terça-feira, 30 de junho de 2009

A cultura dos que dominam pelo asco e as gerações abandonadas

“O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só lhe permite uma perspectiva.” (Hanna Arendt)



Por Lau Siqueira

A convivência com os movimentos da vida nos vai capacitando para pensar o mundo que nos cerca e o que nele pulsa. Seus dinamismos e perplexidades a partir de uma industrialização não apenas da cultura, mas também do pensamento e, principalmente, dos comportamentos da sociedade e suas representações. Não serão, pois, apenas os bons livros que nos salvarão da ignorância. O pior de tudo é, talvez, ler bons livros e continuar ignorante por incapacidade de reflexão. Pensando soberbamente, talvez, que a compartimentalização dos interesses sociais e dos saberes podem sustentar a credibilidade de um discurso maniqueísta por natureza e ausência de princípios. Claro que é através dos livros que o pensamento reflexivo sobre as mais diferentes abordagens cumpre o seu papel. Colabora sim, mas geralmente de um ponto eqüidistante entre o oceano e o pacífico. Por isso a leitura da realidade interessa como ponto de partida para qualquer impulso crítico acerca da aldeia globalizada onde se estabelece o germe urbano.

Não quero com isso diluir o direcionamento das reflexões já realizadas em estudos de grande relevância que foram produzidos pelos mais diversos meios - universitários ou não. Que fique claro! Somente alerto para a insensatez dos que defendem questões específicas de forma descontextualizada. Até porque pensar universalmente significa estabelecer laços sutis, mas seguros, com uma teia incapaz de diluir-se porque guarda os mistérios da existência humana. Fato que muito interessa no debate da realidade, por exemplo, de uma cidade como João Pessoa. Uma cidade tão igual a tantas, litorâneas ou não, com acrobatas violentados pela lógica capitalista da sociedade, exibindo pelas esquinas um futuro atomizado. Uma cidade que ruge pelos becos, cuja cartografia social preocupa os que preferem pensá-la com dignidade e respeito. Mas, a realidade está aí, batendo as tamancas, como se diz. Tudo a ser transformado, transborda. Lutamos contra a impunidade num país onde um juiz criminoso, não vai para a cadeia. É condenado ao prêmio de uma aposentadoria com vencimentos integrais. Lutamos por políticas públicas para a criança e o adolescente, com conselheiros tutelares sendo acusados pelas esquinas de violar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Lutamos em defesa da vida, muitas vezes, quando se pretende mascarar a violência sofrida, com a religiosidade ditando diretrizes onde o que deveria se fazer valer era o direito justo.

Tenho me deparado com questões relativas à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade social no meu cotidiano. Penso nisso com muita preocupação e partilho meus pensamentos. Não amparado no que ainda não foi feito para sanar essa imensa ferida social que vem de um percurso histórico. Penso que não há como pensar qualquer processo histórico apenas na perspectiva institucional. Porque nesse sentido a cidade já possui parâmetros para gesticular contra um passado em que até o auxílio funeral para famílias carentes era motivo de uma partilha macabra entre os vereadores da bancada servil. Aquela que serve a todos os governos, independentemente do matiz ideológico dos ocupantes dos divinos tronos nas salas refrigeradas, geralmente muito distantes da realidade anterior ao portão de acesso.

Vivemos numa cidade como tantas. Uma cidade com um universo arquitetônico diversificado, mas que apresenta um traçado histórico do poder tanto na sua área urbana, com seus latifúndios de concreto (em contraponto aos casarões tombados e caídos), quanto numa zona rural perdida no sumidouro de um tempo onde a tecnologia colhe mais batatas que as mãos campesinas, rachadas como a terra seca. Não podemos conceber uma política pública para a criança e o adolescente que lave as mãos quanto à desestruturação da família moderna, não mais amparada pelo patriarcalismo. A modernidade comeu os olhos do pai, do filho e do espírito samba. A estrutura familiar das ruas e das periferias, junta (no mais das vezes) a violência com a inocência nos mesmos espaços já violentados pela miséria. Sem a possibilidade de uma reação imediata para uma proteção mínima. Para isso, na cidade, até mesmo alguns setores dos movimentos sociais colaboram com o infortúnio, comercializando apoios políticos e interesses afins.

Este é o contexto aproximado de onde hoje se discute políticas públicas nas cidades brasileiras. Uma caminhada com pegadas recentes, cujas mazelas sempre contaram com conivências de todo tipo para sustentação de um coronelismo com cabine dupla e GPS, pintado de modernidade, mas ainda escancarado diante dos fatos que transbordam pelas esquinas e que fermentam nas comunidades periféricas - e nem tão periféricas assim. O debate frio acerca do preço de cada compartimento relativo às questões sociais, muitas vezes não passam de apelo midiático para quem faz do abandono de gerações inteiras um espelho para vaidades pessoais incompatíveis com o interesse público.

Estamos diante de um lago, com águas rasas, algo turvas, mas correntes. O que espelham essas águas reflete-se na areia do fundo. Por isso penso que cabe tudo nesse debate, menos a hipocrisia que pula a cerca e se agiganta num país que de dois em dois anos vai às urnas na tentativa de construir uma democracia real, esquecendo de jogar luz sobre todos os atores e todos os interesses que existem por trás das tradições burguesas, profundamente enraizadas no Nordeste e em capitais como João Pessoa que, neste artigo, vem sendo citada como referência de uma circunstância global que atinge de La Paz e Feira de Santana à Teerã, onde grupos comandados por aiatolás fascistas e assassinos saem pelas ruas vitimando pessoas inocentes de todas as idades.

Logicamente que não se esgotam por aqui as possibilidades de análise da questão. Existem outros vetores do mesmo naipe, como os canais que são concedidos por interesses que raramente levam em consideração o papel da comunicação na educação das populações acerca dos seus direitos. Porque o que irá transformar a sociedade não é governo algum. Os governos podem, no máximo, atrapalhar pouco para que a sociedade se organize melhor em busca dos seus direitos e deveres. A cesta básica cuja falta exibe a desnutrição de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, banca a sustentação do luxo e da ostentação como princípio de vida em algumas casas grandes e mesmo em confortáveis senzalas. Este é o meu ponto de partida para pensar qualquer questão relativa às mazelas cuja responsabilidade é de todos e todas. Até mesmo dos irresponsáveis que nada mais fizeram que maquiar uma realidade social que cada vez se degrada com maior virulência e velocidade. Marx dizia que só a verdade é revolucionária. Cristo dizia que a verdade é a vida. E isso não é outra coisa se não a tentativa de elucidação permanente do próprio conceito de verdade. Mais do que sempre se faz necessário ao enfrentamento dos que defendem a cultura dos que dominam pelo asco, o contraponto de uma realidade que vem produzindo gerações e gerações abandonadas ao relento de mudanças de moscas em cenários fétidos que, comumente, não mudam de lugar para não mudar absolutamente nada. Como diz Caetano Veloso*, “eu não sou religioso. Mas desejo mudanças do tamanho de milagres. As mudanças que tenho visto desde a minha adolescência são muito rápidas e muito grandes para que os mais letrados entre nós só repitam que não andamos”. É um erro grosseiro pensar que na base da pirâmide social essas mudanças dependem fundamentalmente dos governos. O que a sociedade produz em termos de mudanças vem dela própria, dos abalos sísmicos das suas próprias diferenças e da capacidade cada vez maior de movimentos sociais amparados no pensamento, na reflexão e não apenas em interesses, no geral, muito particulares.


* em entrevista à Revista Cult número 135

2 comentários:

Joana Belarmino disse...

Excelente reflexão. Cada palavra, substantiva, exata, como um dedo apontado para cada um de nós. Gostei muito, Lau.

Unknown disse...

Coletivo representa pluralidade, então eu penso que é isso: o maior número de pessoas refletindo e agindo em favor da multidão. Cada um a seu jeito, cada um de acordo com sua capacidade, independentemente de pertencer à essa ou àquela "classificação social".
Obrigada, Lau.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...