quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A distância entre autor e leitor na cadeia produtiva do livro

Por Lau Siqueira


É certo que a existência de políticas públicas é algo inegociável. Todavia é um pouco demais pensarmos que somente através de políticas públicas encontraremos o nirvana social e cultural do nosso país e do mundo. Os governos fazem parte da sociedade, mas nem sempre são representativos das classes dominantes, ou seja, do poder enquanto relação de classe. Ultimamente, nas discussões sobre a cadeia produtiva do livro e as políticas públicas de acesso ao livro e a leitura, nos deparamos com alguns paradigmas que precisam ser superados. O primeiro deles é que a existência de políticas públicas para o livro e para a leitura deva ser a salvação de uma “lavoura arcaica” tão irrigada quanto o mercado do livro. Precisamos não confundir as coisas. Quando falamos em políticas públicas para o livro e para a leitura, precisamos estar atentos a um fator determinante neste debate: quase sempre quem dá o ponta-pé inicial para a cadeia produtiva do livro e da leitura (o escritor ou a escritora) fica fora do debate. O mesmo destino é dado ao ponto final da mesma cadeia produtiva: sua excelência o leitor. Desta forma são os meios que se abastecem dos fins. Em algumas discussões sobre o livro e a leitura, temos a impressão que os livros são geridos por “incubadoras criativas”. O desprezo com que um autor fora do mercado é tratado, por exemplo, pelas livrarias, coloca esse debate num estado de alerta máximo no momento em que esse debate aflora em diversos fóruns. É como se um livro que esteja fora do mercado formal, não estivesse contribuindo com a lucratividade da mesma cadeia produtiva.

Nesse debate sobre a cadeia produtiva do livro, ou buscamos um tratamento global das questões ou estaremos definitivamente perdidos nas particularidades, nos interesses sempre muito individualizados e lacrimosos de todos os lados envolvidos. A relação chega a ser estranha em alguns casos. Enquanto alguns grupos empresariais do setor reclamam dos parcos lucros, a maioria dos autores paga caro para existir socialmente dentro da mesma cadeia produtiva. Precisamos de um ponto de partida: as políticas públicas para o livro e para a leitura não podem se resumir na ação de engorda dos lucros de um mercado que não pode se queixar de subnutrição, como o mercado do livro. Os números desse mercado hoje nos fazem relfetir sobre os investimentos públicos para a área, a gestão das políticas de leitura e os altos índices de analfabetismo real e funcional.

Precisamos começar a inverter esse debate. Não podemos apenas cair na esparrela de cobrar obrigações dos cofres públicos em suprir a insaciabilidade do mercado do livro. Mesmo com a isenção dos impostos concedida pelo governo o livro continua sendo um artigo de luxo. Será que é somente do poder público a obrigação de formar leitores e, conseqüentemente, clientes para esse comércio Cult? O mercado do livro faz parte de um setor que tem despontado com bastante vigor na economia mundial, abrindo alas para um debate sobre a realidade da chamada “economia criativa”. Na Inglaterra esse vetor já foi plenamente reconhecido pelo governo a partir da criação, pelo Primeiro Ministro Tony Blair, do Ministério das Indústrias Criativas, um nicho que está movimentando cerca de 7% da economia inglesa, empregando de forma satisfatória boa parte da população economicamente ativa. É dentro desse nicho que se abriga o coro dos descontentes livreiros, ainda que boa parte não esteja realmente preocupado com qualquer processo criativo, uma vez que se sustenta com Best Sellers e publicações de auto-ajuda. Portanto já está mais do que na hora, também, de cobrarmos desse mercado uma relação mais civilizada com as duas pontas da cadeia produtiva do livro: o autor e o leitor. Se o respiradouro desse mercado depende do poder público, sem gerar qualquer efeito cascata no destino dos seus lucros, alguma coisa está errada. Se o mercado é lucrativo e os livreiros, editores, escritores e eleitores estão falidos, o desastre está desenhado. Por outro lado, se vamos mesmo discutir o mercado do livro, precisamos discutir dentro dele os fatores que mais nos interessam: o autor, o leitor, a responsabilidade social e intelectual da atividade e, consequentemente, a necessária contrapartida ao investimento público num mercado que não pára de crescer e que pouco devolve para a população, até mesmo com relação a “sensibilidade” das tabelas de preços.

Os escritores precisam estar mais atentos e engajados nesta realidade. Afinal, a criação literária deve receber todos os investimentos intelectuais do autor, mas o livro (e muito especialmente o livro dos autores descredenciados pelo apartheid do mercado) não pode ser tratado como um girino perdido na Lagoa do Parque Solón de Lucena, apreciando as águas dançantes. Esta realidade é vislumbrada aqui em João Pessoa, mas corre o país e não é diferente em outros rincões do mundo. Precisamos começar a discutir formas de contrapartida que incluam o autor na promoção do livro e da leitura. Logicamente que isso irá resultar em formação de público para o mercado do livro, mas também irá contribuir para a formação de uma cidadania crítica e atenta aos seus direitos e deveres. Tudo na espessura do óbvio: o autor é o principal instrumento de divulgação do livro. Logo, desprezá-lo é um ato de insanidade e comodismo de um mercado balofo, cujo foco na passa do departamento financeiro das secretarias de educação. Optaram pelo fácil e não pelo simples.

Estamos vivendo momentos especialíssimos. A economia brasileira vai muito bem obrigado. Avançamos firmes na direção de nos tornarmos a quinta economia do mundo. Mas esse fator, isoladamente, não nos diz absolutamente nada. Portanto, desejamos que esse crescimento se dê em patamares menos desiguais dos que hoje determinam as misérias e as fortunas do país. Interessa-nos sim ver crescer o mercado do livro. Mas, alguns fatores precisam entrar em pauta. Entre eles a responsabilidade social das grandes editoras que faturam alto na venda de livros para o setor público. A visão fragmentada deste universo poderá nos deixar dormindo de touca dentro do redemoinho que balança a Bolsa de Valores e que sustenta ostentações infecundas. Precisamos colocar no debate os conteúdos desse mercado, pois, somos consumidores e ainda pagamos duplamente com a destinação dos nossos impostos. Se é verdade que o livro teve os seus impostos subtraídos, também é verdade que o cidadão e a cidadã consumidora de livros, não. O avanço necessário nesse debate, então, exige a presença insubstituível dos autores que se estabeleceram como fator de germinação desse mercado, repito, muitas vezes bancando suas próprias obras e até mesmo a circulação delas, formando em torno de si um ínfimo mercado cuja utilidade é diminuir substancialmente a fatalidade dos prejuízos de publicar um livro. Claro que para um autor seja ele jovem ou experimentado, este investimento é inevitável. Mas, também se faz imnprescindível o debate acerca de um setor que se coloca como vítima e na verdade vai vitimizando a cidadania cultural de cada um de nós. O acesso ao livro continua amoparado em um rosário de desculpas.

O que está posto nos revela que a relação entre os livreiros e os autores (seja qual for o grau de popularidade) precisa ser racionalizada de forma a estabelecer uma relação mais justa e mais profissional. O debate sobre o livro e a leitura não pode naufragar em reações corporativas. Seja de autores, editores, distribuidores, livreiros, gráficos, críticos, etc.. Existe uma profundidade a ser explorada na evolução cultural do nosso povo. O livro significa (ou deveria significar) literatura em termos de criação, de invenção literária. O livro não pode ser um naufrágio enquanto elemento de negociação de interesses entre a sociedade (ou setores dela) e os governos. Aliás, a democracia se constrói com questionamentos e não com absolutismos. A evolução de uma sociedade se dá na medida em que se aprofundam as construções do debate democrático, inclusivo que consiga diluir as distâncias entre a lucratividade do mercado do livro e a eliminação do analfabetismo funcional, por exemplo.

Portanto, se vamos discutir o mercado do livro, vamos deixar claro que temos interesses. Até para não misturar Paulo Coelho com Machado de Assis. Sobretudo nós, escritores, temos interesses nesse debate, mas temos também muito clara a responsabilidade de não fazer concessões ao chamado gosto público, às unanimidades construídas por conta de relações que não se dão exatamente com a palavra.

No momento em que os eventos ligados ao livro são amparados muito mais pela relação com os governos que com os desafios postos pela sedução de um público leitor, queremos debater as contrapartidas para que estejamos fomentando, verdadeiramente, uma civilização e não corroborando com a barbárie que bate nos portões do castelo onde guardamos os nossos sonhos. Não podemos cair na tentação do debate fácil. Estamos na era das velocidades. Existe uma realidade canônica evolutiva na literatura universal. Encontramos um Rimbaud tatuado em cada lan house alimentando um blog ou escrevendo versos no Orkut. Um Rimbaud que precisa ser educado por uma realidade onde o livro não seja um mero produto de prateleira, vendido no peso da capa, como mercadoria que hoje disputa espaço com pacotes de feijão e arroz e farinha nos supermercados. Estamos querendo exatamente discutir, se não uma civilização, pelo menos uma relação mais civilizada ou menos autofágica dentro da consagrada e manhosa república do livro e seus mercadores. Mas, não há como resistir a essa sensação que está tudo sempre começando e recomeçando o tempo todo. Queremos avançar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A relevância dos blogs para a poesia contemporânea

Lau Siqueira
Conforme N. Katherine Hayles, no livro Literatura eletrônica - novos horizontes para o literário, "a literatura do século XXI é computacional". Isso já diz muito acerca das reflexões que pretendemos neste artigo. Afinal, até mesmo os livros impressos são elaborados e revisados virtualmente. Talvez comece aí a desmistificação da importância do livro impresso neste tempo de velocidades virtuais. Houve uma inversão de valores para que se pudesse compreender alguns instrumentos de mídia virtual e a sua devida importância para a literatura. Não são poucos os canais de divulgação da poesia a partir de um instrumento que hoje podemos reconhecer como utensílio doméstico, o computador pessoal. São sites pessoais, canais de relacionamento, grupos de discussão literária. Tudo no espaço físico da sua residência destinado ao computador ou nos giros tridimensionais do lap-top. Todavia, nenhuma outra ferramenta se mostrou tão valiosa para os poetas e para a poesia que os blogs. Não chamaria isso de inversão de valores, mas até mesmo escritores consagrados mundialmente como José Saramago não abriram mão deste instrumento interativo, para uma relação mais aproximada entre o autor e a diversidade de olhares dos mais diferentes tipos de leitor.

Inicialmente reconhecido como uma ferramenta criada para distrair adolescentes ou no máximo para despertar a criatividade de uma geração de nerds, os blogs foram pouco a pouco se transformando em importantes veículos de comunicação interativa, seja para escritores ou para jornalistas, muito especialmente. Nomes reconhecidos da mídia tradicional, nas duas vertentes do conhecimento aos poucos foram ocupando os melhores espaços na blogosfera com blogs dos mais diversos estilos. Podemos afirmar, sem risco de engano, que com o surgimento dos blogs a poesia foi o gênero mais beneficiado entre todos os gêneros da literatura. O fácil acesso e o fácil manuseio desta ferramenta foi naturalmente conquistando escritores reconhecidos ou desconhecidos. Eles foram percebendo que poderiam focar na sua produção ao invés de preocupar-se, também, com o equilíbrio das tags e das ranhuras de uma tecnologia que vem sendo pensada às fatias e desenvolvendo-se de forma surpreendentemente veloz. Certamente que dentro de algum tempo os blogs representarão uma linguagem superada. No entanto, no final desta primeira década do Terceiro Milênio representam a redenção, a democratização e compreensão dos novos caminhos da poesia contemporânea em qualquer parte do mundo.

Certamente ainda é muito importante lançar um livro. Os e-books, neste sentido, parecem longe da possibilidade de superação da “ácaro-mania”. A paixão pelos livros nos tempos em que a banalização inspira cada vez maiores cuidados com as formas e com os conteúdos ainda é a mesma dos tempos de Proust, quando este clássico francês chegou a afirmar que as melhores lembranças da nossa infância estariam nas imagens colhidas da memória dos primeiros livros que tenhamos lido. Mas, o debate acerca do real e do virtual também nos leva a refletir sobre o fato de ser menos danoso ao futuro da humanidade possuir um mau blog do que publicar um mau livro. (A natureza agradeceria o bom senso.) Ocorre que, a preço de hoje, os nomes mais respeitáveis da poesia contemporânea brasileira (e mundial), independentemente do número de livros que tenham lançado, não abrem mão de manter seus blogs literários. Claro que isso não é uma regra, mas evidentemente é uma realidade inquestionável. Isso não ocorreria se possuir um blog não oferecesse imensas vantagens ao escritor, muito especificamente ao poeta.

Mas, como não existe fenômeno significativo que não gere outro igualmente significativo, destacamos um fator afluente do fenômeno dos blogs que também acende a nossa gula investigativa para uma próxima abordagem. Há uma evidente ascensão (talvez até mesmo uma forte influência) de escritores blogueiros sobre outros escritores ou candidatos a escritores também blogueiros. Especialmente poetas cuja produção foi consagrada publicamente através dos blogs chegam a alcançar níveis respeitáveis de trocas com outros poetas. Logicamente que daí não poderemos extrair interpretações óbvias. Não se trata de autores cronologicamente mais antigos influenciando escritores cronologicamente mais jovens. Trata-se de bons escritores, jovens ou não, influenciando ou trocando influências com outros escritores (jovens ou não) a partir das cartas de navegação oferecidas gratuitamente nos oceanos serenos e profundos da web. Este é um tema sobre o qual estudiosos devem estar se debruçando nos cursos de Letras onde o professorado, de um modo geral, não parou ainda para pensar nos efeitos que teria a internet para a época e para a poesia de Arthur Rimbaud, por exemplo, ou para o nosso condoreiro Castro Alves. Afinal, ambos produziram a parte mais significativa das suas obras com a idade da grande maioria dos jovens desbravadores das possibilidades da internet e das suas ferramentas. Portanto, um novo Rimbaud pode estar inaugurando seu blog exatamente hoje, no Acre, por que não?

Este é um fator que não irá gerar uma demanda de pesquisa apenas daqui a dez ou vinte anos. Não haverá, dada a velocidade dos tempos, oportunidade para distanciamento científico. O próprio conhecimento acadêmico não poderá abdicar de um futuro que já começou para refletir sobre o que está em pleno processo e, até mesmo por isso, operando mudanças culturais bastante acentuadas e influenciando comportamentos nas mais diversas áreas. Sobretudo na literatura e mais ainda na poesia que vai, assim, rompendo a aura de marginalidade para se mostrar detentora de uma imensa camada de admiradores que, na grande maioria, são também militantes da invenção nas portas das milhões de fábricas de miolos onde se processa permanentemente a metalurgia da palavra.

Logicamente que não queremos aqui desenvolver um raciocínio definitivo, mas apenas levantar questões relativas ao futuro da poesia a partir de um cânone cada vez mais desmistificado e a partir de uma solução ávida de novas soluções. Mais do que nunca precisamos lembrar a profecia de Cazuza: "o tempo não pára." Estamos no tempo em que trocar a roda de uma locomotiva em movimento pode ser um descaminho inevitável para a consolidação de uma geléia cujas expressões maiores devem ser esculpidas não apenas com os hálitos da delicadeza, mas principalmente com a certeza cada vez mais absoluta que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Esta é apenas uma "levantada de bola" para um assunto que nem de perto se esgota por aqui. Afinal, quem escreve e principalmente quem escreve um poema, seja na idade média ou na idade mídia, apenas inicia um processo que se revela e se traduz de diferentes formas no olhar de quem lê, estendendo-se para além das ferramentas mais avançadas e popularizadas, a exemplo dos blogs.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Os elos perdidos da infância

Lau Siqueira

Há mais de duzentos anos Rousseau afirmou que uma criança não é um adulto em miniatura. Ainda hoje alguns setores imprescindíveis para uma intervenção mais efetiva no drama vivido por crianças e adolescentes de um mundo abandonado possuem dúvidas profundas acerca desta afirmação. Sem eliminar outras interpretações, compreendo que Rousseau quis dizer que as especificidades de uma vida em formação, sem as proteções necessárias, fragilizam a construção dos dias e noites do futuro cidadão ou cidadã. A usurpação dos direitos (e o cínico desprezo pelos deveres) das crianças e dos adolescentes é, seguramente, um assunto que precisa ser encarado como uma calamidade pública nas pequenas e grandes cidades brasileiras. Pensar coletivamente e agir coletivamente é, sem nenhuma dúvida, o único caminho e a estratégia mais eficaz para buscarmos a contenção do tsunami social e existencial que este fato, ainda sem a devida atenção das mais diversas aldeias globais, precisa despertar. Talvez não tenhamos tanto tempo assim para reagir diante de uma realidade que se torna cada vez mais assustadora. Mas, se formos razoáveis o suficiente para refletirmos acerca do tipo de circunstância que estamos gerando e para a necessidade de responsabilidades compartilhadas, ao invés de terceirizadas, teremos alguma chance de reação no enfrentamento do problema.

Apesar da postura pouco atenta de boa parte da sociedade, não nos resta a menor dúvida: estamos diante de um abismo de proporções devastadoras e cujos efeitos já estão sendo revelados, cotidianamente, de forma crescente. São reais, infelizmente, as notícias de violência sexual contra crianças de até dois anos de idade, ou menos. É real, também, a apatia, a indiferença e (o que é pior), a banalização do que está posto. Esta violação de direitos é fruto de ações, muitas vezes de pais, tios, vizinhos, padrastos. O certo é que existem lacunas enormes na proteção aos pequenos localizadas exatamente onde a lei estabelece a centralidade dos seus benefícios, ou seja: a família. Se é verdade que a família é o mais adequado espaço para uma criança também é verdade que a família anda de tal forma transgredida que abriga também a maior quantidade de denúncias de violação de direitos. Alguma coisa, portanto, jamais dependerá das políticas públicas porque se refere à supressão de uma cultura de banalização da vida. Algo que passa pelas políticas de educação, saúde, assistência, turismo e, principalmente, das políticas públicas de cultura que são, evidentemente, onde se processam as mudanças de hábito.

Os fatos que batem à nossa porta são inúmeros. Por esses dias a cidade de João Pessoa amanheceu escandalizada com a apresentação de imagens de uma criança de apenas dois anos fumando um baseado na presença da jovem mãe (19 anos) e outros jovens. Infelizmente, este não é um fato isolado. Não podemos fechar os olhos para a imensa degradação da condição humana que está posta no cotidiano. Já testemunhei na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, uma adolescente amamentando e cheirando cola. Infelizmente não pude mais encontrá-la depois que consegui estacionar e ligar para o Conselho Tutelar. O espantoso é que a menina-mãe circulava em meio a pessoas absolutamente indiferentes ao nervo exposto da violação de direitos.

O uso de drogas por crianças (em idade sempre mais tenra) e o uso dessas crianças em atividades ilícitas com a irrestrita violação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) deverá aprofundar um quadro social de barbárie, caso não sejamos capazes de refletir mais profundamente acerca das responsabilidades de cada ente público, de cada organização social e de cada cidadão e cidadã. Não temos tempo para esperar o bom senso dos novos governantes. É bom que se pense nisso nesse momento pré-eleitoral. O que se faz urgente é a construção de um tipo de memória social que reflita a indignação ao invés da diferença. A mortalidade de crianças e adolescentes cresce porque a violência à qual são submetidas é cada vez mais precoce e eles próprios passam a ser agentes da violência que os destrói. Pesquisadores já constatam que se mata mais, proporcionalmente, em Mandacaru que no Afeganistão. Quando se busca os assassinos, segundo meu amigo Jorge Camilo, se encontra crianças de 12 a 15 anos. Os mais velhos já alcançaram divisas mais graduadas no pesadelo dos becos. Uma liderança comunitária da comunidade Santa Clara me disse outro dia que o bandido mais perigoso da comunidade, tinha apenas 13 anos e já contabilizava uma dezena de mortes.

Portanto, reagir ao caos que está posto significa estabelecermos claramente as responsabilidades e não apenas transferirmos as culpas, como ocorre usualmente. Os limites do Poder Público, nas três esferas, já está vencido. Tristes daqueles que não percebem que a cratera é mais em baixo. Só para exemplificar: quando começarão as cobranças da responsabilidade social dos diversos canais de mídia abrigados em concessões públicas? Até quando os Estados se sentirão desobrigados de comparecer com contrapartidas nos programas sociais? Até quando as grandes fortunas do país entenderão que os investimentos não deverão acontecer apenas na blindagem das suas carruagens “mudernosas”? Há algo que ainda não foi feito porque os interesses, mesmo dos movimentos sociais que deveriam estar denunciando estas perversidades, ainda são muito localizados e partidarizados. Por outro lado, a mídia recolhida aos interesses da burguesia reconhece e repercute indefinidamente o escândalo a quebra do sigilo fiscal da filha do eterno presidenciável, José Serra. Entretanto, esquece que o escândalo social é infinitamente maior. Um escândalo que deveria nos preocupar por permitir que a esmagadora maioria do povo brasileiro permaneça à margem da Receita e das despesas do País. Os resultados dessa desigualdade, começam a repercutir na infância que se espalha como uma epidemia pelas ruas das cidades brasileiras. Inclusive e, principalmente, da nossa cidade. Tomara que o exercício de um pensar e agir de forma repartida, nos ajude a encontrar o elo perdido da infância, elemento imprescindível para impormos ao planeta uma cultura de paz e igualdade de direitos e deveres.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O HÁLITO DO FOGO E A ANCESTRALIDADE TRANSGRESSORA DE FRANCC NETO

Lau Siqueira

Para quem banca a própria rebeldia diante da banalização do extraordinário, a experimentação sempre significará um salto no abismo. É como se na hora do salto estivéssemos chegando de uma alameda de dois caminhos que costuram eternidades na obra e no artista. Estas são algumas das senhas para a diáspora dos ímpares, dos que munidos de coragem futurista e densidade ancestral constroem o ato de criar novas estruturas para as sensações e demais significados da condição humana. A idéia do Belo, em Hegel, se refere à “manifestação do verdadeiro tomado em sua aparência sensível”. A obra de Francc Neto nos remete à incontáveis leituras, sobretudo, como “manifestação do verdadeiro em sua aparência sensível.”

“Quando possível, respeitada a natureza peculiar a cada uma das artes, tenderá a desaparecer a diferença de atitudes discernida muito bem por Mário Pedrosa entre poeta e pintor concreto: a fenomenologia da composição cederá lugar a uma verdadeira matemática da composição”, segundo Haroldo de Campos. Mas, nem é apenas isto o que está posto para nós, neste momento. O que veremos por aqui se refere ao impacto do oposto, do singular, da arte que suscita num só tempo, a barbárie, a plenitude e uma reflexão ética sobre o mundo e sobre a humanidade, com suas distorções e harmonias.

Impressiona o artista que troca os pincéis pelo maçarico e a tinta até mesmo pelo fogo intenso das fogueiras, para a feitura de uma alquimia de resinas, fuligens, espiritualidade, pigmentos, plotagens, vento, tempo, mais espiritualidade, madeira reciclada... Despido das impropriedades do ego, o artista mergulha num experimentalismo permanente e questionador das misérias microscópicas e macroscópicas do planeta. Parece-me ser desta veia que jorra o suor criativo de Francc Neto, um habitante do espanto e do encantamento, um artista paraibano que aciona seu passaporte para o time dos que tatuaram suas marcas na história da arte.

A madeira extraviada e reciclada, as representações simbólicas do tempo e do silêncio, do corpo humano também. A serragem, a cera de abelha ou de carnaúba, as imperfeições naturais do mundo, furos, riscos, ações de prego e martelo. Também tintas e vernizes, mas sobretudo o fogo é o elemento que coordena a impulsão criativa do artista. Muito fogo sobre compensado numa leitura da barbárie desses tempos corridos que tecem o terceiro milênio. Um tempo que nos atravessa a alma com as impropriedades da civilização. Francc realiza e expõe a amplitude dum universo que transita pela tradição e pela transgressão, sem negações de identidades nem apelos pasteurizantes. Certamente navegando na imersão dos espíritos livres que comandam a experimentação na história viva da arte. Estamos testemunhando aqui uma capacidade de invenção que se traduz para muito além da ancestralidade tecida no fogo, partindo para um estranho dadaísmo, com grande poder comunicativo. Um trabalho que jamais será condecorado pela indiferença.

Doutor em sociologia da arte pela universidade de Tours (França) e em Literatura e Língua francesa pela universidade de Toronto, Derrick de Kerduckhove, numa investigação sobre a nova realidade eletrônica, afirma que “hoje as tecnologias são tão versáteis que nos dão poder para refazer aquilo que chamamos realidade.” Um pensamento que se aproxima por oposição extremada ao sentido da arte de Francc Neto que faz tudo isso apenas com as ferramentas mais primitivas, apostando nas revelações da intensidade, da insanidade, do contraponto à violência como instrumento de uma obra que aponta um gesto primordial numa exposição para quem a arte sempre será o melhor motivo. Afinal, como disse Fayga Ostrower, “criar é um processo existencial.”

domingo, 30 de maio de 2010

Pela descriminalização da infância e da juventude na Cidade das Acácias!

Lau Siqueira
Na última semana de maio a cidade de São Luiz (MA) sediou o primeiro encontro regional para integração SUAS* /SINASE*. O evento tratou da municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto. Uma das palestrantes resgatou da mitologia um exemplo de punição educativa. O deus Apolo, símbolo da beleza, da juventude e da luz, uma das doze divindades do Olimpo, fruto da união de Zeus com Leto, amparou os signos da esperança propositiva no discurso da palestrante. Apolo, entre outros atos não menos desabonadores matou a flechadas um bando de Cicoples (personagens com um olho único, na testa) enviados por Zeus. Como punição, foi expulso do Olimpo e veio exilado para a Terra. Cumpriu sua pena trabalhando como pastor de rebanhos. O aprendizado da mortalidade transformou radicalmente o jovem Apolo. Os ensinamentos da punição educativa mostraram novos caminhos e Apolo descobriu que poderia determinar os dias, as noites e as estações do ano. Passou a ser conhecido, então, como o Senhor das Colheitas.

Apesar da forte simbologia mitológica aqui resumida, nossas reflexões partirão de outro tipo de Olimpo. Um lugar onde Zeus foi esquecido e o modo de organização das divindades vem gerando Apolos subnutridos, crescendo nos chamados aglomerados subnormais. Muito especialmente em cidades onde a riqueza de uns poucos ilumina avenidas e constrói suntuosidades arquitetônicas. Na bela, moderna e histórica São Luiz do Maranhão, onde a Governadora Roseana Sarney anunciou o investimento de vinte milhões de reais para os festejos juninos, os palafitas ainda cortam de sangue o olhar indignado dos que lutam pela partilha das colheitas de Apolo. Enquanto a modernidade ergue seus monumentos, pequenos deuses e deusas saem para as ruas das cidades brasileiras buscando conquistar o direito de viver mais um dia. Seja limpando os fumês de um Vitara no semáforo, suplicando caridade pelas esquinas, ou praticando os pequenos (e imensos) delitos que sobraram como opção para uma iniciativa autônoma de sobrevivência no Olimpo capitalista.

No momento que se inicia a municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto na cidade de João Pessoa, as reflexões que busco resumir neste breve artigo apontam para o fato de estarmos implantando uma política pública numa sociedade de desigualdades criminosas. Em tempos de disputa eleitoral - onde os escrúpulos geralmente escasseiam - jamais poderemos confundir ou minimizar as nossas responsabilidades que devem ser, obviamente, repartidas. A municipalização dos serviços, pois, não pode ser impunemente tratada como uma desova de obrigações. Os três níveis de governo e a sociedade têm atribuições intransferíveis na sua condução. Não existem modelos ou cartilhas. No máximo, alguns poucos exemplos dignos de atenção para uma imprescindível troca de saberes. As experiências bem sucedidas nos revelam a necessária delicadeza de estabelecermos um debate sincero acerca da parte que nos cabe neste latifúndio. No caso da Paraíba (e de outros Estados) convivemos com a mais soberba alienação do Governo Estadual quanto as suas atribuições tão claramente estabelecidas na Lei Orgânica da Assistência Social. Não apenas em relação às medidas, mas quanto à Política Nacional de Assistência Social como um todo. Da mesma forma, convivemos com uma profunda conivência do Ministério Público Estadual quanto a este fato que é, sem qualquer dúvida, determinante para o sucesso ou fracasso das políticas públicas.

O fator cultural também deve ser compreendido como determinante até mesmo para a transformação do comportamento de determinados agentes da área social. A primeira experiência brasileira de “acolhimento” data de 1551, quando os jesuítas fundaram a primeira casa de recolhimento de crianças. O objetivo era “afastar as crianças negras e índias da má influência dos pais”. Portanto, partimos de uma herança nefasta que evoluiu por caminhos nada animadores e que desaguaram na estupidez do modelo desumano da FEBEM. Uma radical mudança de paradigma é, portanto, o que está em pauta. Não podemos esquecer que os jovens infratores da classe média e da burguesia passam ao largo das políticas públicas aqui tratadas. Acabam absorvidos pela imperativa hipocrisia social e, no mais das vezes - celebrando a impunidade -, acabam retornando à cena na idade adulta, em relevantes cargos públicos. Portanto, que fique claro: estamos implantando uma política pública que traz como cenário um profundo e covarde preconceito de classe. As medidas sócio-educativas em meio aberto estabelecidas pelo SUAS/SINASE não podem ter sua aplicação dissociada de uma reflexão acerca da profunda desigualdade social. Não podemos incorrer no erro de pensar essas medidas tão somente na perspectiva de contenção dos ímpetos e conflitos dos meninos e meninas da periferia, sem qualquer reflexão acerca da violência à qual são submetidos desde quando nascem, desprotegidos de tudo. Portanto, não há como não tratarmos do assunto de forma articulada com as demais políticas públicas que tem na justiça o princípio fundamental. Isso, não se espantem, é fundamento ideológico neste início de milênio. É necessário que este aspecto também seja levado em consideração pelos demais componentes da rede de proteção deste imenso trapézio que cerca o interesse público.

Os processos de reeducação, portanto, não irão surtir efeito se não oferecermos perspectivas, se não nos pautarmos pela universalização dos direitos de cidadania. Seja no âmbito das políticas habitacionais, das políticas de saúde, de cultura e de educação mais especificamente. De cultura? Sim, porque estamos tratando aqui, fundamentalmente, da necessária mudança de mentalidades. Este é o papel da transversalidade de uma política pública de cultura transformadora. Comecemos pela capacidade de reflexão dos profissionais da área, pelo comprometimento dos gestores e dos demais agentes públicos, pelo envolvimento dos movimentos no controle social e pela responsabilização das grandes corporações, passando pela mudança de hábito da mídia, com sua racionalidade apontada para o lucro imediato das imagens e das palavras. Afora isso, sobram os riscos do principal contraponto que é a zona de sombra do fascismo propondo a redução da maioridade penal como solução matemágica. A história nos mostra com muitas evidências que os confinamentos já experimentados não passam de uma espécie de industrialização em massa do crime. Ou seja: a sociedade dos porcos ainda se arriscará continuar chafurdando na lama para camuflar suas responsabilidades. Estranho que esse debate ainda esteja vivo num tempo em que o crime organizado transformou os presídios em privilegiados núcleos concentrados de operação. Esperamos um pouco mais do mundo. Por isso seguimos em frente, referenciados no que ainda virá, mas que possui enraizamentos inconfundíveis na luta e no pensamento de quem pretende ir muito além dos códigos abertos do conhecimento e de comemorações carnavalizadas da tragédia social que vivemos.



*SUAS – Sistema Único da Assistência Social

SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

sábado, 22 de maio de 2010

A angústia do mundo numa bolha de sabão.


Lau Siqueira
O desafio das políticas públicas neste início de século nos remete a nossa capacidade de reflexão acerca das práticas empreendidas, dos diálogos travados e da nossa imensa capacidade de compreender a necessidade de uma ação planejada, em rede, e que se propague infinitamente. Uma utopia possível? Talvez algo bastante além disso. Logicamente que falo aqui de uma radical mudança de hábito do poder público e dos movimentos sociais no trato com as políticas públicas. Tanto no que tange às relações de interesse político quanto nas relações de poder, mais propriamente, estabelecidas cada vez que um agrupamento de reúne periodicamente pensando, equivocadamente, se tratar de um grupo. Jean Paul Sarte é muito claro ao exemplificar as diferenças. Para Sartre, basta um grupo de pessoas esperando um ônibus na parada para conceituar agrupamento. O grupo é a possibilidade de um diálogo positivo dessas mesmas pessoas em torno de um interesse comum e coletivo. Por exemplo, protestar contra o imenso atraso do Expresso 2222 da Central do Brasil que partiu direto de Bonsucesso pra depois do ano 2010.

Recentemente participei de um debate acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes. Um debate que deveria interessar milhares de pessoas, não reuniu uma centena. Por quê? A resposta é relativamente fácil. Há um relativo cansaço acerca do jogo de cena que muitas vezes se impõe como ação de política pública. Há uma certa incredulidade quando escutamos altas autoridades, como no lançamento do projeto Vira Vida, dos Sistema S, afirmando que não existe turismo sexual na Paraíba. É como se não devêssemos nos preocupar por estarmos no estado que ocupa o terceiro lugar no ranking nacional da exploração sexual de crianças e adolescentes, perdendo apenas para Pernambuco e Rio de Janeiro. Uma vergonha que preocupa os que desejam um mundo mais afinado com os valores humanos. Estamos, na verdade, diante de um jogo de cena que passa pelas vaidades pessoais e pela submissão de organismos públicos aos interesses localizados de segmentos alheio aos trilhos e ao trem da história. Particularmente, não gostaria de fazer parte dos elos cansados desta cadeia improdutiva da desesperança. O cotidiano não permite. Até porque neste imenso jogo de interesses que cercam a verdadeira colcha de retalhos que cobre o chamado interesse público, existe uma responsabilização, sobretudo, cidadã.

Sinto-me bastante a vontade para criticar os movimentos sociais porque neles tive a minha formação e para eles voltarei antes de virar poeira de vento. Sinto-me também a vontade para exercer criticamente um cargo público pelo mesmo e bom motivo. Na verdade, a carência de quadros, tão visível na aplicação das políticas, não é mais que no resultado do jogo de interesses e vaidades que perpassa a relação dos entes envolvidos neste cenário pouco animado – mas, ainda bem, não de um todo desanimador. Se a falta de quadros nos movimentos sociais é bastante visível por termos ainda os mesmos “melhores quadros” de vinte anos atrás, também é verdade que no olho do furacão desses movimentos existe uma imensa guerra de vaidades que sufoca as possibilidades de surgimento de novos quadros. Isso tudo se reflete nas mazelas da administração pública, onde a profissionalização ainda é um tabu a ser superado. Afinal, a luta pelo poder e, principalmente, pela partilha do poder, não se dá apenas no âmbito partidário.

No exercício das políticas públicas, mais propriamente na administração pública exercida nos três níveis (municipal, estadual e federal), confesso que houve um inegável avanço (com ampla contribuição dos movimentos, reconheçamos) em termos de amparos legais e de vontade política de implementação. O governo Lula, com todos os erros cometidos, fez a diferença neste sentido. É inegável essa constatação. No entanto, a consolidação das políticas públicas ainda padece de uma radical mudança de cultura administrativa simbolizada pelo paletó na cadeira vazia. O parasitismo eleitoral ainda é uma sombra rondando os cargos comissionados em todos os níveis e desníveis. Afinal, foi a presença ausente do poder público durante décadas e décadas que permitiu, por exemplo, que o tráfico ocupasse o lugar do Estado nas periferias do mundo. Muito especialmente deste nosso sofrido mundo latino. Esse mundo que late aqui em João Pessoa, em comunidades como Taipa, Porto de João Tota e outras. Pelo visto, não estamos ainda perto de uma saída porque sempre que há uma luz no fim do túnel, parece, vem uma locomotiva e apaga a possibilidade de seguirmos em frente. Dominar os freios e a aceleração da locomotiva é o nosso desafio cotidiano.

Não pretendo com isso determinar a desesperança. Muito pelo contrário. Apenas desejo lembrar que a esperança que acredito é aquela preconizada por David Cooper: “Não existe esperança. Existe uma luta. Esta é a nossa esperança.” E a minha esperança vai sempre ao encontro dos que lutam contra a impunidade que ainda coloca em xeque o jogral de interesses que se esconde por debaixo das togas e dos gabinetes de administração do Produto Interno Bruto, seja na área pública ou privada. Minha esperança segue em busca dos que ressurgem todo dia do topo de uma indignação que nada mais é que o mais profundo alicerce da cidadania acometida de lágrimas lúcidas. O cumprimento das leis está submetido aos interesses políticos. Os interesses políticos estão submetidos ao interesse econômico. E assim, “meus heróis morreram de over dose e meus inimigos estão no poder.” Nos governos, estão bons e maus executores, mas, reconheçamos que o poder não mudou de lugar nos últimos quinhentos anos de história brasileira.

Para seguir em frente, um único combustível é necessário: o tesão de tomar o caldo de batatas das nossas incapacidades, refletir sobre a desesperança dos que não vislumbram sequer a luz da locomotiva ilusionista das mudanças radicais... E seguir em frente, “adelante siempre”, endurecendo sem perder a ternura jamais, desacomodando os acomodados. Dignificando os indignados. Tudo dentro dos limites sempre esgotados da paciência coletiva. Pensando que cada um e cada uma de nós, respira o mesmo ar rarefeito das mesmas impossibilidades que ressurgem a cada paradigma que se esvai pelo ralo das emoções fugidias, dos que não pediram para nascer e muito menos para estar expondo suas inocências nas rotas mais violentas da sociedade contemporânea. Se é verdade que avançamos, também é verdade que temos um longo caminho. Porque felicidade só vale quando repartida. Já estamos cheios das alegrias efêmeras e das encenações que buscam a mídia, não para responsabilizá-la quando às suas culpas no quadro das imutabilidades que precisam ser destruídas. Mas, no amparo de certas vaidades impúberes que precisam ser reconhecidas e desmascaradas para que o mundo avance em nossas aldeias, para um patamar menos injusto. É como se nossas angústias de mudar nossas pátrias comuns estivessem cercadas pela delicadeza de uma bolha de sabão imersa em valores visíveis e invisíveis. O jeito é seguir em frente. Manter a firmeza dos princípios e colher as certezas do infinito.

domingo, 9 de maio de 2010

As representações sociais da decadência e a resistência cultural na Cidade das Acácias

"É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte." (Caetano Veloso)


 
Lau Siqueira

Em outros momentos históricos talvez provocasse maior frenesi a proposta da vereadora Elisa Virgínia de submeter as ações de arte pública na cidade de João Pessoa à Câmara de Vereadores, transformando-a em departamento de censura. Cazuza até que tinha razão quando berrava “o tempo não pára.” Mas, parece que parou na Idade Média para alguns portadores de profecias deformadas, denunciados já na antiguidade pelo mestre Jesus Cristo. O fato me trouxe à memória alguns versos do famoso artista popular nordestino, o Cego Aderaldo: “Quem nasceu cego da vista/ E dela não se lucrou/ Não sente tanto ser cego/ Como quem viu e cegou.” A sabedoria milenar do cantador nos mostra a necessidade de vermos as coisas como elas realmente são.
 
Sem demérito algum aos que foram eleitos para tratar dos assuntos gerais da cidade, me pergunto se haveria condição real para um mergulho no conhecimento sobre arte moderna, arte contemporânea, arte pública, história da arte... E assim, minimamente informados, os vereadores pudessem dedicar um tempo precioso ao exercício da análise estética. (Aliás, um trabalho nada legislativo.) Logicamente que não! Todavia, o que ainda preocupa é o fato de uma pessoa com mentalidade tão desvirtuada, conquistar uma relevante representação social. É preocupante sabermos que o povo pessoense é representado, também, por esse patamar de incivilidade. A provocação que deixo aqui é a seguinte: o que leva um cidadão ou uma cidadã a votar em alguém que pensa de forma tão desfigurada?

Por outro lado, tenho observado com indisfarçada alegria a reação dos artistas e dos consumidores de cultura da cidade. Reações justas e conseqüentes. É tranqüilizador quando se percebe que a sociedade está atenta aos desmandos. Na verdade, a vereadora ultrapassou todas as barreiras do bom senso e está recebendo o troco. Praticou um ato tendencioso tentando ludibriar setores da sociedade no jogo político conservador. Misturar política com religião tem sido o mais vergonhoso ato de desrespeito à diversidade das crenças. Afinal, o Estado é laico. Mesmo que em épocas eleitorais, muitos pais e mães de santo, padres, padrinhos e pastores caminhem juntos no gingado dos interesses pela hegemonia da sociedade. A vereadora, neste sentido, cumpre integralmente os ritos da decadência. Não sabe que os evangélicos já não se comportam como um rebanho. Como todo o povo, cada vez exercitam melhor a cidadania e repudiam o oportunismo patológico de algumas representações que insistem em tratar os interesses coletivos de forma tão obtusa. Concluo, portanto, que a vereadora Elisa Virgínia bebeu na taça do ridículo e dançou até cair.

Lembro que há poucos anos, quando a Prefeitura colocou a internacionalmente reconhecida obra do paraibano Jackson Ribeiro, o Porteiro do Inferno, no giradouro da Universidade Federal da Paraíba, também ocorreram tentativas esdrúxulas para extrair dividendos políticos de uma polêmica vazia. Na época, representando a Fundação Cultural de João Pessoa, fui obrigado a intervir num programa de rádio para explicar que a uma obra abstrata, como o Porteiro, não poderia jamais ser dada qualquer conotação religiosa. A comunidade artística também reagiu e, felizmente, a polêmica não se sustentou. O que assusta, entretanto, é a condição a que foram alçadas certas pessoas em termos de representatividade social e política. O que preocupa é que uma pessoa como a vereadora Elisa tem a responsabilidade de analisar outras matérias de extremo interesse da cidade. Portanto, estamos ainda a mercê.

Em derradeira análise, observamos que numa sociedade que transforma as piores tragédias em espetáculos midiáticos é normal o ridículo virar notícia. Ainda chegará o dia que uma matéria assim não passará nos critérios editoriais de qualquer jornal de bairro ou blog sensacionalista. Este dia, deverá coincidir com a cobertura da dignidade das pessoas que vivem nas comunidades periféricas. Por exemplo, Mandacaru tem aparecido na mídia apenas como um bairro violento. Esquecem que se trata de um dos principais pólos de cultura popular da região. A notícia, geralmente, estabelece hierarquias de importância na construção das mentalidades. A submissão é uma marca da pobreza. As mentiras sociais, colocadas diariamente pelos (de)formadores de opinião como a vereadora, no entanto, já não encontram o eco que desejariam. Ainda bem. A cidade está mudando. O país está mudando. O mundo está mudando. Tudo porque estamos aprendendo a reagir com veemência contra os desacordos de uma nova ordem global. O mundo pode sim ser diferente. Depende sempre das nossas reações. Mentalidades oportunistas como a da vereadora pessoense, ainda bem, já causam mais riso que revolta. A comunidade artística, como se diz, deu uma merecida peia nos signos da ignorância travestida de moral. Como sempre diz Pedro Osmar, “arte ainda que tarde”. Tipo assim: estou gostando de ver a comunidade atenta e forte.

NOVO É O ANO, MAS O TEMPO É ANTIGO

Não há o que dizer sobre o ano que chega. Tem fogos no reveillon. A maioria estará de branco. Eu nem vou ver os fogos e nem estarei de b...