domingo, 24 de abril de 2011

Mário Quintana: A ABL VIROU UM DEPÓSITO DE MINISTROS

Mário Quintana na rede.
Por Lau Siqueira

Em janeiro de 1987 eu estava em Porto Alegre visitando a família com minha filha Mariana ainda bebê, Mayra na barriga da mamãe Joana Belarmino, na época repórter do Jornal O Norte e hoje professora de Teoria da Comunicação da UFPB e Doutora em Semiótica.

Eis que fui iluminado por uma daquelas idéias que eternizam um momento. Convidei Joana para entrevistar o poeta Mário Quintana que acabara de completar oitenta anos. Exatamente na tarde do dia 16 de janeiro pegamos o busão na esquina e partimos para o centro da cidade para aventurar esse encontro com o poeta. Munidos um pequeno gravador e um enorme entusiasmo. Sequer uma máquina fotográfica. Chegamos no Porto Alegre Residence e pedimos para falar com o morador do apartamento 805. Falamos pelo interfone com a secretária de Mário que disse que teríamos apenas meia hora. Com o coração aos pulos subimos até o apartamento do poeta onde nos esperava a secretária que, coincidentemente, tinha sido minha colega de trabalho numa joalheria famosa na época, a Casa Masson. 

Já na entrada percebemos a gentileza e simpatia do poeta. Disse que daria a entrevista apenas porque era para a Paraíba, um estado que gostaria de ter conhecido por conta das afinidades históricas dos gaúchos com os paraibanos. Nos chamou para o quarto dele e pediu três cafés. Se mostrou uma pessoa extremamente simples e alegre. Sua lucidez e seu senso de humor chegaram impecáveis aos oitenta anos. Menos a audição que já não era a mesma.

Conversamos um bocado. Além de conceder-nos a entrevista, Mário nos ofereceu muita amabilidade. Falamos da vida, de poesia e rimos bastante com as “tiradas de onda” do poeta sobre tudo e todos. Quando íamos saindo, Mário me pegou pelo braço e disse, com seu denso sotaque alegretense:

- “Vem cá, vou te mostrar uma coisa que não mostro para ninguém.” (Com cara de quem mostrava pra todo mundo.) Curioso, segui aquele menino de oitenta anos. Joana que é cega de nascença, permaneceu sentada na cama do poeta. Quando chegamos na porta, pensei que ele fosse pegar algo, mas ele fechou a porta e me mostrou o lado de dentro com um imenso painel de fotografias da sua musa, Bruna Lombardi. Às gargalhadas, Mário me disse que algumas pessoas pediam para ele explicar aquilo e isso o aborrecia:

- "Que coisa chata, como é que eu vou explicar uma amizade? Acho também que a amizade é um tipo de amor que não acaba nunca". Então nos despedimos, descemos, pegamos o busão e fomos direto para a casa da minha irmã com aquela preciosidade na bolsa: uma entrevista super exclusiva com o baita poeta Mário Quintana, em fita cassete. Caracas, eu nem acreditava! Quando chegamos em João Pessoa, depois de datilografá-la (porque naquele tempo os tempos eram outros), entregamos a preciosidade ao editor do Jornal O Norte, Carlos Cesar, que publicou-a na íntegra na mesma semana. Logicamente, com um texto de abertura de Joana Belarmino. O mesmo Jornal O Norte republicou partes da entrevista quando Mário morreu. O Jornal A União, também da Paraíba, mais tarde republicou a entrevista. Um outro jornal, de Goiás (Diário da Manhã), através do poeta e amigo Luiz de Aquino, anos depois, também reproduziu nossa preciosidade. Da mesma forma, o jornal Alto Madeira, de Porto Velho-RO, através do amigo, poeta e jornalista Selmo Vasconcelos, sobrinho do autor de Meu Pé de Laranja Lima, o escritor José Mauro de Vasconcelos.

Mas, minha memória, por algum motivo, não resgatou apenas esta preciosa entrevista com este grande poeta gaúcho, colhida dos meus arquivos pessoais. Lembrei, por algum motivo, da imagem do próprio Mário Quintana na passeata do Jornal Correio do Povo, alguns anos antes, quando o jornal entrou em crise e fechou. Era, seguramente, um dos melhores jornais do país. Lá estava ele – que se dizia apolítico -, segurando uma faixa!

Também lembrei da notícia de despejo do poeta, então desempregado pelo Correio do Povo. Ele morava no antigo Hotel Magestic. A comoção popular foi grande e, dizem (não tenho como confirmar isso), um famoso jogador de futebol acolheu o poeta no Porto Alegre Residence. Por aquelas imensas ironias do destino o Hotel Magestic se transformou num dos mais charmosos equipamentos culturais de Porto Alegre: a Casa de Cultura Mário Quintana.

Senti vontade de reviver esses momentos e dividir com os amigos, através do meu blog, A Barca, onde publico alguns artigos sobre temas diversos. Com Mário Quintana inauguro também uma nova fase do blog, publicando entrevistas com escritores e outros artistas. Desde que citada a fonte e os autores da entrevista. Por se tratar de um material que julgo importante para a Poesia Brasileira e que deve ter o acesso democratizado, autorizo a reprodução e solicito que, se possível, me encaminhem uma cópia ou link.

Entrevista concedida à Joana Belarmino e Lau Siqueira tarde de 16 de janeiro de 1987, no Porto Alegre Residence.
Manchete no jornal paraibano O Norte, na época:
Mário Quintana: A ABL virou um depósito de ministros
Aos 80 anos, o poeta está mais avesso à Academia

P - Existe alguma pergunta que os jornalistas sempre fazem e que você considera chata?
MQ - Não. O que existe é uma pedida chata. Há pessoas que dizem, por exemplo: "Seu Mário, faz uma dedicatória bem poética pra mim... Olha, o que eles entendem por poética me deixa horrorizado.

P - Quando foi que a poesia entrou na sua vida?

MQ - Eu comecei a fazer versos desde que me entendi por gente. Eu acho que ser poeta não é uma maneira de escrever é uma maneira de ser. Assim como nascem pessoas de olhos azuis ou pretos, nascem também os poetas. Mas eu só publiquei mesmo o meu primeiro livro muito mais tarde. Os poetas novos tem ânsia de publicar logo. Eles deveriam esperar ficar mais amadurecidos pela vida, não é? E assim, iriam amadurecendo também o seu instrumento, que são as palavras. O poeta quando mais velho tem tendência de ficar melhor, com o estilo mais depurado. Viveu mais, não é?

P - Você acha que Mário Quintana já está pronto, é um bom poeta?

MQ - Olha, eu sou m eterno aprendiz. Porque o poeta que descobre uma fórmula, ganha renome, não quer outra vida e fica conversando com os amigos sentado em cima do muro sem se espetar, esse está perdido, porque eu acho que a poesia não é mais que a procura da poesia, como acho que também Deus se resume na procura de Deus. Eu publiquei meu primeiro livro aos 34 anos. Foi "A Rua dos Cataventos".

P - O que você acha da velhice?

MQ - Eu acho que é uma pena. Só que eu queria ter nascido 40 anos antes, e não oitenta anos antes (risos). Tudo isso eu já vivi, sabe? Quando o diabo me chamar eu já estou pronto.

P - Você já viveu oitenta anos. O que é que mudou em Porto Alegre desse período pra cá?

MQ - Olha, naturalmente o que mudou foi a arquitetura, não é? Eu vejo sempre uma cidade dentro da outra e lembro aquela cidade antiga. Mas, pra me lembrar dela eu tenho que fechar os olhos (risos). Porto Alegre, antigamente, era muito mais calma. Não havia tantos assaltos, tanta violência... Eu nasci no tempo das vacas gordas. Antes, o leiteiro deixava o leite na porta de casa e ninguém roubava. Hoje roubam até as galinhas dos despachos. Os tempos mudaram, os costumes, mas a vida continua a mesma. Eu não sou como aqueles velhos que dizem: "Ah, os bons velhos tempos..." eu tenho vontade de dizer para eles: "Olha seu moço... seu moço, não, seu velho. Os tempos são sempre bons, o senhor é que não presta mais... (risos).

P - Você continua a escrever poesia com freqüência? Publicará algum livro este ano?

MQ - Olha, eu não sei fazer outra coisa na vida. Este ano vou publicar dois livros: Um diário poético, com pensamentos sobre cada dia. No dia universal da mulher, por exemplo, eu escrevi o seguinte: " De cada dois gambás - eu não sei se na Paraíba se usa a palavra gambá para se definir um bêbado - um é porque não tem mulher e o outro é porque tem. (risos).

P - Já se tentou três vezes colocar o seu nome na Academia Brasileira de Letras e não se conseguiu. Qual é, agora, a sua relação com a Academia?

MQ - As minhas relações com a Academia foram sempre boas, eu sempre me dei com gente de lá. Não estou dizendo que "as uvas estão verdes", mas, na verdade eu nunca quis pertencer à Academia. O pessoal de mentalidade futebolística não se satisfazia com apenas um nome gaúcho no time e achavam que devia ter outro lá. Resolveram me candidatar. Quando me candidataram da primeira vez, eu recebi o recado de um senador, que estava tudo preparado para entrar o Portela, os votos já estavam prontos e que eu deveria desistir... E eu disse para ele, por telefone, que não haveria de desistir porque o pessoal iria pensar que era covardia minha. Seria muita desconsideração de minha parte. Aliás, eu não gosto da Academia e jamais quis pertencer a ela porque a gente perde um tempo enorme recebendo visitantes estrangeiros de valor muito suspeito. Se pensa que ser estrangeiro é grande coisa, que ser francês ou inglês é uma raridade e não é bem assim. Depois, na Academia, se começa a discutir quem vai ser o sucessor de quem, se recebe impressões de toda a parte para se votar e eu acho que isso atrapalha a vida do camarada, não é? Eu acho que ultimamente a Academia virou um depósito de ministros e com o perdão de alguns amigos que eu tenho lá, um asilo de velhos. Mas eu não tenho nada contra a Academia. De fato não há contradição minha em lamentar que não tenha sido eleito porque eu tensionava fazer tudo pela Academia, se fosse eleito. Acho que, antes de tudo, ela deveria ter muita gente jovem. Eu acho que já seria uma renovação e acabava com aquela coisa. Na academia, já não gostaram muito de mim porque dois anos antes da minha candidatura eu tinha dito que a Academia era uma espécie de sociedade recreativa e funerária (risos).

P - Como é o dia-a-dia de Mário Quintana?

MQ - Bem, eu acordo de manhã, vivo de dia e durmo de noite (risos). Não tem nada de especial. Eu escrevo, ando, visito amigos...

P - Mário, cita dois ou três poetas brasileiros que você considera bons.

MQ - Olha, eu não gosto de citar. Eu só citarei um para evitar, depois, emissões inadvertidas ou divertidas. Eu citarei o Carlos Drummond de Andrade que é um dos poetas mais complexos do nosso País.

P - Mário, você fala muito do amor nos seus poemas. Mas, você não se casou, não teve filhos. Como explica isso?

MQ - Talvez porque não tenha tido tempo. Eu andei muito. Antes eu trabalhava em Alegrete, cidade onde nasci. Ali fui prático de farmácia. Mas, quando estava esquentando uma coisa eu mudava para outra. No quarto ano do colégio eu fui reprovado porque só estudava Português, Francês e História. O resto eu nem abria e um dia meu pai disse: "Olha, você não quer estudar. É uma pena, mas, vagabundo não te quero. Vais trabalhar na minha farmácia." E eu fui prático de farmácia por cinco anos. Depois quando ele faleceu, eu fui fazer a única coisa que eu gostava: fui trabalhar de jornalista no jornal O Estado do Rio Grande. Quando as coisas estavam esquentando de novo o Governador mandou fechar O Estado do Rio Grande. Era o Flores da Cunha. Ele era um velho caudilho (risos). Aí fui trabalhar na Gazeta de Notícias, no Rio. Isso em 1936. Estive lá dois anos e aí fui trabalhar na Livraria do Globo. E sempre andando de um lado para o outro. E aí não tive tempo. Como é que vou saber porque é que não casei. Deve ter sido por causa dos astros, né? Vamos culpar os astros (risos).

P - (Joana) - Casou com a poesia?
P - (Lau) - Não, não... A poesia não é um casamento. É um caso, não é?

MQ - Ah... a poesia é um caso mesmo!

P - Quantos livros você traduziu?

MQ - Eu traduzi para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No tempo em que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade! Naquele tempo as comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que hoje. A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete.

P - Que recado você vai mandar para os paraibanos?

MQ - Ah, eu quase fui morar na Paraíba. Porque eu servi na revolução de trinta e quando houve aquela batalha de Itararé (que não houve) eu estava na cidade de Rio Branco, no norte do Paraná. Aí se chegou a um acordo e o tenente, que era da Paraíba, me ofereceu o cargo de tenente-contador. Mas eu disse pra ele que não pretendia ser soldado, nem prosseguir no serviço militar porque preferia voltar para o Sul. Isso aí por um lado foi bom, não é? Porque depois houve um golpe na Paraíba, imagine, eu poderia ter morrido... (risos)

Um poema de Mário Quintana:



Os antigos retratos de parede
Não conseguem ficar longo tempo abstratos.
Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados
Porque eles nunca se desumanizaram de todo.
Jamais te voltas para trás de repente.
Não, não olhes agora!
O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido.
Dessas que a gente inventava para enganar a
Solidão dos caminhos sem lua.

(do livro "Esconderijos do Tempo - composto após os 70 anos de idade)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

II FLIBO afirma vocação cultural de uma Paraíba que pensa e faz

A marcha pela literatura, na II FLIBO.
por Lau Siqueira

Não apenas as pessoas. Também as comunidades, as cidades, os estados, os países... Tudo que pulsa no mundo busca afirmar alguma vocação diante de um futuro cada vez mais competitivo e tribalizado. A cidade de Boqueirão, com a realização da sua II Feira Literária (II FLIBO) aponta um novo caminho, um novo modo de desenvolvimento que pode e deve esternder-se à outras cidades do interior paraibano. Não são poucas as provocações históricas que sinalizam nesta direção. Isso nos faz, também, acreditar que a questão central do conceito de sub-desenvolvimento está na forma colonizada de pensamento que nos foi imposta década após década. O pensamento do outro, o sentimento do outro, o costume do outro... ou melhor: a educação da Europa; o cinema americano; a literatura francesa; a música inglesa; a tecnologia japonesa... Quanto mais distante mais valioso, ainda que seja este um valor bastante duvidoso tantas vezes. Nesta forma sub-desenvolvida que alguns preferem por se tratar de um modelo de fácil dominação política há uma pré-disposição em pensarmos que tudo que os outros fazem é melhor. (Tudo nos EUA é melhor. Tudo em São Paulo é melhor. Tudo em Pernambuco é mais interessante.) Se não pecebermos o montante de interesses que envolve essa aniquilação das identidades e possibilidades regionais, a história não nos perdoará. Nós somos sujeitos do nosso destino e isto está posto até mesmo no que pode ser considerado pelos incautos “um simples evento literário.”

Depois do Encontro de Literatura Contemporânea realizado em Campina Grande, durante o carnaval, da II FLIBO, em Boqueirão, de 24 a 27 de março, do V Celebrando os Anjos de Augusto que acontecerá no dia 19 de abril em Sapé e do tradicional Festival de Poesia de Aparecida, já podemos arriscar a idéia de que a Paraíba começa a perceber que a sua tradição cultural pode vir a ser, num prazo mais curto que se imagina, a sua mais poderosa “indústria”. Não é segredo que a chamada Indústria Criativa, ou seja, a indústria do conhecimento, movimenta 7% do Produto Interno Bruto – o PIB mundial. A Inglaterra saiu na frente e no governo Tony Blair fundou o seu Ministério das Indústrias Criativas que movimenta bilhões de Euros e emprega e remunera muito bem obrigado milhares de cidadãs e cidadãos ingleses.

Citamos apenas alguns eventos de literatura que se situam dentro de um contexto bem mais largo e complexo porque este seria, provavelmente, um dos elos mais frágeis na cadeia produtiva da cultura da Paraíba. O fato é que na sua segunda versão a FLIBO já começa a ganhar uma razoável visibilidade através da mídia espontânea, das redes sociais, do fenômeno dos blogs e de portais muito conhecidos como o Overmundo. Muitas pessoas do país inteiro ligadas à literatura e aos movimentos culturais, por esses meios principalmente, já tomaram conhecimento que uma cidade do Cariri Paraibano aposta num evento literário de qualidade como um dos vetores especiais do seu desenvolvimento.

A II FLIBO começou com uma palestra do reconhecido escritor brasileiro, o paraibano Bráulio Tavares e terminou com uma aula-espetáculo de um escritor que é uma das maiores legendas da cultura brasileira, o também paraibano da gema, nascido no Palácio da Redenção, Ariano Suassuna. Somente a presença de Ariano Suassuna no evento já demarca para Boqueirão um terreno fértil dentro da teia de eventos literários brasileiros. Banido durante décadas da vida cultural do Estado, Ariano começa a reconquistar a sua cidadania paraibana e recompor os vácuos de uma história contada por interesses de facções coronelistas. Quem ganha com isto é a Paraíba que recebe de braços abertos um dos seus mais ilustres frutos. O Estado ganha também por vivenciar nesse momento histórico a certeza de novos tempos. Percebe-se que novas idéias estão semeadas. Certamente que não para esquecer o passado, mas para escancarar as portas do futuro.

Um evento que soube cativar escritores de outros estados e, ao mesmo tempo, acolher a efervescência da nova cena literária que está posta na terra de José Lins do Rego e Augusto dos Anjos, não precisará de maiores justificativas para captar o futuro. A FLIBO trouxe para o centro do debate a questão das novas linguagens criadas a partir da literatura eletrônica e das novas mídias. Também as tradições populares e os anseios dos novos escritores. Até mesmo a estética que não exclui possibilidades e não perdoa vaidades. Estamos tratando de um festival de literatura que nos mostrou, sobretudo, como dialogar com o seu tempo e com a sua circunstância.

Realizado pela Prefeitura Municipal de Boqueirão, através da sua Secretaria Municipal de Cultura, a FLIBO nos mostra que o desenvolvimento da educação e da cultura nas diferentes regiões do mundo, dependerá sempre da visão de futuro dos governantes e da capacidade de mobilização da sociedade. A Associação Boqueirãoense de Escritores – ABES que, na verdade, colocou a mão na massa para garantir a realização do evento, teve habilidade de sobra para trabalhar articuladamente com instituições como o Governo do Estado da Paraíba, através da Secretaria de Cultura, com movimentos literários paraibanos como o Grupo Caixa Baixa e o Núcleo Literário Blecaute, mas também com o SEBRAE e outros parceiros. A ABES soube ainda mobilizar escritores pessoenses que, com apoio da Fundação Cultural de João Pessoa – FUNJOPE, estiveram presentes e atuantes, seja participando das mesas, lançando obras ou aproveitando este importante espaço de trocas de saberes que tanto contribuem com Boqueirão quanto adensam o olhar dos visitantes.

MARCHA PELA LITERATURA

Um dos pontos altos da Feira Literária de Boqueirão foi o envolvimento das escolas do município. Seja nas oficinas ou em momentos de extrema singularidade como a simbólica Marcha pela Literatura, onde os organizadores e organizadoras souberam constituir elementos de sedução junto ao alunado trazendo para as ruas personagens da literatura de Monteiro Lobato e dos clássicos da literatura mundial. Esta marcha deu uma característica conceitual à FLIBO, ao apontar para a necessidade de incentivarmos políticas de leitura nas escolas. Um fator estruturante para formação das futuras gerações de cidadãos e cidadãs do Cariri Paraibano e de outras regiões. Marcel Proust, em texto sobre a importância da leitura, afirmou que as melhores lembranças da nossa infância são as imagens que colhemos nos livros. Já o poeta gaúcho Mário Quintana costumava dizer que “o pior analfabeto é aquele que aprendeu a ler e não lê. O fato é que o elo com as políticas da Educação apontam um caminho que será determinante para a estruturação um futuro mais pleno em sabedoria e cidadania.

PREPARANDO A III FLIBO

Os escritores e escritoras que fazem parte da ABES e que, na verdade, fazem parte também de um movimento espontâneo que contamina a Paraíba inteira, já devem estar pensando no formato que darão ao evento no próximo ano. Na verdade, a segunda edição de um evento é sempre a sua afirmação. As futuras gerações saberão agradecer, como hoje a cidade de Porto Alegre agradece aos que criaram e sustentaram a tradição que já caminha para a sexagésima edição da sua Feira do Livro, atualmente, a maior feira de livros ao ar livre da América Latina. A FLIBO começa a dar os primeiros passos de forma muito segura quanto ao seu papel no desenvolvimento econômico, social e cultural da cidade e do Estado. O cenário está pronto: Boqueirão mantém uma Orquestra Filarmônica entre cordéis e cantorias, grupos de boa referência como o Kiriri Jazz Band, além de fomentar a maior tradição musical brasileira, o chorinho, bem como outras tradições do povo do Cariri.

A FLIBO afirma as políticas públicas de cultura que conduzirão pelos melhores caminhos os que hoje não conseguem ainda dimensionar a importância para as suas vidas de um ato público com a dimensão da Marcha pela Literatura. Estabelecendo diálogos com as novas tecnologias, com as mídias digitais que já não fazem mais parte do futuro e com a história da literatura que, como afirmam alguns teóricos, não possui grau de evolução, pois afirma-se através do tempo nas suas melhores tradições. Abrindo as portas para as mais densas colheitas da intelectualidade lusófona e para a imensa diversidade cultural da região, Boqueirão em pouco tempo será conhecida nacionalmente pela FLIBO e por iniciativas semelhantes que a sua Secretaria de Cultura vem semeando com a dedicação de quem acredita na cidade.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O carnaval das letras.

Núcleo Blecaute realiza pelo segundo ano consecutivo um significativo encontro literário

por Lau Siqueira
A palavra colombina e a palavra pierrot acumularam singularidades em suas fantasias para as cinzas deste carnaval 2011. A cidade de Campina Grande, nacionalmente conhecida por realizar o Encontro Para a Nova Consciência no período momesco misturou aos debates esotéricos, às manifestações religiosas e às cultuações do xamanismo, um ousado empreendimento de jovens literatos da Rainha da Borborema. Foi a perseverança e a credibilidade do Núcleo Blecaute de Literatura que possibilitou pelo segundo ano consecutivo um evento que remete ao futuro discussões sobre a literatura feita na terra de Augusto dos Anjos e José Lins do Rego. Idéias e conceitos estéticos, políticas públicas para o livro e para a leitura, articulação entre eventos literários paraibanos, novas tendências da literatura paraibana... Debates qualificados e oportunos que impulsionam a literatura paraibana para o mundo.

O “II Encontro de Literatura Contemporânea – Entre escritores e editores, a trajetória dos livros” coloca definitivamente a maior cidade do interior da Paraíba na rota dos diálogos da literatura contemporânea brasileira. Uma rota que começa a se solidificar no Estado com a abertura de novos caminhos, com o envolvimento de novos atores de uma cena que já desperta a atenção do Brasil. O Encontro de Campina Grande não nasceu isoladamente. Nasceu e cresce dentro de um contexto que absorve uma interação absoluta com o que está sendo fruto do empreendedorismo e da ação militante de escritores, “novos e usados”. Em Campina Grande pudemos conferir uma importante articulação estadual a partir de representações nos debates e nas platéias, de escritores e agentes literários de Boqueirão, Nova Palmeira (terra de Zila Mamede), João Pessoa, Sousa e outras cidades do Estado - e até de fora. Sobretudo uma nova mentalidade acompanha os novos escritores e produtores da Paraíba. Além da maturidade no manejo com a linguagem destaco a coragem de abandonar o tradicional e corrosivo culto aos desolados umbigos. Começamos a perceber a tendência para uma ação mais coletiva e mais efetiva que propõe, que empreende e que sustenta debates que vão da produção literária e editorial, passando pelo mercado do livro, pelas políticas públicas para a literatura, chegando às práticas cotidianas de projetos de incentivo à leitura como o projeto Biblioteca Livro em Rodas. Ou seja: os eventos partem do princício de valorização do nascedouro e da finalidade da cadeia produtiva do livro, valorizando sobremaneira autor e leitor.

Com uma programação bastante diversificada e solidamente construída, discutindo desde a psicologia de um escritor, com palestra agradabilíssima do escritor, psicanalista e professor da UFPB, Ronaldo Monte ao desafio de trazer para a cena um aspecto ainda não de um todo resolvido na literatura: a questão de gênero e a identidade estética do discurso feminino, com os acúmulos e o talento da escritora, tradutora e professora da UEPB, Vitória Lima. Aliás, este é um dos debates que certamente renderá investigações para além do II Encontro, uma vez que é por demais conhecida a exclusão da mulher na história da literatura. Um dos aspectos a ressaltar neste sentido é o fato de contarmos ainda com uma presença tímida das mulheres no mundo das letras, mesmo aqui na terra da ousada e modernista Anayde Beiriz, a nossa Pagu. Avanços significativos estão apontados no evento, por certo, se pensarmos que ainda no final do século XIX algumas mulheres escreviam com pseudônimo masculino para que pudessem ser aceitas no contexto da época. E se pensarmos o século XIX dentro da história da literatura, estaremos simbolicamente falando da “semana passada”.

Um dos pontos centrais do evento foi a proposta de articulação que vem sendo empreendida por grupos de escritores, seja do núcleo Blecaute que produz uma revista que já nasceu no melhor padrão do jornalismo literário brasileiro, seja do grupo Caixa Baixa que apesar da curta existência já desponta com um diferencial enorme ao ter nascido propondo o necessário debate acerca do contexto atual da literatura paraibana e brasileira. Algo que espeta em saudável provocação a tentativa de acomodação de determinadas situações, consagrando paralisias e estimulando uma falsa idéia de fim da história.

O evento nos mostrou que existe uma efervescência e uma inquietação que consideramos de suma importância para a consolidação do Estado da Paraiba no cenário nacional da literatura. Estamos vivendo o que podemos chamar de “pré-plenitude” da era das redes sociais e da literatura eletrônica. Ao mesmo tempo temos a configuração de um processo que trouxe para o centro do debate nomes importantes como o professor da UFPB e ficcionista Rinaldo Fernandes, com amplo prestígio nacional e com plena disposição para resgatar a idéia de circulação de escritores nordestinos como forma de fomentar, dentro do mercado do livro, a renovada tradição literária de estados como Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco e outros que sempre se mostraram celeiro da literatura brasileira nos poucos séculos de história que possui a nossa melhor tradição.

Em dois dias de atividades e densa programação, com excelente participação de público e com temas bem posicionados dentro do debate nacional, o Núcleo Blecaute de Literatura, formado pelos escritores Bruno Gaudêncio, Jã Macedo e João Matias de Oliveira, editores da revista Blecaute (http://sites.uepb.edu.br/revistablecaute/), contou com o fundamental apoio institucional da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB e da ONG Nova Consciência. Assim firmou-se definitivamente na terra que gerou movimentos importantes como o da Revista Garatuja e numa tradição que repercute no cotidiano das feiras, por onde ainda se escuta a cantoria dos poetas populares e se encontra folhetos de cordel que incentivaram o hábito da leitura para uma infinidade de nordestinos.

O evento proporcionou, muito especialmente, as trocas necessárias para uma boa política pública para a literatura em nosso estado. Por exemplo, as experiências administrativas no Memorial Augusto dos Anjos (debate apresentado e conduzido pelo poeta Jairo Cezar), nos ensinaram a acreditar que diante das dificuldades somente a invenção e a perseverança nos permitem seguir em frente. O fato animador de toda esta movimentação é que criou-se, naturalmente, um núcleo de criadores e produtores de eventos literários na Paraíba, partir do interior do Estado, unindo-se e estimulando a produção da capital, até então, com maior visibilidade dentro dos meios literários brasileiros. Estamos, pois, melhor cacifados para solidificar no estado a presença de eventos importantes como o Salão internacional do Livro que em outubro realizará sua segunda edição. Estamos preparados para dialogar com o Brasil de igual para igual com os mais destacados segmentos da literatura. Estamos caminhando para consolidar um processo formativo para o povo paraibano e que influirá positivamente na geração de trabalho e renda, fomentando a economia, no debate sobre a educação e a cultura que irá nos distanciar cada vez mais de uma mediocridade que vai ficando relegada, felizmente, ao lixo da história.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A distância entre o autor e o leitor na cadeia produtiva do livro

Por Lau Siqueira


É certo que a existência de políticas públicas é algo inegociável. Todavia é um pouco demais pensarmos que somente através de políticas públicas encontraremos o nirvana social e cultural do nosso país e do mundo. Os governos fazem parte da sociedade, mas nem sempre são representativos das classes dominantes, ou seja, do poder enquanto relação de classe. Nas discussões sobre a cadeia produtiva do livro e as políticas públicas de acesso ao livro e a leitura, nos deparamos com alguns paradigmas que precisam ser superados. O primeiro deles é que a existência de políticas públicas para o livro e para a leitura seja a salvação de uma “lavoura arcaica” tão irrigada quanto o mercado do livro. Precisamos não confundir as coisas. Quando falamos em políticas públicas para o livro e para a leitura, precisamos estar atentos a um fator determinante neste debate: quase sempre quem dá o ponta-pé inicial para a cadeia produtiva do livro e da leitura (o escritor ou a escritora) fica fora do debate. O mesmo destino é dado ao ponto final da mesma cadeia produtiva: sua excelência o leitor. Desta forma os meios se abastecem dos fins. Em alguns debates sobre o livro e a leitura, temos a impressão que os livros são geridos por “incubadoras criativas”. O desprezo com que um autor fora do mercado é tratado, por exemplo, pelas livrarias, coloca o assunto num estado de alerta máximo no momento em que esse debate aflora em diversos fóruns. É como se mesmo um livro que esteja fora do mercado formal, não estivesse contribuindo com a lucratividade da mesma cadeia produtiva.

Nesse debate sobre a cadeia produtiva do livro, ou buscamos um tratamento global das questões ou estaremos definitivamente perdidos nas particularidades, nos interesses sempre muito individualizados e lacrimosos de todos os lados envolvidos. A relação chega a ser estranha em certas ocasiões. Enquanto alguns grupos empresariais do setor reclamam dos parcos lucros, a maioria dos autores paga caro para existir socialmente dentro da mesma cadeia produtiva. Precisamos de um ponto de partida: as políticas públicas para o livro e para a leitura não podem se resumir na ação de engorda dos lucros de um mercado que não pode se queixar de subnutrição, como o mercado do livro. Os números desse mercado hoje nos fazem refletir sobre os investimentos públicos para a área, a gestão das políticas de leitura e os altos índices de analfabetismo real e funcional.
Precisamos começar a inverter esse debate. Não podemos apenas cair na esparrela de cobrar obrigações dos cofres públicos em suprir a insaciabilidade do mercado do livro. Mesmo com a isenção dos impostos concedida pelo governo o livro continua sendo um artigo de luxo. A contrapartida do mercado seria anatural queda no preço de capa dos livros e a criação do Fundo Nacional do Livro, Leitura e Literatura. Passados sete anos, nada disso foi cumprido. Será que é somente do poder público a obrigação de formar leitores e, conseqüentemente, clientes para esse comércio Cult? O mercado do livro faz parte de um setor que tem despontado com bastante vigor na economia mundial, abrindo alas para um debate sobre a realidade da festejada “economia criativa”. Na Inglaterra esse vetor já foi plenamente reconhecido pelo governo a partir da criação, pelo Primeiro Ministro Tony Blair, do Ministério das Indústrias Criativas, um nicho que está movimentando cerca de 7% da economia inglesa, empregando de forma satisfatória boa parte da população economicamente ativa. É dentro desse nicho que se abriga o coro dos descontentes livreiros, ainda que boa parte não esteja realmente preocupada com qualquer processo criativo, uma vez que se sustenta com Best Sellers, auto-ajuda e outras jazidas de mau gosto. Portanto já está mais que na hora, também, de cobrarmos desse mercado uma relação mais civilizada com as duas pontas da cadeia produtiva do livro: o autor e o leitor. Se o respiradouro do empresariado livreiro depende do poder público, sem gerar qualquer efeito cascata no destino dos seus lucros, alguma coisa está errada. Se o mercado é lucrativo e os livreiros, editores, escritores e leitores estão falidos, o desastre está desenhado. Por outro lado, se vamos mesmo discutir o mercado do livro, precisamos discutir dentro dele os fatores que mais nos interessam: o autor, o leitor, a responsabilidade social e intelectual da atividade e, conseqüentemente, a necessária contrapartida ao investimento público num mercado que não pára de crescer e que pouco ou nada devolve para a população, até mesmo com relação a “sensibilidade” nas tabelas de preços.

Os escritores precisam estar mais atentos e engajados nesta realidade. Afinal, a criação literária deve receber todos os investimentos intelectuais do autor, mas o livro (e muito especialmente o livro dos autores descredenciados pelo apartheid do mercado) não pode ser tratado como um girino perdido numa rasa poça d’água. Esta realidade é vislumbrada aqui em João Pessoa, mas corre o país e não é diferente em outros rincões do mundo. Precisamos começar a discutir formas de contrapartida que incluam o autor na promoção do livro e da leitura. Logicamente que isso irá resultar em formação de público para o mercado do livro, mas também irá contribuir para a formação de uma cidadania crítica e atenta aos seus direitos e deveres. Tudo na espessura do óbvio: o autor é o principal instrumento de divulgação do livro. Logo, desprezá-lo é um ato de insanidade e comodismo de um mercado balofo, cujo foco não passa do departamento financeiro das secretarias de educação. Optaram pelo fácil e não pelo que seria simples e politicamente aceitável.

Estamos vivendo momentos especialíssimos. A economia brasileira vai muito bem obrigado. Avançamos firmes para nos tornarmos a quinta economia do mundo. Mas esse fator, isoladamente, não nos diz absolutamente nada. Desejamos que esse crescimento se dê em patamares menos desiguais dos que hoje determinam as misérias e as fortunas do país. Interessa-nos sim ver crescer o mercado do livro. Mas, alguns fatores precisam entrar em pauta. Entre eles a responsabilidade social das grandes editoras que faturam fortunas na venda de livros para o setor público. A visão fragmentada deste universo poderá nos deixar dormindo de touca dentro do redemoinho que balança a Bolsa de Valores e que sustenta ostentações infecundas de uns poucos. Precisamos colocar no debate os conteúdos desse produto, pois, somos consumidores e ainda pagamos duplamente com a destinação dos nossos impostos. O avanço necessário nesse debate, então, exige a presença insubstituível dos autores que se estabeleceram como fator de germinação desse mercado, repito, muitas vezes bancando suas próprias obras e até mesmo a circulação delas, formando em torno de si um ínfimo mercado cuja utilidade é diminuir substancialmente a fatalidade dos prejuízos de publicar um livro. Claro que para um autor seja ele jovem ou experimentado, este investimento é inevitável. Mas, também se faz imprescindível o debate acerca de um setor que se coloca como vítima e na verdade vai vitimizando a cidadania cultural de cada um de nós. O acesso ao livro continua amparado em um rosário de desculpas.

O que está posto nos revela que o contrato (formal ou informal) entre os livreiros e os autores (seja qual for o grau de popularidade) precisa ser racionalizado de forma a estabelecer uma relação mais justa e mais profissional. O debate sobre o livro e a leitura não pode naufragar em reações corporativas. Seja de autores, editores, distribuidores, livreiros, gráficos, críticos, etc.. Existe uma profundidade a ser explorada na evolução cultural do nosso povo. O livro significa (ou deveria significar) literatura em termos de criação, de invenção literária. O livro não pode ser um naufrágio enquanto instrumento de negociação dos interesses entre a sociedade (ou setores dela) e os governos. Aliás, a democracia se constrói com questionamentos e não com absolutismos. A evolução de uma sociedade se dá na medida em que se aprofundam as construções do debate democrático, inclusivo que consiga diluir as distâncias entre a lucratividade do mercado do livro e a eliminação do analfabetismo funcional, por exemplo. Portanto, se vamos discutir o mercado do livro, vamos deixar claro que temos interesses. Até para não misturar Paulo Coelho com Machado de Assis. Sobretudo nós, escritores, temos fome desse debate, mas temos também muito nítida a responsabilidade de não fazer concessões ao chamado gosto público, às unanimidades construídas por conta de relações que não se dão exatamente com a palavra.

No momento em que os eventos ligados ao livro são amparados muito mais pela relação com os governos que com os desafios postos pela sedução de um público leitor, queremos debater as contrapartidas para que estejamos fomentando, verdadeiramente, uma civilização e não corroborando com a barbárie que bate nos portões do castelo onde guardamos os nossos sonhos. Não podemos cair na tentação do argumento fácil. Estamos na era das velocidades. Existe uma realidade canônica evolutiva na literatura universal. Encontramos um Rimbaud tatuado em cada lan house alimentando um blog ou escrevendo versos no Orkut. Um Rimbaud que precisa ser educado por uma realidade onde o livro não seja um mero produto de prateleira, vendido no peso da capa, como mercadoria que hoje disputa espaço com pacotes de feijão e arroz e farinha nos supermercados. Estamos querendo exatamente discutir, se não uma civilização, pelo menos uma relação mais civilizada ou menos autofágica dentro da consagrada e manhosa república do livro e seus mercadores. Mas, não há como resistir a essa sensação que está tudo sempre começando e recomeçando o tempo todo. Queremos avançar.

Lau Siqueira, poeta gaúcho radicado na Paraíba. lausiqueira@gmail.com

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A distância entre autor e leitor na cadeia produtiva do livro

Por Lau Siqueira


É certo que a existência de políticas públicas é algo inegociável. Todavia é um pouco demais pensarmos que somente através de políticas públicas encontraremos o nirvana social e cultural do nosso país e do mundo. Os governos fazem parte da sociedade, mas nem sempre são representativos das classes dominantes, ou seja, do poder enquanto relação de classe. Ultimamente, nas discussões sobre a cadeia produtiva do livro e as políticas públicas de acesso ao livro e a leitura, nos deparamos com alguns paradigmas que precisam ser superados. O primeiro deles é que a existência de políticas públicas para o livro e para a leitura deva ser a salvação de uma “lavoura arcaica” tão irrigada quanto o mercado do livro. Precisamos não confundir as coisas. Quando falamos em políticas públicas para o livro e para a leitura, precisamos estar atentos a um fator determinante neste debate: quase sempre quem dá o ponta-pé inicial para a cadeia produtiva do livro e da leitura (o escritor ou a escritora) fica fora do debate. O mesmo destino é dado ao ponto final da mesma cadeia produtiva: sua excelência o leitor. Desta forma são os meios que se abastecem dos fins. Em algumas discussões sobre o livro e a leitura, temos a impressão que os livros são geridos por “incubadoras criativas”. O desprezo com que um autor fora do mercado é tratado, por exemplo, pelas livrarias, coloca esse debate num estado de alerta máximo no momento em que esse debate aflora em diversos fóruns. É como se um livro que esteja fora do mercado formal, não estivesse contribuindo com a lucratividade da mesma cadeia produtiva.

Nesse debate sobre a cadeia produtiva do livro, ou buscamos um tratamento global das questões ou estaremos definitivamente perdidos nas particularidades, nos interesses sempre muito individualizados e lacrimosos de todos os lados envolvidos. A relação chega a ser estranha em alguns casos. Enquanto alguns grupos empresariais do setor reclamam dos parcos lucros, a maioria dos autores paga caro para existir socialmente dentro da mesma cadeia produtiva. Precisamos de um ponto de partida: as políticas públicas para o livro e para a leitura não podem se resumir na ação de engorda dos lucros de um mercado que não pode se queixar de subnutrição, como o mercado do livro. Os números desse mercado hoje nos fazem relfetir sobre os investimentos públicos para a área, a gestão das políticas de leitura e os altos índices de analfabetismo real e funcional.

Precisamos começar a inverter esse debate. Não podemos apenas cair na esparrela de cobrar obrigações dos cofres públicos em suprir a insaciabilidade do mercado do livro. Mesmo com a isenção dos impostos concedida pelo governo o livro continua sendo um artigo de luxo. Será que é somente do poder público a obrigação de formar leitores e, conseqüentemente, clientes para esse comércio Cult? O mercado do livro faz parte de um setor que tem despontado com bastante vigor na economia mundial, abrindo alas para um debate sobre a realidade da chamada “economia criativa”. Na Inglaterra esse vetor já foi plenamente reconhecido pelo governo a partir da criação, pelo Primeiro Ministro Tony Blair, do Ministério das Indústrias Criativas, um nicho que está movimentando cerca de 7% da economia inglesa, empregando de forma satisfatória boa parte da população economicamente ativa. É dentro desse nicho que se abriga o coro dos descontentes livreiros, ainda que boa parte não esteja realmente preocupado com qualquer processo criativo, uma vez que se sustenta com Best Sellers e publicações de auto-ajuda. Portanto já está mais do que na hora, também, de cobrarmos desse mercado uma relação mais civilizada com as duas pontas da cadeia produtiva do livro: o autor e o leitor. Se o respiradouro desse mercado depende do poder público, sem gerar qualquer efeito cascata no destino dos seus lucros, alguma coisa está errada. Se o mercado é lucrativo e os livreiros, editores, escritores e eleitores estão falidos, o desastre está desenhado. Por outro lado, se vamos mesmo discutir o mercado do livro, precisamos discutir dentro dele os fatores que mais nos interessam: o autor, o leitor, a responsabilidade social e intelectual da atividade e, consequentemente, a necessária contrapartida ao investimento público num mercado que não pára de crescer e que pouco devolve para a população, até mesmo com relação a “sensibilidade” das tabelas de preços.

Os escritores precisam estar mais atentos e engajados nesta realidade. Afinal, a criação literária deve receber todos os investimentos intelectuais do autor, mas o livro (e muito especialmente o livro dos autores descredenciados pelo apartheid do mercado) não pode ser tratado como um girino perdido na Lagoa do Parque Solón de Lucena, apreciando as águas dançantes. Esta realidade é vislumbrada aqui em João Pessoa, mas corre o país e não é diferente em outros rincões do mundo. Precisamos começar a discutir formas de contrapartida que incluam o autor na promoção do livro e da leitura. Logicamente que isso irá resultar em formação de público para o mercado do livro, mas também irá contribuir para a formação de uma cidadania crítica e atenta aos seus direitos e deveres. Tudo na espessura do óbvio: o autor é o principal instrumento de divulgação do livro. Logo, desprezá-lo é um ato de insanidade e comodismo de um mercado balofo, cujo foco na passa do departamento financeiro das secretarias de educação. Optaram pelo fácil e não pelo simples.

Estamos vivendo momentos especialíssimos. A economia brasileira vai muito bem obrigado. Avançamos firmes na direção de nos tornarmos a quinta economia do mundo. Mas esse fator, isoladamente, não nos diz absolutamente nada. Portanto, desejamos que esse crescimento se dê em patamares menos desiguais dos que hoje determinam as misérias e as fortunas do país. Interessa-nos sim ver crescer o mercado do livro. Mas, alguns fatores precisam entrar em pauta. Entre eles a responsabilidade social das grandes editoras que faturam alto na venda de livros para o setor público. A visão fragmentada deste universo poderá nos deixar dormindo de touca dentro do redemoinho que balança a Bolsa de Valores e que sustenta ostentações infecundas. Precisamos colocar no debate os conteúdos desse mercado, pois, somos consumidores e ainda pagamos duplamente com a destinação dos nossos impostos. Se é verdade que o livro teve os seus impostos subtraídos, também é verdade que o cidadão e a cidadã consumidora de livros, não. O avanço necessário nesse debate, então, exige a presença insubstituível dos autores que se estabeleceram como fator de germinação desse mercado, repito, muitas vezes bancando suas próprias obras e até mesmo a circulação delas, formando em torno de si um ínfimo mercado cuja utilidade é diminuir substancialmente a fatalidade dos prejuízos de publicar um livro. Claro que para um autor seja ele jovem ou experimentado, este investimento é inevitável. Mas, também se faz imnprescindível o debate acerca de um setor que se coloca como vítima e na verdade vai vitimizando a cidadania cultural de cada um de nós. O acesso ao livro continua amoparado em um rosário de desculpas.

O que está posto nos revela que a relação entre os livreiros e os autores (seja qual for o grau de popularidade) precisa ser racionalizada de forma a estabelecer uma relação mais justa e mais profissional. O debate sobre o livro e a leitura não pode naufragar em reações corporativas. Seja de autores, editores, distribuidores, livreiros, gráficos, críticos, etc.. Existe uma profundidade a ser explorada na evolução cultural do nosso povo. O livro significa (ou deveria significar) literatura em termos de criação, de invenção literária. O livro não pode ser um naufrágio enquanto elemento de negociação de interesses entre a sociedade (ou setores dela) e os governos. Aliás, a democracia se constrói com questionamentos e não com absolutismos. A evolução de uma sociedade se dá na medida em que se aprofundam as construções do debate democrático, inclusivo que consiga diluir as distâncias entre a lucratividade do mercado do livro e a eliminação do analfabetismo funcional, por exemplo.

Portanto, se vamos discutir o mercado do livro, vamos deixar claro que temos interesses. Até para não misturar Paulo Coelho com Machado de Assis. Sobretudo nós, escritores, temos interesses nesse debate, mas temos também muito clara a responsabilidade de não fazer concessões ao chamado gosto público, às unanimidades construídas por conta de relações que não se dão exatamente com a palavra.

No momento em que os eventos ligados ao livro são amparados muito mais pela relação com os governos que com os desafios postos pela sedução de um público leitor, queremos debater as contrapartidas para que estejamos fomentando, verdadeiramente, uma civilização e não corroborando com a barbárie que bate nos portões do castelo onde guardamos os nossos sonhos. Não podemos cair na tentação do debate fácil. Estamos na era das velocidades. Existe uma realidade canônica evolutiva na literatura universal. Encontramos um Rimbaud tatuado em cada lan house alimentando um blog ou escrevendo versos no Orkut. Um Rimbaud que precisa ser educado por uma realidade onde o livro não seja um mero produto de prateleira, vendido no peso da capa, como mercadoria que hoje disputa espaço com pacotes de feijão e arroz e farinha nos supermercados. Estamos querendo exatamente discutir, se não uma civilização, pelo menos uma relação mais civilizada ou menos autofágica dentro da consagrada e manhosa república do livro e seus mercadores. Mas, não há como resistir a essa sensação que está tudo sempre começando e recomeçando o tempo todo. Queremos avançar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A relevância dos blogs para a poesia contemporânea

Lau Siqueira
Conforme N. Katherine Hayles, no livro Literatura eletrônica - novos horizontes para o literário, "a literatura do século XXI é computacional". Isso já diz muito acerca das reflexões que pretendemos neste artigo. Afinal, até mesmo os livros impressos são elaborados e revisados virtualmente. Talvez comece aí a desmistificação da importância do livro impresso neste tempo de velocidades virtuais. Houve uma inversão de valores para que se pudesse compreender alguns instrumentos de mídia virtual e a sua devida importância para a literatura. Não são poucos os canais de divulgação da poesia a partir de um instrumento que hoje podemos reconhecer como utensílio doméstico, o computador pessoal. São sites pessoais, canais de relacionamento, grupos de discussão literária. Tudo no espaço físico da sua residência destinado ao computador ou nos giros tridimensionais do lap-top. Todavia, nenhuma outra ferramenta se mostrou tão valiosa para os poetas e para a poesia que os blogs. Não chamaria isso de inversão de valores, mas até mesmo escritores consagrados mundialmente como José Saramago não abriram mão deste instrumento interativo, para uma relação mais aproximada entre o autor e a diversidade de olhares dos mais diferentes tipos de leitor.

Inicialmente reconhecido como uma ferramenta criada para distrair adolescentes ou no máximo para despertar a criatividade de uma geração de nerds, os blogs foram pouco a pouco se transformando em importantes veículos de comunicação interativa, seja para escritores ou para jornalistas, muito especialmente. Nomes reconhecidos da mídia tradicional, nas duas vertentes do conhecimento aos poucos foram ocupando os melhores espaços na blogosfera com blogs dos mais diversos estilos. Podemos afirmar, sem risco de engano, que com o surgimento dos blogs a poesia foi o gênero mais beneficiado entre todos os gêneros da literatura. O fácil acesso e o fácil manuseio desta ferramenta foi naturalmente conquistando escritores reconhecidos ou desconhecidos. Eles foram percebendo que poderiam focar na sua produção ao invés de preocupar-se, também, com o equilíbrio das tags e das ranhuras de uma tecnologia que vem sendo pensada às fatias e desenvolvendo-se de forma surpreendentemente veloz. Certamente que dentro de algum tempo os blogs representarão uma linguagem superada. No entanto, no final desta primeira década do Terceiro Milênio representam a redenção, a democratização e compreensão dos novos caminhos da poesia contemporânea em qualquer parte do mundo.

Certamente ainda é muito importante lançar um livro. Os e-books, neste sentido, parecem longe da possibilidade de superação da “ácaro-mania”. A paixão pelos livros nos tempos em que a banalização inspira cada vez maiores cuidados com as formas e com os conteúdos ainda é a mesma dos tempos de Proust, quando este clássico francês chegou a afirmar que as melhores lembranças da nossa infância estariam nas imagens colhidas da memória dos primeiros livros que tenhamos lido. Mas, o debate acerca do real e do virtual também nos leva a refletir sobre o fato de ser menos danoso ao futuro da humanidade possuir um mau blog do que publicar um mau livro. (A natureza agradeceria o bom senso.) Ocorre que, a preço de hoje, os nomes mais respeitáveis da poesia contemporânea brasileira (e mundial), independentemente do número de livros que tenham lançado, não abrem mão de manter seus blogs literários. Claro que isso não é uma regra, mas evidentemente é uma realidade inquestionável. Isso não ocorreria se possuir um blog não oferecesse imensas vantagens ao escritor, muito especificamente ao poeta.

Mas, como não existe fenômeno significativo que não gere outro igualmente significativo, destacamos um fator afluente do fenômeno dos blogs que também acende a nossa gula investigativa para uma próxima abordagem. Há uma evidente ascensão (talvez até mesmo uma forte influência) de escritores blogueiros sobre outros escritores ou candidatos a escritores também blogueiros. Especialmente poetas cuja produção foi consagrada publicamente através dos blogs chegam a alcançar níveis respeitáveis de trocas com outros poetas. Logicamente que daí não poderemos extrair interpretações óbvias. Não se trata de autores cronologicamente mais antigos influenciando escritores cronologicamente mais jovens. Trata-se de bons escritores, jovens ou não, influenciando ou trocando influências com outros escritores (jovens ou não) a partir das cartas de navegação oferecidas gratuitamente nos oceanos serenos e profundos da web. Este é um tema sobre o qual estudiosos devem estar se debruçando nos cursos de Letras onde o professorado, de um modo geral, não parou ainda para pensar nos efeitos que teria a internet para a época e para a poesia de Arthur Rimbaud, por exemplo, ou para o nosso condoreiro Castro Alves. Afinal, ambos produziram a parte mais significativa das suas obras com a idade da grande maioria dos jovens desbravadores das possibilidades da internet e das suas ferramentas. Portanto, um novo Rimbaud pode estar inaugurando seu blog exatamente hoje, no Acre, por que não?

Este é um fator que não irá gerar uma demanda de pesquisa apenas daqui a dez ou vinte anos. Não haverá, dada a velocidade dos tempos, oportunidade para distanciamento científico. O próprio conhecimento acadêmico não poderá abdicar de um futuro que já começou para refletir sobre o que está em pleno processo e, até mesmo por isso, operando mudanças culturais bastante acentuadas e influenciando comportamentos nas mais diversas áreas. Sobretudo na literatura e mais ainda na poesia que vai, assim, rompendo a aura de marginalidade para se mostrar detentora de uma imensa camada de admiradores que, na grande maioria, são também militantes da invenção nas portas das milhões de fábricas de miolos onde se processa permanentemente a metalurgia da palavra.

Logicamente que não queremos aqui desenvolver um raciocínio definitivo, mas apenas levantar questões relativas ao futuro da poesia a partir de um cânone cada vez mais desmistificado e a partir de uma solução ávida de novas soluções. Mais do que nunca precisamos lembrar a profecia de Cazuza: "o tempo não pára." Estamos no tempo em que trocar a roda de uma locomotiva em movimento pode ser um descaminho inevitável para a consolidação de uma geléia cujas expressões maiores devem ser esculpidas não apenas com os hálitos da delicadeza, mas principalmente com a certeza cada vez mais absoluta que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Esta é apenas uma "levantada de bola" para um assunto que nem de perto se esgota por aqui. Afinal, quem escreve e principalmente quem escreve um poema, seja na idade média ou na idade mídia, apenas inicia um processo que se revela e se traduz de diferentes formas no olhar de quem lê, estendendo-se para além das ferramentas mais avançadas e popularizadas, a exemplo dos blogs.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Os elos perdidos da infância

Lau Siqueira

Há mais de duzentos anos Rousseau afirmou que uma criança não é um adulto em miniatura. Ainda hoje alguns setores imprescindíveis para uma intervenção mais efetiva no drama vivido por crianças e adolescentes de um mundo abandonado possuem dúvidas profundas acerca desta afirmação. Sem eliminar outras interpretações, compreendo que Rousseau quis dizer que as especificidades de uma vida em formação, sem as proteções necessárias, fragilizam a construção dos dias e noites do futuro cidadão ou cidadã. A usurpação dos direitos (e o cínico desprezo pelos deveres) das crianças e dos adolescentes é, seguramente, um assunto que precisa ser encarado como uma calamidade pública nas pequenas e grandes cidades brasileiras. Pensar coletivamente e agir coletivamente é, sem nenhuma dúvida, o único caminho e a estratégia mais eficaz para buscarmos a contenção do tsunami social e existencial que este fato, ainda sem a devida atenção das mais diversas aldeias globais, precisa despertar. Talvez não tenhamos tanto tempo assim para reagir diante de uma realidade que se torna cada vez mais assustadora. Mas, se formos razoáveis o suficiente para refletirmos acerca do tipo de circunstância que estamos gerando e para a necessidade de responsabilidades compartilhadas, ao invés de terceirizadas, teremos alguma chance de reação no enfrentamento do problema.

Apesar da postura pouco atenta de boa parte da sociedade, não nos resta a menor dúvida: estamos diante de um abismo de proporções devastadoras e cujos efeitos já estão sendo revelados, cotidianamente, de forma crescente. São reais, infelizmente, as notícias de violência sexual contra crianças de até dois anos de idade, ou menos. É real, também, a apatia, a indiferença e (o que é pior), a banalização do que está posto. Esta violação de direitos é fruto de ações, muitas vezes de pais, tios, vizinhos, padrastos. O certo é que existem lacunas enormes na proteção aos pequenos localizadas exatamente onde a lei estabelece a centralidade dos seus benefícios, ou seja: a família. Se é verdade que a família é o mais adequado espaço para uma criança também é verdade que a família anda de tal forma transgredida que abriga também a maior quantidade de denúncias de violação de direitos. Alguma coisa, portanto, jamais dependerá das políticas públicas porque se refere à supressão de uma cultura de banalização da vida. Algo que passa pelas políticas de educação, saúde, assistência, turismo e, principalmente, das políticas públicas de cultura que são, evidentemente, onde se processam as mudanças de hábito.

Os fatos que batem à nossa porta são inúmeros. Por esses dias a cidade de João Pessoa amanheceu escandalizada com a apresentação de imagens de uma criança de apenas dois anos fumando um baseado na presença da jovem mãe (19 anos) e outros jovens. Infelizmente, este não é um fato isolado. Não podemos fechar os olhos para a imensa degradação da condição humana que está posta no cotidiano. Já testemunhei na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, uma adolescente amamentando e cheirando cola. Infelizmente não pude mais encontrá-la depois que consegui estacionar e ligar para o Conselho Tutelar. O espantoso é que a menina-mãe circulava em meio a pessoas absolutamente indiferentes ao nervo exposto da violação de direitos.

O uso de drogas por crianças (em idade sempre mais tenra) e o uso dessas crianças em atividades ilícitas com a irrestrita violação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) deverá aprofundar um quadro social de barbárie, caso não sejamos capazes de refletir mais profundamente acerca das responsabilidades de cada ente público, de cada organização social e de cada cidadão e cidadã. Não temos tempo para esperar o bom senso dos novos governantes. É bom que se pense nisso nesse momento pré-eleitoral. O que se faz urgente é a construção de um tipo de memória social que reflita a indignação ao invés da diferença. A mortalidade de crianças e adolescentes cresce porque a violência à qual são submetidas é cada vez mais precoce e eles próprios passam a ser agentes da violência que os destrói. Pesquisadores já constatam que se mata mais, proporcionalmente, em Mandacaru que no Afeganistão. Quando se busca os assassinos, segundo meu amigo Jorge Camilo, se encontra crianças de 12 a 15 anos. Os mais velhos já alcançaram divisas mais graduadas no pesadelo dos becos. Uma liderança comunitária da comunidade Santa Clara me disse outro dia que o bandido mais perigoso da comunidade, tinha apenas 13 anos e já contabilizava uma dezena de mortes.

Portanto, reagir ao caos que está posto significa estabelecermos claramente as responsabilidades e não apenas transferirmos as culpas, como ocorre usualmente. Os limites do Poder Público, nas três esferas, já está vencido. Tristes daqueles que não percebem que a cratera é mais em baixo. Só para exemplificar: quando começarão as cobranças da responsabilidade social dos diversos canais de mídia abrigados em concessões públicas? Até quando os Estados se sentirão desobrigados de comparecer com contrapartidas nos programas sociais? Até quando as grandes fortunas do país entenderão que os investimentos não deverão acontecer apenas na blindagem das suas carruagens “mudernosas”? Há algo que ainda não foi feito porque os interesses, mesmo dos movimentos sociais que deveriam estar denunciando estas perversidades, ainda são muito localizados e partidarizados. Por outro lado, a mídia recolhida aos interesses da burguesia reconhece e repercute indefinidamente o escândalo a quebra do sigilo fiscal da filha do eterno presidenciável, José Serra. Entretanto, esquece que o escândalo social é infinitamente maior. Um escândalo que deveria nos preocupar por permitir que a esmagadora maioria do povo brasileiro permaneça à margem da Receita e das despesas do País. Os resultados dessa desigualdade, começam a repercutir na infância que se espalha como uma epidemia pelas ruas das cidades brasileiras. Inclusive e, principalmente, da nossa cidade. Tomara que o exercício de um pensar e agir de forma repartida, nos ajude a encontrar o elo perdido da infância, elemento imprescindível para impormos ao planeta uma cultura de paz e igualdade de direitos e deveres.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...