um Ciçunami.) Portanto, precisamos dizer com todas as letras que por detrás de uma discussão sobre “bom gosto musical” existe uma gama de interesses nada inocentes. Existe o interesse político e econômico, de forma determinante. Afinal, as políticas públicas de cultura irão se tornar incômodas exatamente por instalarem-se naturalmente no centro da questão propondo uma mudança de comportamento da sociedade. Inclusive no que diz respeito à inclusão da arte como fator determinante na afirmação política desta sociedade, tendo as ações de cultura como fator de propulsão econômica. Uma mudança que passa, logicamente, pela troca dos hábitos no consumo cultural, colocando em risco a lucratividade exorbitante de meia dúzia de empresários imensamente capitalizados, mas sem escrúpulos.

Claro que esse debate não interessa aos poderosos de plantão. A maioria mandando sem mandato. Não é segredo que a mídia está na mão de grupos políticos e econômicos que continuam renovando seus projetos de dominação com a conivência surda das suas bases legislativas. Uma dominação formulada pelo entorpecimento mental das ditas “massas populares”. Ironicamente, todavia, quem mais consome o lixo cultural oferecido às “massas” é exatamente a classe média mais abonada. Basta verificar a marca e o ano de fabricação dos carros com porta-malas sonoros para ver que não se trata de uma cultura “do povo” e muito menos para o povo. Pelo menos não para o povo pobre que vive nas periferias, com seus comportamentos padronizados pelo único canal de acesso a cultura que possuem: as TVs comerciais. Aos poderes públicos cabe exatamente dar a esse povo o direito de escolha, despertando nele o espírito crítico e lúdico somente encontrado no contato com as melhores produções artísticas.

Este é um ponto que não pode deixar de ser considerado, porque a cultura gera 5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. No entanto, a indústria cultural produz uma terrível concentração de renda, gerando as mais profundas desigualdades no setor com amplos reflexos na sociedade. Desigualdades que passam, logicamente, pelo comportamento das mídias. Por exemplo: dizem que brasileiro não lê, mas somente o mercado livreiro nacional faturou 200 bilhões de reais no ano passado, segundo dados da Câmara Brasileira do Livro. Será que os barões do livro estão preocupados com as políticas de leitura? Da mesma forma que o mercado do livro, o mercado fonográfico está na mão de dois ou três tubarões. Portanto, reafirmo que o debate gerado em torno do assunto não se resume apenas ao debate estético. O que precisa ficar evidente é a atitude política em defesa de uma economia historicamente abalada pelas degenerações de um sistema econômico cada vez mais concentrador e castrador das regiões periféricas.

Na lógica absurda do mercado da música, uma banda de axé da cidade (do Castelo Branco) quis justificar a necessidade da sua contratação por um cachê dez vezes acima do cachê médio que pagamos aos artistas locais sob o argumento que “o axé era outro mercado”. O que eu expliquei, pacientemente, é que não trabalhamos na lógica do mercado, mas na lógica das políticas públicas. E qual é esta lógica? É a lógica do respeito à diversidade, da identidade cultural, da preservação do direito à criação e o respeito à diversidade humana. A Por exemplo: a Prefeitura tem uma política pública em defesa dos direitos das mulheres. Então, seria uma contradição a FUNJOPE contratar bandas que vilipendiam a imagem da mulher. Outro exemplo: temos uma política de defesa da diversidade humana que nos arrasta para o confronto com os menores sinais de homofobia. Isso é o básico! Na prática, o que temos vivido é um aprendizado coletivo no imenso desafio de compatibilizar tradição e contemporaneidade nas políticas de cultura da cidade. No entanto, nesse jogo nos cabe deixar claro a separação do joio e o destino do trigo.

O que ocorre é que a indústria do entretenimento ditada pelas mídias faz exatamente o contrário. São pregações oligopolistas guiadas unicamente pela lógica do lucro concentrado, com um forte marketing para arrastar seguidores de baixo teor reflexivo, mas com capacidade de formar opinião em qualquer escala de mídia, incluindo as redes sociais da internet. Podemos afirmar ainda que consideramos inescrupulosos os produtores desses gêneros musicais infiltrados na esfera pública e que fazem “a ponte” para esse mercado de horrores. O que expliquei ainda aos representantes do axé-paraíba é que ao pagar um cachê dez vezes maior que a média local seria, sobretudo, um estupro administrativo sem justificativa no Tribunal de Contas do Estado que nos solicita clareza na justificativa de preço dos cachês. Portanto, são tantas coisinhas miúdas envolvidas em nossas escolhas. São tantas responsabilidades que o que precisamos fazer é exatamente preservar os nossos princípios. Precisamos estabelecer a ruptura dos monopólios midiáticos que estabelecem praticamente a totalidade do consumo na produção cultural. A gestão dos recursos públicos de cultura precisa ter claro que além do verão de Tambaú, existe o inverno de Engenho Velho pra ser administrado. A cidade é uma só.

Mas, em se tratando de cultura tudo é incipiente. Não temos uma grande tradição em política cultural no Brasil. O primeiro gestor de cultura do país foi o poeta Mário de Andrade que assumiu o recém criado Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1937. Ele ficou apenas um ano no cargo e foi demitido, mas as políticas identitárias que defendeu ainda estão em pauta. A secretaria de cultura mais antiga do país tem apenas 40 anos (do Ceará). A própria FUNJOPE tem uns 15 aninhos, somente. Embora algumas pessoas da cidade pensem que foi criação do governo Ricardo Coutinho. (A cidade não sabia que existia, por exemplo, um Fundo Municipal de Cultura.) Hoje temos projetos aprovados no Valentina, na Torre, em Gramame e outros setores da cidade carentes de arte e cultura e que agora passam a assumir um papel no diálogo sem fronteiras que deve nortear as políticas culturais, como protagonistas e não como figurantes ocasionais.

Mais do que fazer circular os bens culturais produzidos na cidade, é importante ampliarmos permanentemente esse debate sobre a estética do mercado. Por que fazemos as coisas de uma maneira e não de outra? Por que não nos preocupamos em elaborar programações que “agradem todo mundo”? Devemos fazer o que o povo quer ou o que o povo precisa? Este ano, numa mesa do projeto “Valentina com arte III”, escutei da parte de um músico, coisas do tipo: “eu faço forró de plástico, mas eu faço forró de plástico autoral”. É como se houvesse na sua frase e no brilho dos seus olhos, além de uma justificativa, um pedido de perdão. Estás perdoado, amigo, mas aprofunde mais suas pesquisas musicais que você vai encontrar bem perto de você, pérolas necessárias à lapidação das nossas almas. Senti naquele momento, o valor de uma simples reflexão sobre o fazer cultural da cidade.

Nesses quatro anos estabelecemos um debate sincero com os bairros, através não apenas das palavras, mas de ações concretas que se conjugaram com ações de políticas públicas intersetoriais focadas no interesse público. Esta é uma condição que trazemos à tona para a formulação de um discurso que busca, incessantemente, a democratização dos espaços para as expressões culturais e artísticas da cidade e a devida acessibilidade a esta produção pela própria cidade.

sábado, 27 de setembro de 2008

A literatura como método


Breve memória das oficinas de leitura nos bairros da velha Parahyba


Na verdade, nem sabíamos exatamente como seria. Apenas tínhamos percepção da necessidade de um projeto de incentivo à leitura na cidade de João Pessoa. Jamais esqueço o sorriso budista e o brilho nos olhos do multi-artista e arte-educador, Zé Guilherme, um guerreiro da espécie. Foi ele o precursor da boa nova: Oficinas de leitura nos bairros! Tudo muito pé-no-chão. Sonhos apontando para o futuro e uma disposição enorme para determinar uma nova realidade. Um articulador do próprio bairro para juntar a meninada. Um oficineiro ou oficineira com capacidade profissional e sensibilidade para tornar a leitura um ato de sedução. Pronto. Estávamos no ponto de partida. O fator humano era o nosso trunfo. Pessoas apaixonadas por esse processo contínuo de “aprender a aprender” semeado no mundo por educadores como Paulo Freire. No amparo estrutural do projeto, a Fundação Cultural de João Pessoa - FUNJOPE. Profissionalismo é a palavra chave desta ação. Todas as oficineiras e oficineiros estão “mestrando a língua” no curso de Letras da UFPB, ou mesmo já possuem título de mestre. Mas, o fundamental é que conseguimos reunir um grupo de pessoas qualificadas profissional, ética e moralmente. Pessoas apaixonadas pela leitura.
Após dezoito meses de uma vivência das mais ricas do ponto de vista pedagógico, político, poético e mesmo existencial, aprendemos a acolher rodas de leitura onde se misturam muito naturalmente um Machado de Assis, um José Paulo Paes e um Paulo Sérgio. Paulo Sérgio? Quem é? Perguntei ao menino-leitor numa das rodas de leitura. “Ele mora lá no bairro”, disse. Não tenho memória dos versos de Paulo Sérgio e nem me caberia comentá-los aqui. Soube depois que é um guarda municipal e atua num grupo de teatro amador que encena a Paixão de Cristo pelas comunidades há três décadas, o grupo Arte-Povo, do tradicional bairro popular de Mandacaru.
A descoberta saudável da poesia de Paulo Sérgio nos levou a duas conclusões lógicas e imediatas. Numa delas constatamos o prazer de termos encontrado o fio condutor do projeto. Ou seja: o jovem trouxe de casa sua própria leitura. De outro lado coube-nos a angústia por identificar com tamanha brutalidade a dificuldade de acesso ao livro. Paulo Sérgio, jamais publicou seus poemas. As políticas da leitura e do livro na capital da Paraíba vivem da guerrilha imprescindível de uns poucos. Atos que convergem para espaços como a biblioteca Comunitária Cactus, conduzida por duas mulheres fantásticas, Nina e Edeusa, absolutamente envolvidas numa ação militante e cidadã pelo direito à leitura num bairro de trabalhadores. Uma ação parceira das nossas oficinas de leitura que nos faz lembrar Antônio Cândido: “a literatura é um dos direitos humanos.”
Tudo é pensado integralmente, como deve ser um processo educativo que prima pela qualidade. O aluno, o oficineiro, a instituição, a sociedade e suas estratificações. Na verdade, estamos realizando um projeto de inclusão que trabalha o acolhimento através do livro e da leitura. Desde as primeiras idéias trocadas com Zé Guilherme até hoje, tudo me remete as palavras de Roland Barthes: “a literatura contém muitos saberes”. Uma coisa fácil de constatar. A leitura de “O Século das Luzes”, do cubano Alejo Carpentier, muito mais que o prazer de um bom romance, nos ensina a ler uma conjuntura importante na história do mundo. Também, não há como estudar mais profundamente a história do Rio Grande do Sul sem uma leitura atenta e prazerosa de Érico Veríssimo. Que estudioso da história brasileira pode abrir mão de Guimarães Rosa? Como entender o massacre de Canudos sem Euclides da Cunha?
Mas tudo é assim, tão maravilhoso? Não! Como política de educação fora dos muros, o estímulo à leitura deveria ter alguma visibilidade. No entanto, afora o entusiasmo de quem está diretamente envolvido, a apatia e a indiferença é grande. De quem é a culpa? Bem, essa conclusão me parece muito próxima de um comentário que ouvi de uma amiga em uma reunião, dia desses: “A culpa é minha. Eu a coloco em quem quiser”.
Uma coisa é concreta. As escolas desestimulam a leitura, mantendo muitas vezes suas bibliotecas fechadas para “proteger os livros dos alunos”. Lembro-me de quando fui solicitar autógrafo do saudoso João Alexandre Barbosa, em “A Metáfora Crítica”. O livro estava bastante surrado e sublinhado. Ele disse: “isso é um ótimo sinal. O livro está sendo aproveitado”. Claro que a propriedade coletiva de um livro requer cuidados. Só que um livro não pode ser tratado como algo inacessível, mas como algo imprescindível. Ler não pode ser privilégio de intelectuais. É um direito do povo.
O ensino formal da literatura (de modo geral) não oferece escolhas ao aluno. Impõe um pacote do que supõe importante. A literatura contemporânea em sala-de-aula, por exemplo, é uma exceção. A solução está, pois, fora dos muros escolares. Mas, quem duvida que um jovem leitor tenha maiores possibilidades de sedução com Leminski do que com Cláudio Manuel da Costa? A linguagem contemporânea, com certeza, levaria o aluno a uma identificação mais imediata com o texto. E foi isso que fomos buscar.
As nossas oficinas foram denominadas “Uma Janela Para o Mundo”. Percebemos logo a pertinência do título quando ouvimos de uma adolescente do bairro São José, que “aquilo estava abrindo uma coisa no seu peito”. Era, pois, a janela! Percebemos que havia um crescente interesse por aquela experiência quando, num sopro, já envolvíamos mais de 90 jovens. Criamos em João Pessoa uma ação cultural ainda embrionária, mas estruturante e necessária para uma mudança de hábito. Afinal, não estamos formando leitores para Lair Ribeiro e Paulo Coelho, mas apreciadores da boa literatura.
Dos clássicos aos contemporâneos, os livros funcionam como uma espécie fetiche para um processo educativo e cidadão. O projeto “Uma Janela para o Mundo” demonstra que é possível sim uma política de leitura em nossas cidades, cuja meta principal seja mesmo a fruição proporcionada pela boa literatura. Aqui em João Pessoa, por exemplo, caso um processo desses fosse iniciado nas escolas públicas, haveria a possibilidade de atingir imediatamente mais de 10 mil jovens e chegar à, pelo menos, 100 mil leitores em menos de 4 anos. Não há mistério. Trata-se de uma ação que depende unicamente de uma decisão política e disposição militante dos que estarão a implementá-la.
As formas de sedução são as mais diversas. A experiência de Mandacaru envolve também a música. A experiência de Muçumagro (outro bairro periférico da velha Parahyba) trabalha o gosto da leitura a partir dos signos do teatro. Vale a criatividade de cada grupo. Vale, sobretudo, a liberdade de escolha dentro de um cardápio literário bastante criterioso e ao mesmo tempo aberto para novas descobertas feitas pelos jovens que são, naturalmente, nosso público alvo. No entanto, há grupos de leitura onde é possível encontrarmos neta e avó. Há grupo em que uma adolescente trouxe a mãe para participar, logo depois o irmão e o pai. Por não trabalhar com avaliações formais e por não estabelecer limites, as oficinas de leitura acabaram produzindo elos que vão muito além do ato de leitura.
Outro caso singular é a participação do poeta Ronaldo Monte. Aposentado do curso de Psicologia da UFPB, intelectual respeitado na cidade e fora dela, o poeta nos oferece um capítulo especial nas oficinas de leitura. Ele atua como voluntário em Mandacaru e nos revela a importância da participação apaixonada também dos escritores para a consolidação de uma política de leitura. Tudo ainda está em formação e esse é o critério. O método? A literatura é o método. E ponto. Não queremos um projeto “pronto”. Queremos uma política pública onde o jovem será atraído pela liberdade de escolha e pela vocação para o acolhimento semeada no grupo. Tanto em relação à participação nas oficinas quanto sua liberdade de escolha das próprias leituras. Senti vontade de relatar um pouco dessa nossa experiência aos leitores cronopianos. Aqui, temos apenas uma breve notícia das oficinas de leitura. Um projeto cujos resultados serão colhidos pelo tempo, dentro de um processo de formação continuada. Algo plenamente possível e que somente poderá acontecer através de uma política educativa integral, transformadora para uma sociedade ideologicamente amestrada, acatando a exclusão com naturalidade cristã.

Lau Siqueira

P. S. – Parahyba era o nome da capital da Paraíba até a revolução de 30, quando num golpe oligárquico, colocaram na cidade o nome de um político sem muita expressão e que foi assassinado em uma circunstância absolutamente passional.

sábado, 5 de julho de 2008

Yes, nós temos João!

(pequena crônica para uma crítica anunciada)

Lau Siqueira

Não posso dizer que fiquei triste quando li na coluna do meu querido Jamarri Nogueira que a programação do São João da capital era “fraquinha”. Fiquei foi embasbacado. Naquele momento sequer tínhamos anunciado a tal programação. Comecei a entender, então, o porquê de alguns artistas reclamarem da ausência de repercussão (positiva ou negativa) dos seus shows, espetáculos, lançamentos e exposições.
Mas, esse papo introdutório dá pano para outras mangas. Na verdade, o que impulsionou a reflexão deste momento foram as declarações de Biliu de Campina e Pinto do Acordeom em uma emissora de TV local. Eles ressaltavam as escolhas que foram feitas para a programação do São João de João Pessoa. Biliu chegou a brincar, dizendo que em muitas cidades havia um “Sem João” e que na capital era o verdadeiro “Tem João”.
O que ocorre, no entanto, é que não podemos sucumbir diante do lugar comum. Não se pode conceber um evento dito cultural que se renda às multidões. Porque as multidões, de um modo geral, estão previamente habilitadas para as estratégias da indústria cultural. Não se pode conceber uma gestão cultural que não tenha um caráter educativo. Até porque administrar é, sobretudo, um ato educativo. A realização de uma festa popular tão importante para o resgate da identidade cultural nordestina como os festejos juninos não poderia se dar de forma diferente. Por isso não podemos ficar calados diante das tentativas nada inocentes de jogar pérolas aos porcos.
O que se estabeleceu de forma silenciosa, mas sólida na capital da Paraíba nos quatro últimos anos foi um novo conceito de evento público. Em primeiro lugar, devido às escolhas. Em segundo lugar, por um planejamento que nos permite comemorar um índice insignificante de violência nos shows realizados durante o ano inteiro. Os festejos juninos este ano, entretanto, bateram o recorde. De 21 a 29 de junho, não houve um único empurrão no Largo de São Pedro, Praça Antenor Navarro e Conventinho - os três pólos da nossa festa. Algo a ser comemorado num tempo em que algumas festas de rua acabam virando praças de guerra e até mesmo contabilizando mortes.
O “João” da capital, entrementes, não se resumiu aos shows maravilhosos que aconteceram na praça Antenor Navarro. Como o do Quinteto Violado que nos mostrou ser possível colocar bailarinas no palco, sem vulgaridade. Foi assim com o balé popular de Recife! Também foi só plenitude Clã Brasil e Antônio Barros e Cecéu, que comprovam que as nossas grandes atrações podem sim morar na cidade. Da mesma forma o genial Pinto do Acordeom e os emergentes Cabra do Mateus, Maciel Salu, Mayra Barros e tantos outros. A presença de forrozeiros do primeiro time como Maciel Melo e Petrúcio Amorim selou o conceito de que podemos fazer um grande São João, sem concessões ao grotesco, ao mau gosto. Fechamos com chave de ouro, trazendo o excelente Santanna e a Poesia Popular Universal de Jessier Quirino.
Estamos consolidando o São João de João Pessoa como um grande festival regional de folclore. Mais de setecentos brincantes passaram pelo Largo de São Pedro. Era mazurca, coco de roda, nau catarineta, ciranda, reizado, mamulengo, cavalo marinho e outras expressões do imenso patrimônio imaterial da cultura nordestina. Quem esteve no Largo para dançar com Aurinha do Coco, Dona Teca, Dona Selma, ou Mané Baixinho, sabe do que estou falando.
Também foi esse o modelo que propiciou um novo debate acerca da vocação do Arraial do Varadouro. Um evento com capacidade própria de mobilização popular. É impossível negar fatos tão presentes na vida do Arraial. Existe um festival de quadrilhas já consolidado. No entanto, existem linhas de projeção folclórica, criadas a partir das quadrilhas e que não são mais quadrilhas. Alguns chamam pejorativamente de “estilizadas”. Na verdade são espetáculos belíssimos que também precisam de espaço próprio para cultivar suas linhagens contemporâneas, mesmo dentro de uma engrenagem de preservação da tradição e da identidade. Ao apresentar o grupo de carimbó, Moara, de Belém do Pará, o Arraial deu sinais de respirar o próprio futuro. Passaram por lá pessoas de Honduras, dos EUA, da Itália, da França e de outros lugares. E saíram maravilhados.
Em última análise, precisamos estabelecer esse debate. Afinal precisamos sintonizar linhas de comprometimento com a recuperação das antigas (e a descoberta de novas) potencialidades de desenvolvimento de uma cidade que ainda tem chances de escapar da barbárie urbana dos grandes centros. O fato de termos “João” nos enche de esperança. Uma esperança como a que foi conceituada por David Cooper: “não há esperança. Há uma luta. Esta é a nossa esperança.” E que venham as críticas, para que possamos pulsar melhor nossos argumentos. Nosso grande desafio está posto: conjugar tradição e contemporaneidade.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

República do Desencontro

O mercado do livro e a tradição literária nordestina

Lau Siqueira*

Ano passado participei como convidado do Encontro de Interrogações do Itaú Cultural, em Sampa. Um evento que busca, sobretudo, o mapeamento da boa literatura contemporânea brasileira. Grandes momentos. Grandes debates. Nomes de ponta da produção literária brasileira estiveram por lá. Muitos dos quais já com alguma intimidade com a engrenagem mercadológica do livro, pelo menos em termos de distribuição.Inicialmente fiquei um tanto quanto injuriado ao ouvir a Professora Heloísa Buarque de Holanda dizer que os poetas nordestinos não entravam nas suas antologias porque seus livros não chegavam ao sudeste. No entanto tomei o fato como uma provocação acerca do isolamento vivido pelos escritores nordestinos e que, diga-se de passagem, não difere muito dos escritores de outras regiões periféricas ou mesmo das periferias das regiões centrais de um país, injustificadamente, ainda debruçado sobre as grandes chaminés de um grande pólo industrial e seu modelo selvagem de desenvolvimento.Independentemente das nossas interpretações acerca do critério de avaliação para o que possa vir a ser uma antologia representativa da produção poética nacional, fica uma pergunta no ar. Como é que a região que produziu grandes nomes da história do livro e da literatura no Brasil, como Graciliano Ramos, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, Carlos Pena Filho, Manuel Bandeira, Castro Alves, Gregório de Matos Guerra, Castro Alves, (só para citar alguns) não possui uma única editora com distribuição nacional? Eis uma questão que me instiga profundamente ao passear, pisando em óvulos, pelo argumento da Professora Heloísa, logicamente exposto num contexto absolutamente específico e que, portanto, tendo se cumprido como resposta, renasce a partir do que provoca.Ora, lembrando Bráulio Tavares, figura de proa da boa literatura e da boa música brasileira, autor de Nordeste Independente cantado por Elba Ramalho em tom de hino, me pego pensando porque uma região mais populosa que muitos países do mundo, contando com mais de quarenta e seis milhões de habitantes, não figura como pólo editorial concorrente com a concentração de boas editoras especialmente no eixo Rio e São Paulo, mas também no Rio Grande do Sul, cuja distribuição nacional das suas produções aproximou leitores de grandes escritores? Ora, se o debate entra no ramo dos negócios, podemos concluir que o empresariado nordestino do ramo gráfico competitivo, no mínimo está marcando touca.Por que mesmo a boa produção contemporânea do Nordeste ainda precisa ser catapultada por editoras como a Objetiva, por exemplo, com a bela coleção Fora do Eixo? Aliás, uma aposta inteligente que nos leva a refletir acerca da capacidade investigativa de parte do mercado editorial brasileiro acerca da produção literária de uma das regiões, historicamente, mais férteis da América Latina. Ou seja: há vida e esperança.Não cabe aqui nenhum lamento nordestino. Até porque moro na Paraíba há mais de vinte anos, mas continuo o mesmo gaúcho nascido em Jaguarão com raízes familiares profundas nos pampas. Não se trata disso. Trata-se de um questionamento que levanto ao ver as grandes livrarias das metrópoles nordestinas, abarrotadas de gente comprando livros de autores nordestinos, produzidos longe daqui. É incompreensível, principalmente, porque existe um parque gráfico no Nordeste capaz de uma produção competitiva. Um parque gráfico que no âmbito da produção cultural, no mais das vezes, se limita a atender as demandas das leis de incentivo principalmente no que se refere aos artistas plásticos e seus catálogos.Não se trata de uma justificativa do pouco caso que os/as antologistas fazem da produção nordestina contemporânea. Afinal, se o objetivo fosse mesmo realizar uma antologia representativa da produção brasileira contemporânea, a grande mídia virtual e seus instrumentos de busca ajudariam de forma significativa na descoberta de excelentes escritores, em todos os estilos, também, em estados distantes como o Acre, Rondônia... regiões ainda mais abolidas da mídia que o sempre efervescente Nordeste.Não são poucos os escritores nordestinos que incendeiam a cena contemporânea e furam o bloqueio do restrito mercado editorial brasileiro. Muitos bancam a própria guerrilha. A verdade é que se paga a peso de ouro, muitas vezes, para ter um livro disponível nas grandes redes de livrarias do país. Um péssimo negócio para o autor e para o leitor. E, diga-se de passagem, o ouro para os oportunistas do mercado. Uma anormalidade escandalosa que, infelizmente, se banaliza cada vez mais como “solução” diante do esquecimento deste importante nicho do mercado do livro. Mas, até mesmo neste modelo - desaconselhável, no meu entendimento - é possível identificar uma literatura com alto risco de sustentabilidade econômica. Principalmente porque o mercado nordestino do livro é uma realidade em expansão, explorada cada vez mais pelas grandes redes de livrarias e acumulando eventos importantes como o Fliporto, Festival Recifense de Literatura, Encontro Natalense de Escritores e outros ainda embrionários, como o Agosto das Letras, em João Pessoa.Ainda assim se observa que, com raríssimas exceções, da mesma forma, não há um olhar mais apurado dos editores sulinos sobre a produção contemporânea nordestina. O que, aliás, não espanta. Sempre foi assim. Nossos grandes nomes somente despontaram quando criaram laços ou até mesmo mudaram de mala e cuia para o sul maravilha. O que espanta mesmo é a inexistência de investimentos para a transformação do Nordeste num pólo de desenvolvimento do mercado editorial brasileiro. Algo que, certamente, faria com que as grandes editoras do sul/sudeste, no mínimo, buscassem parceirizar com os parques gráficos nordestinos na busca de um mercado cheio de possibilidades, mas que vem sendo explorado de forma tímida.O estigma de um Nordeste miserável não abala mais investidores de outros setores da economia. Há um babado fortíssimo no mercado econômico brasileiro apontando a economia emergente da região como a “bola da vez”. Nem mesmo o litoral paradisíaco existente entre a Bahia e o Maranhão esconde mais a força de uma cultura cheia de identidade e vigor que construiu uma tradição e tem uma contribuição significativa para a introdução do Brasil no mapa literário da lusofonia.

*Lau Siqueira, poeta.

sábado, 15 de março de 2008

Para onde vai o nosso carnaval?

Lau Siqueira

De que matéria é feito o carnaval nordestino? Para a grande e estreita mídia colonialista do sul/sudeste, a matéria do carnaval nordestino se divide entre o frevo das Casas Pernambucanas e o sambaxé das Casas Bahia. Ponto final. O Armazém Paraíba fica de fora. Mas, deverá também ficar de fora das nossas reflexões?
Desculpem, mas não poderia começar a refletir sobre um tema de tamanha relevância sem uma boa dose de ironia para com a esperta e ausente iniciativa privada. Um produto cultural rentável, como o carnaval nordestino, que somente este ano movimentou 283 milhões em Recife, precisa ser pensado em João Pessoa com suficiente objetividade para se oferecer como alternativa aos grandes pólos da folia nordestina e, conseqüentemente, beber das águas abundantes da sua lucratividade.
Não é possível mais observarmos as movimentações da máquina pública sem que se tenha lucidamente apontado o caminho das suas ações. Os carnavais nordestinos de sucesso se tornaram multiculturais (e até multinacionais), com uma preponderância absoluta, no caso de Pernambuco, da cultura popular. O debate sobre o multiculturalismo até parece uma invenção de Recife. No entanto, há tempos faz parte das reflexões de um dos mais conhecidos filósofos contemporâneos, Jürgen Habermas. Ele afirma que “a cidadania é definida pelos direitos civis. Mas temos que considerar também que os cidadãos são pessoas que desenvolveram sua identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que precisam desses contextos para conservar sua identidade.” Essa identidade, bastante “transformista” na Bahia, mas decididamente de raiz em Pernambuco, é o fole da impulsão econômica. Por que não poderia ser também por aqui?
Em João Pessoa, a principal expectativa de um carnaval com identidade cultural e perspectiva econômica, penso, está no Carnaval Tradição. Um evento que vem sobrevivendo às turras através das décadas, envolvendo comunidades tão excluídas quanto aguerridas e que se mobilizam em torno de três expressões básicas: o samba, o frevo e o caboclinhos. Três das mais importantes vertentes da cultura popular, aliás. Importantes pontos de partida para uma discussão acerca da revitalização de um evento paupérrimo em investimentos públicos e privados, mas rico no sentido de uma importância estratégica para o fomento da economia das comunidades, a partir da agregação de valores culturais e educacionais no aprimoramento do que já existe.
Por que o Carnaval Tradição e não o Folia de Rua, como referencial? Primeiro porque, atualmente, quando se fala em Folia de Rua, é preciso que se pergunte: qual deles? Com ou sem Muriçocas? Com pagodão virado ou com frevo rasgado? Com cordas ou sem cordas? Com abadás ou sem abadás? Ou seja: parte do Folia de Rua micaroalizou-se. Esta é a realidade. Desta forma perdeu a unidade para uma discussão acerca da sua identidade enquanto instrumento de identidade para um carnaval genuinamente pessoense. Sabe-se que até mesmo alguns abadás são confeccionados fora. Uma ação que pode até ser irrefletida mas, seguramente, conserva o vinco neoliberal visto que a única regra do liberalismo é mesmo o lucro concentrado.
E aí vamos para o vale tudo, para o “cada um por si”. Só não vale pensar na aldeia e nas possibilidades colonizantes em pequenas ou largas escalas, dependendo da circunstância. E não resgato e incluo no debate esse modelo nocivo ao que se propõe, se não pelo seu caráter excludente, monopolista, concentrador de renda e diluidor das identidades culturais dos povos.
Conta-se que no período que se seguia a Micaroa, a cidade vivia um vácuo econômico de dar dó. Não é para menos: os trios, os artistas, os abadás, os idealizadores e até mesmo as latinhas de cerveja vendidas no cercado de cordas, vinham da Bahia. Eles estão errados? Não. A cidade de João Pessoa é que precisava abandonar o espírito de colônia dos grandes centros nordestinos e pensar nas suas próprias soluções usando como ponto de partida o velho ditado popular: “farinha pouca, meu pirão primeiro. “

Um Carnaval de João Pessoa, enquanto produto cultural de identidade e com razoável potencialidade na impulsão da economia local passa diretamente pelo fortalecimento da poderosa cultura popular oriunda da próspera Capitania de Itamaracá que, às vezes nos confunde com Pernambuco ou nos revela uma paraibanidade que ao contrário de estabelecer uma competitividade nociva, amplia as possibilidades regionais, certamente com muito mais benefícios e menos malefícios que a transposição a fórceps do Velho Chico.
Em recentes viagens a cidades próximas como Caaporã e Campina Grande, em pleno período momesco, pude reforçar a idéia de um carnaval multicultural, poderoso economicamente e com identidade perante o Brasil e o mundo. Nessa trajetória de poucos quilômetros, cruzei com Alaursas pelas ruas e na Avenida Duarte da Silveira, com seus batuques instigados, um boi e seus seguidores atravessando a BR em Cajá e um maracatu rural em Caaporã. Enfim, elementos de uma resistente cultura indígena e negra que, somadas ao aprimoramento do chamado Carnaval Tradição, poderá criar um pólo irradiador de elementos que, uma vez agregados, poderão trazer para João Pessoa uma nova perspectiva na economia da cultura e nas potencialidades da cultura popular como instrumento de consolidação de uma identidade local. Enfim, temos essas possibilidades para discutir neste início de ano. E o carnaval que precisa estar em pauta nesse debate, não é o carnaval do passado, mas o carnaval do futuro.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Como na Idade Média

A qualidade da produção literária paraibana não é novidade. Também não é novidade a boa relação que a maioria dos escritores mantêm entre si. Há uns três anos, encontrei alguns deles num Café do Shopping Sul. Pensei se tratar de um encontro casual de amigos no agradável bairro do Bancários. Comunidade conhecida, aliás, por abrigar boa parte dos artistas, escritores e produtores culturais da capital da Paraíba.
Ledo e Ivo engano. Tratava-se da segunda reunião do que viria a ser o Clube do Conto da Paraíba. Testemunhei, pois, o nascedouro do que hoje transborda nesta edição da coletânea “Histórias de Sábado”. Um pouco oficina literária, um pouco de mesa de debates, um pouco roda de amigos, um tanto de coisas feitas, idéias construídas... Convergência de criaturas cujo prazer maior naqueles momentos partilhados é a artesania, a alquimia e sobretudo, a discussão sobre as suas produções semanais.
Os integrantes do Clube do Conto da Paraíba, desde a sua criação até a edição deste volume reúnem-se semanalmente para propor temas, expor a produção da semana anterior e apontar seus olhares críticos. Ninguém sai ileso. Ninguém poupa ninguém. São agudas as críticas. Ainda que o grupo seja bastante heterogêneo. Afinal, como escreveu Schopenhauer, “devemos descobrir os erros estilísticos nos escritos dos outros para evitar nos nossos”..
De escritores já com os pés e as mãos no mercado editorial brasileiro (e até internacional, como é o caso de Valéria) a estudantes. Pouco importa. Neste Clube, o ingresso é o amor à palavra. Este é o sentimento que prevalece na composição efetiva e afetiva de uma entidade anárquica, sem chefia mas com direção. Quem dirige o Clube do Conto da Paraíba, é o compromisso com a boa literatura. Pelo que testemunhamos nesta edição, uma Literatura maiúscula.
E tudo começou assim, como na Idade Média, quando os povos se reuniam ao redor do fogo. Também como faziam os hippyes e os índios, na canção de Rita Lee. A produção aqui reunida borbulha no espelho d’água de um caldeirão de motivos para ancorar nossos mais sinceros sorrisos. Sejamos, pois, razão e conseqüência desta chama! Porque como dizia Roland Barthes, “a Literatura contém muitos saberes.”

(Os textos neste blog, não terão ordem qualquer. Este, por exemplo, é o texto de apresentação da coletânea Histórias de Sábado, do Clube do Conto da Paraíba)

domingo, 2 de março de 2008

Gestão Cultural e o Trem (Expresso) da História

(Anotações para uma vivência cotidiana)


Lau Siqueira

Pensar e executar políticas públicas jamais foi tarefa exclusiva de qualquer instituição pública. Faz-se necessária a construção de parcerias com capacidade de esticar mais e mais os braços burocráticos e executivos das engrenagens administrativas do setor público. O programa dos Pontos de Cultura, do MinC, é um bom exemplo de institucionalização dessas parcerias. Por outro lado, jamais teremos a plenitude de uma política de turismo parceira da cultura, por exemplo, se não tivermos como âncora a participação efetiva do micro e médio empresariado que, via de regra, trata-se de um segmento que “vive a cidade” e sobrevive do seu vigor econômico. Também, jamais teremos uma política cultural verdadeiramente educativa e cidadã se os gestores públicos não aprenderem a escutar as comunidades, aprendendo sobre seus mitos e incorporando os seus aprendizados. Não quero dizer com isto que devamos mergulhar no tabuleiro das demandas, de um lado e de outro, uma vez que a missão de uma política cultural conseqüente é muito mais de fomento que de promoção, em qualquer área.
Por outro lado, nos parece lógico – e até mesmo ideológico - o entendimento que as políticas culturais devam ser empurradas para dentro das estratégias de desenvolvimento econômico dos governos. Mas, não só para dentro das estratégias econômicas onde, aliás, serão geradas as possibilidades de mercado para os artistas. Também para o disciplinamento da vivência coletiva, num debate que certamente será profícuo tanto com o meio ambiente, quanto com a educação, a saúde, o patrimônio histórico ou mesmo com as especificidades do tecido social, algumas delas já institucionalizadas em diversas instâncias. Como é o caso das coordenadorias de mulheres, negros, índios, ciganos, diversidade sexual e outros segmentos ditos de “minoria” que, na verdade, formam a grande maioria do povo brasileiro.
Não é possível que ainda pensemos as políticas culturais apenas quanto às relações de poder que se criam em torno da execução de eventos, eleitorais, inclusive. Também não é possível que pensemos políticas de pedagogia cultural, sem que seja considerada a complexidade e a diversidade das causas da exclusão. Até porque é nesse momento que entra no debate, o fator econômico, ingenuamente refugado do debate por alguns. Essa bifurcação de contrários é, provavelmente, uma das tentativas mais próximas da exatidão e da elucidação dos nossos sonhos socialistas e libertários. A nossa utopia ainda é a mesma: entender a realidade para depois transformá-la. Este é um debate que infelizmente não cabe, por exemplo, no comportamento pós-eleitoral dos segmentos culturais mais próximos de uma perspectiva governamental. E em todos esses casos quem “paga a conta”, do sucesso ou do desastre, não é o gestor ou o empreendedor, mas o cidadão e a cidadã independentemente de ser ou não de um segmento cuja condição social permite sobras monetárias para bancar deleites estéticos ou simplesmente entretenimentos gerados pela cultura em seus diferentes níveis de industrialização ou resistência.
Eis o motivo pelo qual concluímos que, necessariamente, jamais a gestão cultural de qualquer município, estado ou país poderá ser de execução exclusiva das suas instituições culturais. A menos que o que se queira seja apenas deixar que fluam as vaidades pessoais em torno de questões indiscutíveis, como probidade e competência administrativa para a execução de programas que representam apenas a ponta de um iceberg ilustrativo. O caso mais emblemático é o das leis de incentivo. Afinal, bem ou mal administradas, não podemos supor que as políticas culturais devam resumir-se a elas e aos diversos tipos de editais públicos existentes ou pensados. Aliás, todos de importância indiscutível, mas cuja aplicação precisa ser ainda muito aperfeiçoada para deixar de representar interesses segmentados ou simplesmente de indivíduos, muitas vezes, nada confiáveis.
Tudo isso precisa acontecer dentro de uma conjunção de ações culturais, pensadas, política, estética e filosoficamente, num direcionamento de prioridades muito transparente porque executado a partir de um pensamento cuja expressão é - e é imprescindível que seja – pública e mutante, como propõe para o debate (estético, no caso) o livro “Obra Aberta”, do italiano Umberto Eco.
Não estamos aqui trazendo nenhuma novidade. Somente para ilustrar, já em 1964, o poeta Ferreira Gullar (cujo envolvimento social sempre foi inequívoco) publicou o ensaio “Cultura Posta em Questão”, às vésperas do golpe militar. Ele buscava discutir temas culturais, equacionando a cultura nacional dentro do quadro geral dos problemas brasileiros. Entendemos, portanto, que as políticas de gestão cultural não se resumem na execução burocrática com repercussão midiática direcionada muito mais para a vaidade dos gestores de plantão do que para as necessidades coletivas de informação e formação. A questão é bem mais ampla. Portanto, as reflexões mais sólidas são as que partem das experiências concretas que tanto as gestões populares quanto os movimentos sociais buscaram e buscam implementar.
No caso específico do “ensaio-manifesto” de Ferreira Gullar, os palcos dos debates foram os históricos Centros Populares de Cultura (CPCs), da UNE (União Nacional dos Estudantes) que contribuíram para as novas gerações com uma experiência de aplicação de uma política cultural cujos efeitos ainda exigem de nosotros uma compreensão mais exata. Afinal, são experiências concretas e históricas em busca da democratização da cultura dentro de um processo social mais abrangente, ainda que tenham refletido o autoritarismo stalinista nos rescaldos da Guerra Fria.
Não quero entrar no mérito do torniquete ideológico do partidão que, naquele momento histórico, segundo pensadores como Lúcia Santaella, acabava engessando a produção cultural dentro dos modelos equivocados do chamado “Realismo Socialista” que revelou expressões como Máximo Gorki e estrangulou uma infinidade de outros artistas e pensadores. Concretamente, esta experiência gerada na UNE, acabou não permitindo a expansão das suas raízes do nascedouro do movimento estudantil da época, às fábricas e ao campesinato. Ainda assim, constitui-se numa das principais referências para um processo de inclusão da cultura na pauta das lutas gerais da sociedade, apesar do equivocado patrulhamento estético e político que gerou.
“Romantismo” possível nesse início de Terceiro Milênio, é colocar em curso um projeto de execução permanente de políticas públicas para a cultura, num diâmetro que vai da pedagogia social, aos trâmites do desenvolvimento de uma perspectiva de mercado que, para os artistas, significa mercado de trabalho e para a sociedade, significa a abertura de mais uma porta para a geração de emprego e renda, formal e informal. Esta é uma questão de absoluta visibilidade até mesmo nos menores eventos culturais, onde os bares contratam serviços extras, a rede hoteleira precisa contratar mais para atender melhor e até mesmo a economia informal (que alguns querem tratam como invisível) mostra sua cara de satisfação com a movimentação monetária gerada por determinada ação cultural.
A necessidade de juntar, unir, montar e remontar o diagrama social que nos cerca, nasce no que há de mais evidente e palpável. Ou seja: nas relações profissionais, afetivas e políticas que cercam o nosso cotidiano. Nada disso está muito distante do “bom dia” dado ao porteiro, não por educação, mas por convicção da importância do seu trabalho para o resultado final de qualquer ação administrativa ou cultural, dentro de um determinado contexto.
Em última análise, penso que estamos diante de uma poderosa locomotiva. O trem da história não é mais uma Maria-Fumaça. Agora somos viajantes de um Trem-Bala. Vivemos a era das velocidades. As vantagens e desvantagens conjunturais dependem, primordialmente, da nossa capacidade de buscar compreender a nossa circunstância e o seu estado de ebulição permanente.
Estamos numa época que, viver sem reflexões permanentes significa referendar a degradação moral e ética, dados os graus de banalização dos valores que nos assombram pelo poder de publicidade, caminho pelo qual se vestem de normalidade. Coisa, aliás, que se estende ao debate estético, da tradição à vanguarda. Não se trata, pois, resumir-se à troca de acusações autofágicas que arrastam personalidades patológicas em torno de disputas que, calcadas em nítidos interesses pessoais, retardam o debate cultural e, conseqüentemente, a evolução da nossa sociedade para um patamar com menores índices de barbárie. Longe disso! Na verdade, “é preciso estar atento e forte”, afinal, não temos tempo de temer o futuro.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...