quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Aqueles poemas que se amontavam em versos.”



por Lau Siqueira
A poesia estebelece laços e nós na vida de um escritor. As distâncias se tornam mínimas e não raras vezes as proximidades afastam certezas. Todavia este não seria este o início de um necessário mergulho no caos das nossas certezas? Há uma desigualdade profunda que nos torna profundamente iguais quando o assunto é poesia e mais ainda quando o fato é a publicação de um livro de poemas. Estamos, pois, diante de mais um silêncio de pedras nesta leitura do livro do paranaense Júlio Almada.

Não é muito diferente para qualquer poeta brasileiro publicar e lançar um livro neste momento de profundo desprezo do mercado editorial pela produção contemporânea. Também precisamos reconhecer que publicar deixou de ser, há muito tempo, algo extraordinário. Cada livro de poemas lançado é uma imensa guerrilha para o autor. Tanto no que se refere ao investimento gráfico quando ao que é mais árduo ainda: o reconhecimento dos pares e de uma crítica literária que, ao contrário da poesia, não se tornou mais intensa com o advento da internet, das redes sociais, da facilidade de publicar sem que se tenha de passar pelos diversos olhares “canônicos” ou caninos. Publicar, pois, não representa mais qualquer tipo de reconhecimento, mas antes de tudo o pódium das nossas guerrilhas pessoais que sempre paga um preço elevado pela nossa permanência na cena literária brasileira.

É neste ambiente que chega o livro “De olho: embriagado” do poeta Julio Almada. Este é o título, também, de um dos 29 poemas que compõe esta coletânea. Certamente que temos aqui um conjunto de experiências trazidas pelo autor que, assim como todos e todas que fazem da palavra uma sangria inevitável, chega em busca da poesia pois entende que a poesia não é um limiar da linguagem, mas um sumidouro de incongruências e incertezas que pode ou não surpreender, pode ou não esvair-se no esquecimento. Ainda assim, acreditamos que todo livro de poemas vale a eternidade de um instante, pelo que exasperou nos suores do autor para uma experimentação estética e, também, de transbordamento no mundo.

Temos aqui um conjunto de versos que vertem na própria razão de revelar o ato pessoano de fingir a dor que deveras sente. É como se o poeta Julio Almada expelisse suas dores em dores e doses que jamais serão propriedades da sua alma. A dor desdenhada no poema (ele sabe disso) não expressa o buraco negro de um tsunami íntimo, nem se revela se não pelo esparso descoforto inevitável do poema enquanto experimentação de linguagens que dialogam com o cotidiano, com as confissões ao mesmo tempo inevitáveis, irrevogáveis e inaceitáveis para a metalurgia da palavra. Este é, sobretudo, um sentimento que perpassa todos os poemas deste livro que agora toma corpo e segue seu destino para muito além do que possa este minguado olhar que aqui deposito.

A poesia tem seus próprios motivos e a cada verso escrito é como houvesse nascido enquanto discurso comum para todos nós, poetas. Tudo é uma questão de comvivência com silêncios arrebatadores que não suprem a algazarra das palavras. São artimanhas íntimas, passagens de uma lírica que transborda no coração enquanto representação do que temos de mais denso em termos de existência e mesmo de confluência humana: “Os sentimentos não são fardos. Pesados e/ pesarosos tornam-se braços e pernas não/ compostos de maneira edificante pela vertiginosa/ manifestação de sentimentos durante uma vida.” O poeta, assim, nos mostra que não segrega os trigos e muito menos se propõe a uma experiência já um tanto surrada de rigores e de sublimação das adagas ensandecidas da vertigem contemporânea.

O poeta aqui não se propõe ao incomum, ao inventivo. Faz, ao contrário, uma inversão para permanecer na identidade da própria pele, do que veste em termos de conjugação poética temporal e estática desse não-lugar onde de alguma forma estamos todos e todas num afogamento de colheitas, numa corredeira de buscas desmesuradas para a menor distância entre a expressão poética e a expressão dos nossos dias. Somos, assim, o mesmo e estapafúrdio esquecimento. Versos que diluímos na vertigem de um olhar sempre muito pessoal sobre as multidões que nos fazem poetas de um futuro que começou no final do século XIX e que constatou o que é experimentar versos sem os falsos pudores de uma horda mais canina que canônica.

O poeta aqui se revela e se rebela. Ele nos traz “Aqueles poemas que se amontavam em versos” para uma consignação de dívidas que sempre serão nossas porque se uma marca revela a nossa geração é exatamente a estratégia das estrelas que somem na noite escura, transgredidas pelas nuvens e por uma Lua que permanece no céu soturno das nossas transpirações. Que seja bem vindo mais reste rebento do poeta Júlio Almada.





Vale do Timbó - Parahyba, 10 de novembro de 2011.  Prefácio do livro do poeta paranaense, Júlio Almada: "De olho: embriagado".

domingo, 6 de novembro de 2011

A brutalidade da beleza

por Lau Siqueira
A beleza não é a viga dos encantamentos, apenas. A beleza é o domínio dos abismos da mente e do corpo. Seja num artista, seja num espectador - por mais desatento que seja. A beleza é um espetáculo de cores e escuridão, de sons e silêncios, palavras e pausas. Segundo Hopkins, a beleza é difícil e segundo W. J. Solha é brutal. Não importam aqui os conceitos surrados ou novos. A verdade é que nas poucas palavras deste artigo não será possível definirmos o que foi a belíssima obra construída por diversas mãos, corações e mentes numa dedicação consagradora aos 70 anos de um dos mais completos dentre os grandes artistas brasileiros, W. J. Solha.

Não sei que registro foi feito das duas apresentações de “Cantata Bruta”, uma realização da FUNJOPE e da FUNESC em homenagem ao escritor, sonhador, artista plástico, cidadão íntegro, escritor, ator e outras faces da mesma face no multi-artista homenageado. Na verdade foi uma homenagem às artes porque Solha também participou enquanto criador. Creio que a Paraíba viveu nos dias 29 e 30 de outubro, no palco do Cine Bangüê do Espaço cultural José Lins do Rego, um dos grandes momentos da nossa cultura nas últimas décadas. Ousadia estética e exatidão matemágica foi o que transcendeu como um relâmpago na execução da Cantata Bruta pela Orquestra de Câmara cidade de João Pessoa, sob a regência do maestro Eli-Eri Moura.

Uma das afirmações do concerto, foi a produção erudita da Paraíba. Provavelmente um dos grandes pólos de produção de música erudita contemporânea do Brasil. No palco, além da Orquestra de Câmara, o coro Sonantis, a mezzo-soprano Maria Juliana Linhares, o tenor Ed evangelista e os declamadores Walmar Pessoa e Suzy Lopes. Marcílio Onofre e Valério Fiel cuidaram das sutilezas com intervenções eletrônicas realizadas ao vivo.Tudo muito bem guardado numa iluminação cênica e num cenário que foi um espetáculo à parte. Obra de Jorge Bweres que assinou também a direção de palco. O texto era do próprio Solha (do livro História Universal da Angústia), com músicas de Didier Guigue, Eli-Eri Moura, J. Orlando alves, Marcílio Onofre, Valério Fiel e Wilson Guerreiro que em apenas sessenta dias concluíram as composições.

Certamente que nas duas noites de apresentação da Cantata Bruta, ninguém saiu impune do Espaço Cultural. Impossível que alguém não tenha ficado impactado com a ousadia, a experimentação e a erudição caminhando juntas na elaboração das peças que nos proporcionaram a possibilidade de testemunhar o quanto a diversidade pode convergir quando a direção sabe o caminho e onde cada milésimo de segundo caberá entre o som e a palavra, entre o acorde e o silêncio. Uma obra de mestres das artes não poderia ser diferentes.

Não sei se algum artista brasileiro ou mesmo do mundo, já recebeu uma homenagem que dialogasse de forma tão intensa com sua obra. No caso de Solha, uma obra que não se contém nas cores e nas palavras, mas vai em busca do encantamento e da brutalidade enquanto elemento do real e do imaginário que compõe a alma humana. Quem pode assistir esse concerto-espetáculo sabe que, guardadas as proporções, viveu um momento que do ponto de vista estético podemos considerar um marco no pensamento estético paraibano, tal como diversos movimentos de vanguarda das artes que produziram manifestos e influenciaram gerações futuras.

Estava tudo lá no palco do Bangüê. Artes plásticas, literatura, teatro, música, invenção estética, futurismo, tradição, ousadia... A brutalidade da Canga e de obras monumentais como História Universal da Angústia (de onde foram arrancados os textos sangrados), com a roupagem épica de um Trigal com Corvos, escritos magistrais de W. J. Solha que, assim, conduz para o infinito a consagração de sua imensa e diversificada obra. A beleza verticalmente experimental repercutiu na vivência estética da platéia e lembrou-me, quando descia as rampas do Cine Bangüê o Manifesto Surrealista escrito em 1924: “(...) cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa.”

Tudo neste concerto foi afirmação positiva. Um diálogo espantoso com o nosso tempo, com as esquinas conturbadas do Século XXI, seja nas vitrines rompidas pelo vandalismo dos jovens londrinos, seja pelas almas atoladas no mangue de Bayeux ou nos impactos das balas que assassinam centenas de jovens anualmente em áreas de vitimadas pelo apartheid paraibano, como o bairro São José ou Ilha do Bispo. Uma intervenção com visão de futuro foi o que pude perceber pelos corredores, nas movimentações da saída. Uma noite que não poderia ter sido mais intensamente vivida diante de uma beleza brutal.

Não sei se os executores do projeto pretendem retomá-lo em algum momento. Não sei que tipo de registro foi pensado para algo tão grandioso, além das partituras. No entanto, testemunhei com todos os meus poros e com a minha infinidade de sentidos algo que jamais será arrancado da minha memória e certamente estará gritando aos meus tímpanos que uma nova forma de fluir esteticamente foi sendo conduzida coletivamente, arrastando como em um tsuname, uma velha literatura, uma velha erudição, uma velha concepção de espetáculo e concerto, uma velha sistemática de regência e de direção e cenário. Parece que tudo mudou e, logicamente que me refiro aqui apenas a uma vivência pessoal que não coube em uma platéia lotada. Penso que a partir da Cantata Bruta estamos tansbordando para uma nova forma de pensar a arte do nosso tempo.

Tudo de melhor dos nossos dias estava concentrado em uma redoma em chamas que não poderia ter outro título, pela dose de pancadas de uma transgressão estética que há décadas, tenho certeza, não se via com tamanha intensidade, na insanidade de uma lucidez coletiva, de uma sangria de olhares que se encantavam e se espantavam, se espetavam diante do que pode a arte num estado de brutal beleza. Nenhuma homenagem, no entanto, poderia ser menos grandiosa para um arista da dimensão de um W. J. Solha. Tivemos a oportunidade de testemunhar a história guardada num sopro, num ciclone, numa tempestade de delicadezas e na carne sem pele dos nossos sentidos.

sábado, 17 de setembro de 2011

E POR QUE PUBLICAR EM TEMPOS DE PENÚRIA?

Por Lau Siqueira
Sinceramente, talvez eu não saiba responder com precisão a pergunta e duvido muito que possa dizer alguma novidade sobre essa questão que me foi colocada para debate na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, edição 2011. O tema está escancarado para muitas abordagens. Existirão, certamente, muitos pontos de vírgula. Vamos tentar resumir a ópera num passeio sobre o que tem sido publicar especificamente poesia no Brasil. Também não há como aprofundar por aqui, mas há como buscar um diálogo com os diversos contextos que o tema propõe. Depois da internet a poesia não pode mais viver de lamúrias, muito menos se queixar de penúria. É verdade que as grandes editoras parecem pouco interessadas na poesia contemporânea, mas também parece verdade que a poesia contemporânea aprendeu a sobreviver sem as grandes editoras. São realidades que se distanciam cada vez mais. O mercado do livro no Brasil está muito mais interessado em Bruna Surfistinha que em poetas contemporâneos. Já imagino algum espaço de Bienal chamado “Boquete Literário”.

A questão do mercado editorial preocupa mais na relação com o poder público, penso. O Ministério da Educação é o terceiro maior comprador de livros do mundo e, ainda assim, temos uma política de bibliotecas precária e a literatura nas escolas e faculdades é artigo de luxo ou de lixo. As políticas de leitura passam ao largo e crescem mais na guerrilha de algumas ONGs que nas Secretarias de Educação. Não acho que os poetas contemporâneos estão excluídos do mercado editorial brasileiro. Ninguém é excluído de onde nunca esteve. A poesia é um dos gêneros mais populares e mesmo assim não tem mercado. Não existe mercado para autor vivo, é bem verdade. Poesia não é mercadoria. Mas, qual gênero literário ou que arte é mercadoria? A relação do mercado se dá com o objeto-livro e não com o conteúdo. Caso contrário, ao invés de apostar em Zíbia Gaspareto o mercado do livro estaria apostando em Glauco Matoso.

Não sei se podemos chamar de penúria viver fora do eixo que na linguagem dos becos criativos significa estar fora dos catálogos das editoras. Preciso deixar claro que ficar conhecido ou estar publicado por gigantes do mercado editorial não melhora a literatura de ninguém. Parece que o mercado do livro está mais interessado em abocanhar o lucro fácil do dinheiro público, com o pleno favorecimento da mofada lei de Licitações e Contratos, a lei 8666. Uma lei que trata como produtos iguais um violino e um saco de batatas, guardadas as utilidades e necessidades de ambos para a sobrevivência humana. Um ente público não pode comprar livros e distribuir em bibliotecas comunitárias porque a lei permite fraudes, permite corrupção, pune erro de contabilidade enquanto acoberda escândalos, mas não permite a doação do que chamam de “material permanente”.

Penso que depois da internet a poesia contemporânea ganhou um espaço considerável, tanto na nova mídia eletrônica quanto nas possibilidades de distribuição, nas possibilidades de construção de nichos de mercado com a venda até mesmo por e-mail. Cada poeta é, pois, o distribuidor da própria obra. Portanto, em termos de poesia não podemos falar de penúria porque nenhum dos nossos grandes poetas teve tamanho e tão democrático espaço de visibilidade. Resta saber se em tempos de mídia eletrônica ainda teremos um novo Fernando Pessoa. Devemos considerar, também, que a grande mídia  já não é a mesma e não mantém a mesma relação com os interesses da cultura. Os jornais ampliaram as colunas sociais diminuindo as páginas de cultura e isto é um fato. A maioria trata entretenimento como cultura. Então a cultura, naturalmente, foi buscar suas mídias. Imaginem dentro deste balaio de bafos, onde fica a literatura e onde se esconde a poesia.

Não quero dizer com isso que inexistam espaços para a cultura e especialmente para a poesia na mídia formal. Acho que existe sim e alguns bastante generosos - mas também excessivamente ocasionais. Entretanto, precisamos reconhecer que a partir da comunicação eletrônica foi possível que cada escritor construísse seus nichos de informação, suas redes de interesse. Isso permitiu que algumas invisibilidades se tornassem explosivas e alguns desconhecidos pudessem ganhar destaque nacional e até internacional, sem aprovação das academias e sem antes ter passeado pelos canais da mídia tradicional, modernizada tecnologicamente. Geralmente desconectada das múltiplas realidades vividas pelo avesso da globalização. Devemos reconhecer, a despeito da selvageria econômica, a globalização tem seus encantos quando o assunto é difusão de informações, pois com o avanço da tecnologia o controle ficou pouco viável.

Discute-se alguns temas polêmicos como o fim do livro. Penso que o livro em papel somente vai acabar quando acabarem as árvores, como já disseram por aí. Então,  a inteligência humana já terá desenvolvido tecnologia para fabricar papel de garrafas pet ou outro lixo qualquer, uma vez que o lixo cada vez mais se torna uma poderosa matéria prima. Isso não preocupa, uma vez que na Feira do Livro de Porto Alegre são impressos poemas em folhas de fibra de arroz, com o leitor sendo convidado a ler e comer poemas de diversas matizes estéticas e sabores diversos. A penúria, no meu entendimento, está diminuindo se o caso é abafar delírios e conter vaidades. Acho a penúria ainda está muito mais localizada na educação, especialmente na educação básica que é o que realmente sustenta a vida intelectual de um cidadão ou cidadã. É no nascedouro que um rio começa a delimitar suas margens.

Nossas preocupações devem se voltar mais para a antiquada relação dos modelitos de um capitalismo muito primitivo e que movimenta o mercado do livro no Brasil e no mundo. Especialmente quanto a concentração de lucros, com a sequencial formação de grandes corporações editoriais engolindo a renovação do mercado e, também, a crescente internacionalização de um mercado que cada vez mais é menos brasileiro. No centro do problema está uma lei vigorosa e ultrapassada como a  já citada Lei 8.666 que favorece de forma absurda a concentração de riquezas em todas as áreas e não é diferente no mercado editorial. Não há como não entender que os baixos índices do IDEB (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico) tem tudo a ver com esse debate. Afinal, vivemos em um país que possui menos livrarias que a cidade de Buenos Aires.

Tudo está diretamente ligado e se justifica politicamente diante de uma revelação bombástica da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, coordenada por Galeno Amorim, hoje presidente da Biblioteca Nacional. A chamada classe A, representada pelas maiores fortunas brasileiras, possui o mesmo índice de leitura (enquanto hábito) da classe dos despossuídos de tudo, a classe E. Algum tipo de igualdade, ironicamente, os nossos mais de 300 anos de colônia deveria mesmo ter produzido. Assim, os mais ricos e os mais pobres ostentam os mesmos exatos 3% de leitores. O que nos mostra que a vulnerabilidade intelectual das nossas elites está diretamente relacionada com a vulnerabilidade social da maioria do nosso povo. Talvez aí sim possamos identificar um nível de penúria escandalosa, capaz de chamar a atenção do país.

Publicar tem um sentido muito particular para cada escritor. Para alguns, cada vez mais, tem uma relação direta com os processos de construção cidadã. Algo que, obviamente, não exclui o debate estético. Muito pelo contrário, reforça-o. Afinal, escrever para quê e para quem? A que debate estarão vinculados nossos livros? Aos salões livres de livros? Às “paratizações” da literatura? Ou, quem sabe ao cotidiano das escolas, como acontece em Passo Fundo, na Jornada Nacional de Literatura. Somente não faz sentido resumirmos tudo ao pueril e confuso debate midiático, desprovido de análises mais profundas e que não tem absolutamente alcançado repercussões, exceto quando alguém confunde crítica literária e crítica de arte com a lamentável mania de chafurdar costumes e detalhes da vida alheia. Ou mesmo quando o mofo quer brilhar e perde-se no debate entre a importância da tradição e a importância da modernidade.

Sinto que a poesia brasileira vive um momento bem interessante. Logicamente que não falo em termos de quantidade, mas de qualidade. Joca Reiners Terrón definiu muito bem o nosso momento literário: “É como abrir a tampa de um liquidificador ligado.” Aliás, talvez esta frase possa sintetizar um dos pontos  da nossa reflexão. A literatura brasileira está vivíssima e pulsante. Talvez por isso poucos se arrisquem em definições e os mesmos de sempre achem mais fácil e cômodo desconhecer o presente e ter apenas o passado como referência. Lamentavelmente esta é a lógica da maioria dos nossos melhores centros acadêmicos. Ainda estamos com espaços rarefeitos para a crítica literária que, talvez esta sim, esteja necessitando de oxigênio para não morrer na asfixia e no mofo das idéias fixas. Esta penúria é talvez a que mais preocupa em relação à afirmação da literatura contemporânea porque não existe uma grande literatura sem uma crítica literária consistente, despojada do formol das academias, focada nas diversas leituras que requer uma literatura formulada no século XXI, tal como nos séculos anteriores.

Portanto, estamos diante de uma realidade em movimento, na era das velocidades, buscando a melhor pronúncia para definir esse tempo de reações híbridas aos problemas concretos da nossa sociedade. Problemas que passam pelas necessidades e virulências da poesia brasileira, pela qualidade do ensino, pela afirmação de políticas consistentes de leitura, pela reflexão acerca da concentração e globalização do mercado editorial brasileiro, pela legislação que rege os contratos e as concorrências públicas. Enfim, creio que a nossa penúria real ainda é o que há de precário para que a democracia, ou seja: o vetor da política econômica em todas as áreas, especialmente no caso do livro, da leitura e da literatura.

sábado, 3 de setembro de 2011

A leitura enquanto direito social e as políticas para o livro no Brasil.


Por Lau Siqueira
Na abertura da XV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, a presidenta Dilma Roussef falou do programa de popularização de livros que será apresentado nos próximos dias pelo Governo Federal. “Queremos ter uma ação que fomente a produção e comercialização de livros mais baratos”, falou a autoridade máxima do país. Um discurso que, aliás, muito nos orgulha porque certamente está na leitura enquanto política pública, uma das chaves para darmos um salto nas políticas sociais. Não há dúvidas que o governo brasileiro deu passos importantes em direção à construção de uma sociedade leitora, de 2003 para cá. Todavia, como era de se esperar, o mercado do livro é um manto de silêncios estrategicamente constituídos. Por exemplo, a isenção de impostos sobre o livro – obra do presidente Lula – já deveria ter derrubado os preços naturalmente. Mas isto não aconteceu. A imensa quantidade de livros adquiridos pelos governos federal, estaduais e municipais também deveriam ter garantido o “equilíbrio do caixa”. Mas, também isso não aconteceu. O mercado tem a ousadia de partir para a arenga alegando que o custo das edições se torna elevado por conta das baixas tiragens. Pura balela. Ignora a lei da compensação. Muitos dos livros livros com tiragens altíssimas comprados pelos governos, nas estantes das livrarias, não apresentam abatimento algum. Portanto, se quisermos redução no preço dos livros não podemos entender a fração monopolista do mercado livro como aliada, mas como um ganancioso tubarão atento às menores possibilidades de engorda dos pequenos peixes - especiaria para a gula dos acionistas. Entendo que Dilma tem boas intenções ao propor a queda do preço dos livros, mas vamos errar mais uma vez se a proposta contenha subsídios ao ganancioso mercado do livro. O senhores de engenho do mercado não estão nem um pouquinho interessados nos benefícios do crescimento dos índices de leitura. Muito especialmente da população pobre deste país, excluída de todos os processos de desenvolvimento.

No paralelo, os eventos literários até que tentam fomentar essa política de democratização da leitura. No entanto na maioria das vezes os eventos são focados no autor e nas suas necessárias (mas, particulares) trocas para a literatura contemporânea brasileira. O leitor raramente vem sendo discutido nas mesas das Bienais, Feiras do Livro, Festas e encontros literários. É como se fosse um tabu caber logo ao imantado reino dos escritores colocar o pé ensaboado de sabedoria no mangue dessa discussão. Os escritores, em sua maioria, não gostam do tratamento fúnebre dado pela maioria das editoras. Mas, se fazem de mortos quando se fala em políticas de leitura. Se não interessa o assunto, então, por que continuamos publicando? Por que, muitas vezes, publicar de forma subsidiada pelos programas públicos e fundos de cultura e colocar à venda obras com preço de capa que muitas vezes correspondem ao mais ganancioso nicho do mercado do livro?

Independentemente das boas atitudes do governo federal e de bons caminhos traçados por muitos órgãos governamentais de norte à sul, a democratização do acesso à leitura talvez nunca tenha sido tão fomentada em nosso país. Pelo menos não que tenha lembrança em meus cinquenta e vastos anos vividos. Aqui e ali encontramos ações absolutamente militantes de pessoas e grupos de pessoas que se comprometem com as políticas de acesso ao livro e à leitura. Pasmem, não raras vezes, sequer livros disponíveis para uma ação mais consistente existem. Já presenciei oficinas de leitura com livros emprestados. Livros buscados em doações e muitas vezes em bibliotecas comunitárias. É como se existisse uma onda natural em contraponto aos interesses meramente capitalistas do mercado. Um vento híbrido alimentando uma corrente de pessoas que acreditam nas possibilidades transformadoras das políticas de leitura. É como se estivessemos formando um determinado consenso nas razões de acesso ao livro e, mais que isso, no acesso à compreensão e transformação do mundo a partir da leitura. Logicamente que poderíamos ter um impulso mais qualificado se o Ministério da Educação não entendesse os processos educativos apenas dentro dos muros escolares. É como se faltasse utopia. Afinal, a vida não se resume em práticas pedagógicas que não compreendam o jovem, principalmente, como um ser integral que precisa ser abordado a partir do território que habita e das possibilidades de construção de uma identidade cultural dentro de um processo de transformação da realidade vulnerável em que ainda se encontra a mairia do povo brasileiro.

Essas experiências tem nos demonstrado que a leitura não é um ato passivo. Também tem demonstrado que existem linguagens que podem e devem ser incorporadas nesse processo. A arte é o meio e a mensagem na maioria das vezes. Os escritores precisam compreender que a literatura é apenas um dos elos e não o principal elo nessa cadeia e que o leitor é um sujeito ativo que do texto extrai variantes e constrói complementariedades. No caso da literatura isso se referencia mais concretamente nas construções humanas e cidadãs. O leitor começa a ser percebido como uma espécie de co-autor, capaz de promover intervenções positivas ou negativas no texto. Esse é, na verdade, o ponto g da razão de brigarmos por políticas de leitura porque ao produzir o leitor crítico estaremos erradicando o analfabetismo funcional que hoje coloca em cheque o papel de determinadas universidades licenciadas pelo Ministério da Educação e que mais parecem shoppings de diplomas variados. O leitor crítico, por sua vez, exigirá da literatura e mesmo da produção acadêmica algo mais denso que a vaidade pessoal do autor.

Os modelos formais das bibliotecas, apesar de ainda necessários, não atendem mais as demandas diante de uma verdadeira fome de leitura que se descobre cada vez que desencadeamos um processo de fomento. Os espaços austeros acabam inibindo o pretenso leitor e desacatando os procedimentos pedagógicos das políticas de leitura. Estas políticas, ainda bem, guardam-se diante de uma diversidade que passa por processos de contação de história, leituras silenciosas ou saraus e se alimentam de esperanças em eventos que se já se transformaram em políticas públicas como a Jornada Nacional de Literatura realizada em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Um evento que, aliás, determina a economia da cultura na cidade e traz ao povo gaúcho o orgulho de guardar a cidade com o maior índice de leitores do País. A Jornada fez de Passo Fundo a Meca da leitura brasileira. Aos modelos tradicionais de biblioteca que muitas vezes acabam reproduzindo-se de forma equivocada nas escolas, em amontoados de livros numa sala empoeirada e geralmente guardada em camisa de força. Essa realidade, também, nos faz acreditar que precisamos mesmo é de “bisbilhotecas”. Lugares em que os jovens sejam acolhidos para a leitura e que isto não seja uma obrigação para o currículum escolar. O livro deve ser apresentado como véu de possibilidades e não como algo sagrado, intocável. Também é preciso que se confidencie ao jovem leitor que o livro impresso na era tecnológica não é a única possibilidade de leitura. Também é preciso dizer que os velhos e mofados modelos de museus, bibliotecas, casas de cultura... não são mais os únicos. O mundo tomou rumos depois da invenção da roda. Só as pedras não pensam... mesmo assim, nos levam a refletir poeticamente - a partir de Drummond - quando estão no meio do caminho.

Mais além, precisamos repensar, inclusive o modelo de ensino da literatura especialmente no segundo grau que ao ser focado na prova do vestibular passou a produzir um certo desprezo até mesmo pela história da literatura que foi sendo arbitrariamente fatiada e descontextualizada, provocando muito mais rejeição que interesse até mesmo pelos grandes clássicos da nossa literatura, como Machado de Assis. Precisamos ainda pensar as políticas de incetivo à leitura de forma universalizada e não a partir de interesses de frações do mercado ou mesmo de afirmação corporativa, seja dos escritores, seja de pequenos livreiros, editoras independentes, bibliotecários ou outros segmentos que acabam sofrendo juntos mas não condicionam suas ações para um gozo coletivo. Se algo de bom precisa acelerar, precisamos incorporar as ações de leitura - não apenas do ponto de vista pedagógico - como uma ação cultural determinante, estruturante para que outras políticas de inclusão tenham um tratamento mais qualitativo e operem de forma natural uma despedida dos modelos sociais em que até mesmo a leitura fazia parte da opressão de classe, de gênero e de raça, por exemplo. Queremos sim uma política de leitura que seja, sobretudo, libertadora e cidadã.

A pesquisadora francesa Michèle Petit, no livro “Os Jovens e A Leitura” destaca que uma das lições da leitura é nos ensinar que “antes de pertencer a este ou àquele território, somos seres humanos”. Portanto um jovem morador da comunidade Novo Horizonte, em João Pessoa, precisa antes de tudo ser levado também a fazer uma leitura não apenas dos livros, mas da sua realidade que não é diferente da realidade de jovens da periferia de uma cidade qualquer da Argélia, da Colômbia ou mesmo de Nova Iorque. “Miséria é miséria em qualquer canto”, cantam os Titãs. Portanto, a experiência do pertencimento, depende de uma relação objetiva com o território e, sobretudo, com a consciência de que a leitura não passa de mais um dos direitos fundamentais de cidadania e, segundo Antônio Cândido – referindo-se especificamente à literatura – um dos direitos humanos. A leitura deve ser vista, nesses casos, como uma ferramenta de transformação da vida a partir de um olhar para as tribos nas quais estamos inseridos, muitas vezes à ferro e fogo pelo sistema capitalista.

Entrementes os tempos são realmente outros e os ventos sopram a nosso favor. Não dá para caminhar sem utopia. Não dá para ser feliz sem horizontes. Experiências consolidadas nos mais distantes rincões brasileiros nos arrancam do ostracismo para um otimismo que nos leva, sobretudo, à emissão de reflexões capazes de nos levar a dar passos mais largos para perspectiva de uma sociedade leitora. Os números atuais são favoráveis, conforme atesta a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, organizada e publicada pelo hoje presidente da Biblioteca Nacional, Galeno Amorim. Os indicadores nos mostram que o Brasil (a pesquisa é de 2007) já possui 95 milhões de leitores. E o que precisa ser destacado é que a nossa elite intelectual não é a mesma elite econômica, como em alguns países. As classes C e D representam 78% do universo de leitores enquando as classes A e B, apenas 19%. Este é um dado importante para sonharmos com a formação de um país leitor a partir das ações de base, das iniciativas de mudança de uma cultura não leitora mesmo entre a comunidade letrada. Mário Quintana já nos dizia que “o pior analfabeto é aquele que aprendeu a ler e não lê.” Haveremos de localizar e iluminar esse buraco que sempre é mais embaixo que imaginamos. Por enquanto nos resta ir aprofundando reflexões que nos permitam acreditar, por exemplo, que as classes C e D são mesmo as classes dominantes quanto aos índices de leitura e podem traduzir isso, quem sabe, numa democratização da economia capaz de interpretar (e rejeitar) o sentido de palavras como fome, analfabetismo e miséria que, aliás, são sinônimas. Para as mudanças necessárias a história está onde sempre esteve: em nossas mãos. logicamente, portanto, o assunto não se esgota por aqui.

domingo, 21 de agosto de 2011

Antes que Agosto acabe.

por Lau Siqueira

Os eventos de literatura têm proliferado pelo Brasil afora, talvez, como em nenhum outro momento da história. Até mesmo pequenos municípios brasileiros começam a ganhar um certo destaque. Se é bom que assim seja, não temos dúvidas. Mas que isso pode melhorar é a nossa melhor certeza. Um dos maiores desafios é fazer com que esses eventos deixem de ser meros encontros de escritores e de meia dúzia de apaixonados leitores, geralmente, movidos por razões mais midiáticas que propriamente literárias. Aqui em João Pessoa não é diferente. O Agosto das Letras entrou na programação cultural da cidade em 2006, deixando de acontecer em 2008 e retornando nos anos posteriores com um formato mais denso, mas ainda assim com os problemas comuns a maioria dos eventos literários espalhados pelo mundo.


No interior do Rio Grande do Sul, provavelmente, esteja sendo realizado o mais importante evento de literatura do país. A Jornada Literária de Passo Fundo não deixa de ser um grande encontro de escritores, mas, sobretudo, passou a ser uma importante política pública na formação de leitores. Os autores convidados são estudados nas escolas no ano anterior e quando chegam ao evento para os diálogos propostos têm a certeza de terem sido lidos por grande parte da platéia. Este é um dos aspéctos que diferencia a Jornada Literária de Passo Fundo até mesmo dos demais grandes eventos literários, como a Feira do Livro de Porto Alegre, os Salões do Livro e Bienais que se espalham pelo país como modelo de incentivo ao mercado do livro. No entanto devemos ter claro que os interesses do mercado do livro geralmente estão distantes dos interesses da literatura. Portanto, a despeito dos grandes investimentos das Feiras, Salões e Bienais, fiquemos com o que interessa entre o joio dos trigais e as águas profundas da imaginação.


Os eventos literários (e o Agosto das Letras não escapa disso) têm seguido um modelo que contribui de forma bastante acentuada para as trocas necessárias entre os escritores de norte à sul do país. Portanto, o Agosto das Letras não é um evento que esteja rendido aos interesses não muito inocentes do mercado do livro, como as frias Bienais, Salões e Feiras de Livro espalhadas pelo país. Também não quero dizer que esses eventos não são necessários, mas é preciso que se compreenda que os interesses de um e de outro são distintos. O Agosto das Letras é um evento que prima pela qualidade das suas escolhas, aprimora cada vez mais a troca de experiências entre as políticas de fomento da literatura, principalmente, no meio alternativo. Traz provocações importantes para o centro da cena, mas como o FestPoa Literária (que é um evento privado), os Encontros de Interrogação do Itaú Cultural (que também é privado) o extinto Festival Literário de Recife (que é do poder público), ainda não se revela como estratégia de pollítica pública para estreitar a relação entre o público leitor e o autor ou a autora. Logicamente que com todos os interesses mercadológicos que cercam essa relação.


Nomes da mais alta relevância da literatura brasileira contemporânea já passaram pelo Agosto das Letras. Sejam eles paraibanos ou de outros estados. Uma das melhores revelações do evento foi ter confirmado a literatura paraibana como uma das mais importantes do país. Também é preciso reconhecermos que apontaram por aqui projetos editoriais importantes como o Dulcinéia Catadora e, neste último Agosto, os projetos Cidade Poema e Instante Estante. Não se pode dizer, absolutamente, que nada valeu a pena. Muito pelo contrário, estamos construindo uma história. Aliás, o discurso da “terra arrasada” é a parte que ficará, certamente, para os jaburus da disputa política que querem medir forças segurando as alças da diluição cultural e da estupidez enquanto método de disputa. Devemos estar atentos aos oportunistas de plantão que criticam sem propor e que desdenham da coragem que não possuem. Logicamente que os oportunistas de plantão também deverão querer dimensionar os fatos dentro das suas correntes de interesses (e haja bocão!).


Por isso tudo, antes que o mês de agosto de 2011 acabe, devemos começar a discutir o próximo Agosto das Letras. Certamente com uma proposta de ampliação das suas articulações, com a política das bibliotecas, das editoras existentes no município, com as secretarias de educação do município e do estado, com os cursos de letras das universidades paraibanas, com as iniciativas que vem sendo desenvolvidas em cidades como Nova Palmeira, Boqueirão, Cajazeiras, Aparecida e outras. Ampliando o diálogo nordestino, a partir de agitadores das cenas de Natal, e aí eu cito entre outros o poeta Carlos Gurgel que por aqui esteve lançando seu livro e os companheiros e companheiras de Pernambuco, Ceará, Sergipe e Alagoas, apenas para citar os mais próximos.


Lembro que o evento teve um início bastante tumultuado em 2006, com diversos pólos e quase que nenhuma repercussão. Em 2007, conseguiu estabelecer relações com o Festival Literário de Recife, realizando trocas efetivas com participações de autores locais e trazendo consigo uma proposta editorial a partir do projeto Novos Escritos. Foram 10 autores lançados em 2007, o que consideramos bastante significativo. Para ter repensada a sua significação o evento deixou de acontecer em 2008, ano eleitoral, retornando em 2009 novamente com a publicação de livros de autores locais e uma bem articulada curadoria do poeta André Ricardo Aguiar que se refletiu também em 2010 e 2011. No entanto, mais uma vez faltou essa articulação maior com outros atores do campo da literatura e do conhecimento. Até mesmo alguma coisa que cortasse a carne da vaidade em alguns de nossos poderosos intelectuais que “acham feio o que não é espelho”. Na pele escancarada dos dias e noites, uma Sol que não se importasse em nascer primeiro e dormir mais tarde...


Não vai aqui nenhum tipo de condenação a um evento que, tenham certeza, foi concebido exatamente para estimular a literatura enquanto forma de pensar o mundo que vivemos e enquanto tábua de conhecimento para as novas gerações. Estamos propondo exatamente o contrário. Na verdade, estabelecemos aqui uma saudável provocação para que o Fórum de Literatura de João Pessoa, um instrumento poderoso mas que não tem conseguido caminhar com as próprias pernas, chame para si a responsabilidade de convocar a Fundação Cultural de João Pessoa para discutir o evento e propor um formato que insira o Agosto das Letras no âmbito das oficinas de leitura desenvolvidas pela própria fundação, por exemplo, dialogando também com todos os agentes da cena literária local: editores, livreiros, autores, bibliotecários, professores de literatura, criadores de outras artes, uma vez que o evento se mostra vocacionado ao multiculturalismo e aos anseios das políticas públicas.


Seria interessante que o Fórum de Literatura se reunisse provocando este momento ainda no mês de agosto de 2011. É bom pensar sobre a carne quente e ainda pulsante. Mas, esperamos que esta avaliação do V Agosto das Letras não se configure em retaliações baratas de vaidades e interesses feridos. Avaliar o V Agosto das Letras vai significar que estamos buscando melhores caminhos para que o evento que já se refenciou nacionalmente como um dos mais interessantes passe a exercer boas influências, também, junto ao público das escolas públicas, das universidades, das experiências máximas como a Biblioteca Comunitária Cactus. Também como o Sebo Cultural enquanto experiência de diálogo com o autor local e outras percepções que possamos apanhar neste campo de centeios e mandacarus, com muitas pedras no meio do caminho que é o mercado do livro na Paraíba.


Enfim, pro dia nascer feliz. Sigamos em frente...

sábado, 23 de julho de 2011

Hercília Fernandes e as iluminuras do silêncio

Lau Siqueira
A poesia sempre percorre caminhos incertos. Comunga com as coisas invisíveis, com as gotas minúsculas de orvalho na manhã das folhas. A poesia desnuda e disfarça para mostrar-se no etéreo e na eternidade das canções que nos guiam pelos caminhos do mundo. Como um pássaro do amanhecer, desdenha do ritmo num canto que se harmoniza com as cores do arrebol. Numa fotografia de fatos imperceptíveis, cada autor vai construindo a sua identidade. “O estilo é a fisionomia do espírito”, como nos disse Schopenhauer em A Arte de Escrever. É bastante complexo definir estilo. Mas, a verdade é que veremos neste livro os contornos definidores de um espírito criativo (ou um eu lírico, como queiram) que resiste e se mostra em cor e ritmo, em musicalidade e imagem definida na feitura de cada verso.

A poesia de Hercília Fernandes percorre os passos incertos da linguagem com a certeza dos que saltam por sobre os abismos, sem medo de voar. Aliás, como toda poesia que se espalha para além das palavras, para além dos significados. “Nós em Miúdos é um testamento de lágrimas e risos, de sensações da pele e erupções da alma. O livro reúne poemas que nos conduzem às imensidões e ao microcosmo da existência humana. Tudo a partir da unidade de uma expressão poética que se entrega e ao mesmo tempo se dissolve no ar. Tudo infinitamente multiplicado nos olhares do leitor que, assim,    promove na leitura as reinvenções do texto: “meu peito está em recesso/ aberto à contemplação aos motivos/ que antecedem as mãos sobre o verbo/ nada há de polêmico, comprimido, ascético.../ apenas fumaça, poeira, vastidão...” Em poemas que municiam a esperança dos que sonham e vivem intensamente, a autora conduz com a maestria de uma bailarina de estrelas, uma solução de incêndios que apresenta ao leitor algo aproximado ao que Umberto Eco chama de “apresentar ao leitor , uma a uma, as contravenções às leis de probabilidade.” Não se faz necessário aqui contextualizar a imagem criada pelo pensador italiano com a configuração de poemas que se relacionam entre si e traçam uma corrente de pequenas vertigens entre a autora e seus motivos, com a transcendência que impulsiona e conduz cada sílaba na expressão do verso. E aqui reporto-me, mais uma vez a um poema que transpira simplicidade no que de mais complexo existe na expressão poética: “quando menina adorava bicicleta/ levava bons tombos - era certo! - mas insistia/ em dominar a máquina.../ soltava as mãos do guidon: irra!/ pedalava estrada infinita!.../ até que um dia caminhão me retirou da trilha/ arranhando-me pernas, joelhos, pés.../ sonhos/ deixou-me arisca: cicatriz no ombro,/ ferida na alma”

Cavalgando pelos seus motivos, cercando-se de labirintos e caminhos certeiros, Hercília impõe trovoadas ao silêncio e desdenha do erotismo com uma selvagem sensualidade tecida em versos precisos e de absoluta convicção quanto as possibilidades de cada palavra. Segundo Antônio Cândido “a idéia de ritmo é muito complexa, e frequentemente muito vaga.” Mas, talvez esteja nesta complexidade ritmica o aspecto determinante deste “Nós em Miúdos”, onde o desnudamento  afronta as fronteiras do que poderia parecer confissão. A lírica desenvolvida por Hercília vai ao cerne do encantamento e de lá arranca um tecido ao mesmo tempo cálido e áspero. Algo que vai bebendo as possibilidades de leitura uma a uma e se reescrevendo em hálitos de desejo e clausura. Mergulho aqui na compreensão de uma poesia que canta a si mesma, convergindo para o que Antônio Cândido também afirma: “Os elementos que compõe o verso são indissolúveis, e não podemos imaginar um sem o outro.”

A partir de versos cuidadosamente lapidados, revelando-se leitora atenta dos livros e das palavras escritas na pele, a poeta conjuga o aço do espelho com a transparência de uma nascente de rio. Tudo com a simplicidade e a perplexidade de uma vida sorvida aos poros e aos berros de um silêncio que jamais se rende. Escreve como se estivesse extraindo da fisionomia dos seus estuários líricos uma verdade que se transforma a cada movimento da água, cada avanço do rio corrente das suas entranhas e a volúpia da sua racionalidade. Estamos diante de uma artista com plena consciência do seu tear criativo. Como se manobrasse uma enorme locomotiva longe dos trilhos porque se permite às aventuras da invenção sem amargurar suas metáforas no hermetismo inútil que busca-se em rótulos.

Hercília consegue extrair momentos de rara beleza neste "Nós em Miúdos", nos poemas já citados e em poemas como este: “enquanto você sonha/ me devora em sua sandice calado/ eu ponho meus óculos-de-sombra/ e me afogo na superfície/ do aquário...” Faturas absolutas pela densidade, onde a poeta consolida sua presença na poesia contemporânea nordestina que a cada momento se renova e se distancia dos esteios medidos pelo olhar nem sempre atento dos senhores de engenho de uma crítica nem sempre atenta ao que se estabelece sem pedir licença. A poesia de Hercília Fernandes abre mão de apresentações. Se impõe na construção de enigmas absolutamente emoldurados pelo silêncio e pelo abano dos zincos que nos condicionam dentro de uma ciranda que pode e deve deliberar o tamanho das coisas.

(Prefácio do livro - no prelo - Nós em Miúdos, da poeta potiguar Hercília Fernandes. Hercília é professora na Universidade Federal de Campina Grande, Campus de Cajazeiras-PB)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Por que lancei meu livro num manicômio?


por Lau Siqueira
Algumas coisas não têm explicação. Ainda assim, nada impede que tenham uma história. Até agora lancei meu livro, Poesia Sem Pele, em lugares distintos e três cidades diferentes. No dia 5 de maio foi em Porto Alegre, na Casa de Cultura Mário Quintana. Um lugar extremamente poético que já abrigou durante anos, enquanto Hotel Majestic, o poeta Mário Quintana. Naquele belo Centro Cultural muita coisa estava acontecendo. No mesmo momento e local estavam lá Antônio Cícero, Zeca Baleiro, Anônio Nóbrega, Victor Ramil e outros artistas, com atividades em outros espaços. Ainda assim vendi razoavelmente meu livro. Uma bela edição do selo gaúcho Casa Verde. Mas, não era isso o que importava porque o meu objetivo não é vender livros nem criar momentos de badalação. O extraordinário para mim foi lançar um livro na minha terra amada, no meu pampa. O extraordinário era ser reconhecido pelos que fazem literatura na minha terra, depois de tanto tempo ausente. Na tarde seguinte, fui para o interior e no dia seguinte eu estava dialogando com o passado em frente ao túmulo dos meus pais, na fronteiriça Jaguarão, onde nasci.


No dia 10 de maio foi a vez de Curitiba, no Brooklyn Café, um lugar pra lá de charmoso. Depois, na mesma noite, ainda em Curitiba, participei de um sarau no Wonka, um local da cena alternativa da capital do Paraná, onde rolava uma performance da atriz Zoe Camaris. Fui para lá convidado pela poeta Marília Kubota, partilhando o lançamento de mais uma edição do Jornal Memai, de cultura japonesa. O Paraná, me dizia Marília, é a segunda maior colônia japonesa do Brasil. Também vendi livros, mas como disse não é esse o meu objetivo. É ótimo poder reduzir o impacto do prejuízo de um livro de poemas, por força da espontaneidade das pessoas. No entanto, emoções não são medidas em cifras. Foi maravilhoso conviver com poetas paranaenses, sendo recebido como velho amigo por pessoas que até então, no máximo, tinha algum contato pela internet.

Entretanto, as minhas emoções não se esgotaram por aí. Tudo aquilo era apenas o início de uma caminhada pelo tempo. Foi na cidade onde resido, sob a lona de um circo e dentro do estacionamento de um manicômio, o Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, que eu fechei um ciclo da minha vida. Foi como se tivesse pagando uma enorme dívida com o silêncio. Em Jaguarão, colhi o olhar sofrido da fotografia colocada no túmulo do meu pai. Colhi ainda a doçura sempre imensa na fotografia da minha mãe (que morreu numa Lua Cheia). Nesses milhares de quilômetros que separam a cidade onde nasci da cidade onde moro, minha vida inteira veio sendo recontada e recolhida do esquecimento. O tempo havia perdido as suas configurações formais. Eu estava de frente para um espelho invisível, mirando algo muito distante e ao mesmo tempo muito presente. Era Lua Cheia, também, naquele dia 18 de maio de 2011. No dia anterior os místicos anunciavam a Lua Cheia de Buda. No dia seguinte, com a participação de profissionais da saúde mental e de pacientes do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, com a participação de amigos e amigas muito queridos e de muitas pessoas desconhecidas, mas que se mostraram parceiras de uma causa, aconteceu o lançamento. Com algumas ausências, certamente movidas por motivos justos e outras tantas movidas pelo preconceito, meu espírito transbordou.


Em meados dos anos 70, por algum motivo banal, ao reagir quando provocado por berrar seu pensamento. O cidadão Theodoro dos Santos que teria hoje 101 anos caso ainda fosse vivo, foi chamado de comunista (e não era) reagiu com fúria e acabou preso. Desde então nunca mais foi o mesmo. Sua alegria acabou ali. Lembro muito bem da imagem quando fui visitá-lo na prisão com uma das minhas irmãs. Eu tinha 13 anos, mas nunca mais saiu da minha memória aquele seu olhar de um intenso verde, brilhando de tristeza, de dor, de humilhação... Sua dignidade havia sido ferida de morte e meu pai, definitivamente, surtou. Algum tempo depois foi internado no Sanatório Roxo, em Pelotas, onde sofreu choques elétricos e, certamente, outros tipos de violência praticada por um sistema psiquiátrico criminoso. Não ficou muito tempo porque quando caiu a ficha para a minha família, fomos resgatá-lo e, até a sua morte no dia 03 de dezembro de 1977, ele foi cuidado por nós. Foi tratado com respeito. Foi amparado por um sentimento que às vezes é esquecido, mas que é fundamental para firmarmos nossas condições de seres humanos: o amor. Dois anos depois fui embora para Porto Alegre tentar algo para a minha vida que apenas começava. Minhas irmãs e minha mãe ficaram por lá. No final do ano de 1976, ao concluir o serviço militar, fui visitar meu pai já desenganado, com câncer e decidi ficar com ele até o fim. Fiquei o ano inteiro em Jaguarão, até a sua morte. Desde então, aprendi a lidar com os estigmas, com os preconceitos e, definitivamente, me fiz poeta de palavras nuas. Não escrevo, pois, movido por vaidades, mas por necessidades, por erupção da minha condição de gente, de cidadão que mergulha na linguagem para respirar melhor neste mundo insano, de desigualdades e de hipocrisias.


Quando fui chamado pela Dra. Flávia Fernando, diretora do Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira, para discutir a programação cultural da I Semana de Luta Antimanicomial da Paraíba, a memória me resgatou do futuro. Conheci um grupo de jovens engajados nesta luta e revi alguns amigos artistas que já trabalhavam nos CAPS. Achei que era um momento histórico especialíssimo para partilhar alguns dos motivos das minhas mais densas emoções. Afinal, alguma coisa estava mudando na cidade que escolhi pra viver. Foi inevitável a atitude de propor que o lançamento da minha Poesia Sem Pele fosse feito por lá. Era como se estivesse ocorrendo uma cospiração cósmica que para isso tudo saísse da vontade para a realidade. Agora, poucos dias depois, muito mais ainda, estou convencido que não poderia ser diferente. Dediquei aquela noite ao homem que foi meu exemplo de generosidade, de solidariedade, de honestidade e de dignidade. O homem que me levou pela primeira vez, aos cinco anos, para uma atividade política. Na oportunidade eu me divertia andando a cavalo e colando cartazes da contundente Campanha da Legalidade. O inverno era menor que meu pequeno pala. Eu e meu velho éramos agentes de um ato contra o golpe de estado que já se desenhava e que mais tarde se consolidou e tornou o país refém de uma fúria conservadora. Uma idéia de mundo que, ironicamente, iria vitimar também aquele eterno campesino de princípios inquebrantáveis.


Enfim, não foi contra o passado que a minha existência se debateu na noite do dia 18 de maio de 2011. Primeiramente na trovoada de tambores do Círculo de Tambores, depois nos depoimentos de profissionais, de pacientes e de impacientes como eu. E logo em seguida, na chuva musicando a noite no instrumento milenar que é a estrutura de um circo. Foi assim que afirmei e reafirmo minha militância por um mundo mais justo, sem fronteiras de qualquer espécie. Foi assim que afirmei com toda a força dos meus caminhos pelo mundo, a minha militância antimanicomial. Espero que, definitivamente, nunca mais tenha que justificar o lançamento de um livro. (Afinal, não foram poucas as pessoas que me pediram para justificar a escolha do local.) Penso que a poesia precisa compor o quadro da nossa razão, do intelecto. Mas, também da nossa capacidade de desenvolver a imaginação, da nossa emoção, da nossa erudição cósmica, da nossa simplicidade, mas, sobretudo, da nossa condição humana. E a vida continua, como disse num poema, “sem devolver nenhum dos pedaços”.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...